Vida e Morte dos Igarapés e Balneários de Manaus

A relação do homem com a natureza é ambígua. Ao mesmo tempo em que dela necessita para a manutenção do meio em que vive, também lhe destrói em nome da satisfação material. Foram poluídos ou desapareceram nessa onda de devastação os igarapés e balneários de Manaus, elementos que por muitas décadas fizeram parte do cotidiano de seus habitantes, que neles encontravam um refúgio para o descanso e lazer nos finais de semana.

O igarapé, do tupi ygara (canoa), apé (caminho), como revela sua origem etimológica, foi o caminho do habitante primitivo do que viria a ser a cidade. Em suas igarités, os indígenas de diferentes etnias cortavam esses pequenos cursos d’água que serpenteavam o terreno pelo interior das matas. Posteriormente, deles se apropriaram os espanhóis, ingleses, franceses e portugueses, neles transitando intensamente em busca das drogas do sertão. Já no século XIX, serviu ao regatão, comerciante das águas.

Na planta 'croquis' de Manaus de 1852, feita no governo do presidente da Província do Amazonas João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, além dos limites urbanos, pode-se observar que a pequena cidade era dominada pelos igarapés de São Vicente, da Ribeira, da Bica, do Espírito Santo, do Aterro, da Cachoeirinha, da Cachoeira Grande, de Manaus, da Castelhana e de Monte Cristo, que cortavam seus poucos bairros (Remédios, República, Espírito Santo, Campina e São Vicente) e arrabaldes. Eles determinavam o traçado das ruas, o sentido das construções, abasteciam os moradores de água potável. Em síntese, eram de vital importância para o funcionamento da cidade.

Em visita a Manaus no ano de 1865, o casal viajante Louis e Elizabeth Agassiz não pôde deixar de visitar o Igarapé da Cachoeira Grande, por eles descrito como "uma Niágara em miniatura", em referência à pequena cascata (AGASSIZ, 2000, p. 266). Registraram, ainda, que nos igarapés da cidade se reuniam "[…] os pescadores, as lavadeiras, os banhistas, os homens que pegam tartarugas" (AGASSIZ, 2000, p. 274). Os igarapés eram pontos de encontro e locais de onde se tirava o sustento. Essas características fizeram com que fossem protegidos pelos Códigos de Posturas. Dos cinco artigos do Código de Posturas de 1868, por exemplo, quatro tinham esse fim:

"Art. 1°. - Fica proibido o corte de arvores, varas arbustos maiores de 5 palmos em todos os riachos ou igarapés que ficarem dentro dos limites da cidade e nos seos subúrbios, em uma zona de 60 palmos de largura a partir do leito dos mesmos riachos, ou igarapés. O infractor ocorrerá na pena de 20$000 réis de multa ou 4 dias de prisão.

Art. 2° - Nesta mesma pena incorrerão aquelles que fizerem escavações nesses lugares, revolverem lamas, deitarem lixo, páos, couzas pútridas ou qualquer outra materia que possa alterar a pureza das águas.

Art. 3° - Também fica prohibido o côrte de arvore nas margens dos igarapes, das cachoeiras grande e pequena continuas a esta cidade, maxime aos lugares que servem de logradouros públicos.

O infractor incorrerá na multa de 30$000 réis ou 8 dias de prisão.

Art. 4° - Fica proibido d’ora em diante tirar-se agoa no Igarapé do Aterro para ser vendida a população, e bem assim lavar-se roupa, cavallos e outros quaesquer animaes. O infractor será punido com 5$000 réis ou a 2 dias de prisão"

(‘CÓDIGO DE POSTURAS MUNICIPAES DE 1868’, Apud SÁ, 2012, p. 54-55).

Os banhos em igarapés eram uma tradição que resistia às proibições que iam surgindo, cada vez mais rígidas. Se por um lado elas eram criadas para manter a integridade desses lugares, por outro, ao qual era dada mais ênfase, eram mecanismos de controle de hábitos considerados impróprios e atrasados. Eram frequentes as denúncias e prisões. Em 1892, Manoel Bento Gama foi preso por estar tomando banho no “Igarapé de Manáos” (AMAZONAS, 31/08/1892). O jornal humorístico A Marreta, em 1912, recebeu a denúncia de que "[…] uma marafona de noma Alzira, vulgo Cegueta", tinha "o habito de a altas horas da noite tomar banho no igarapé (de Educandos) em trajes de Eva acompanhada de diversos rapazes, fazendo uma algazarra tremenda" (A MARRETA, 01/12/1912). Em 1913, moradores da Cachoeirinha, por meio da coluna ‘Queixas do Povo’, do Jornal do Comércio, pediam providências à polícia para solucionar o problema de "um grupo de indivíduos que costuma diariamente tomar banho no igarapé das imediações da Avenida Canaçary", pois essa situação era “um desrespeito às famílias que ali têm residência” (JORNAL DO COMÉRCIO, 14/01/1913).

No final do século XIX e ao longo do século XX, boa parte desses igarapés foi aterrada para dar lugar a vias públicas. Ainda no período imperial, o Igarapé da Ribeira foi aterrado para a construção do Cais da Imperatriz, na entrada da cidade. O Igarapé do Espírito Santo deu lugar à Avenida Eduardo Ribeiro. O Igarapé dos Remédios à Avenida 13 de Maio, posteriormente Avenida Getúlio Vargas, e à Avenida Floriano Peixoto. O Igarapé de São Vicente foi aterrado para ligar o antigo bairro de mesmo nome ao restante da cidade. Dava-se adeus, nas palavras do historiador e artista plástico Otoni Moreira Mesquita, à "Veneza Amazônica", apagando, em nome do progresso, o passado nativo de Manaus (MESQUITA, 2006, p. 166).

Apesar do aterro desses igarapés, sobreviveram os que se tornariam bastante populares entre os manauaras, dos quais hoje restam, atualmente, apenas fotografias e o saudosismo de tempos mais amenos. Na coluna ‘Onde a Cidade se Diverte’ do Jornal do Comércio, de 30 de julho de 1959, recomendava-se três igarapés e seus respectivos balneários públicos: "Parque 10 de Novembro, Ponte da Bolívia e Tarumã" (JORNAL DO COMÉRCIO, 30/07/1959).

As obras do Balneário do Parque 10 de Novembro tiveram início em 10/11/1938 por ocasião do aniversário de um ano do Estado Novo, na administração municipal de Antônio Botelho Maia (1937-1940), irmão do Interventor Federal Álvaro Botelho Maia. As obras foram continuadas na administração de Paulo de La Cruce Grana Marinho (1940-1942), tendo o Balneário sido inaugurado em 19 de abril de 1943, dia do aniversário do Presidente Getúlio Dornelles Vargas, pelo prefeito Antóvila Mourão Vieira (1942-1944). Ocupando uma área de 50 hectares ao norte da Vila Municipal (Adrianópolis), era recortado pelas águas do Igarapé do Mindu, possuindo uma piscina grande para adultos, uma para crianças, um ‘bar-dancing’, restaurante, quadras de tênis, basquete e vôlei e um playground. Foi por muitas décadas considerado o melhor balneário da região Norte. O que restou dele, nos dias de hoje, está coberto pelo mato, em ruínas, com o igarapé poluído.

A Ponte da Bolívia foi construída em 1958 na administração estadual de Plínio Ramos Coelho (1955-1959) sob o Igarapé da Bolívia, na Avenida Torquato Tapajós, AM-010. Esse trecho passou a ser frequentado nos finais de semana, ficando conhecido como Balneário da Ponte da Bolívia. Também foram construídas, assim como no Parque 10 de Novembro, algumas instalações para os frequentadores, embora mais modestas, como um pavilhão e alguns quiosques de madeira e palha. A construção de um aterro sanitário pela Prefeitura em meados da década de 1980 pôs fim, aos poucos, ao igarapé. Em 1994 o Jornal do Comércio publicava, na coluna ‘Linhas Cruzadas’, que "o aterro sanitário do quilômetro 17 da Manaus-Itacoatiara" estava "poluindo tremendamente o Igarapé da Bolívia, aquele que passa por baixo da ponte de mesmo nome" (JORNAL DO COMÉRCIO, 10/06/1994). O chorume dos dejetos penetrava na terra e atingia o igarapé, tornando-o um perigo à saúde pública.

O mais marcante, sem dúvidas, foi o Igarapé do Tarumã, afluente do rio Tarumã, localizado entre as zonas Oeste e Leste da cidade, que já aparece em gravuras e fotografias desde a segunda metade do século XIX, chamando a atenção de viajantes e turistas. Também são afluentes os igarapés do Tarumãzinho e da Cachoeira Alta e Baixa, tão famosos quanto o do Tarumã. Ambos, já na década de 1990, estavam impróprios o banho público. A cada diz toneladas de lixo se acumulam nesses cursos d'água.

Também existiam balneários particulares, como o Maringá, criado entre o final da década de 1950 e o início da década de 1960, antigamente localizado no quilômetro 06 da Rodovia AM-010, em frente a entrada da boate Saramandaia. Era propriedade particular do casal de comerciantes Alfredo Raposo e Messody Sabbá Raposo. Esse era um balneário de luxo frequentado por pessoas da alta sociedade manauara da época, amigos íntimos do casal Raposo. No local, uma residência, uma grande piscina, um campo de futebol e muitos pés de goiaba e caju. Encerrou suas atividades na década de 1980, quando foi adquirido pela extinta PORTOBRÁS (Empresa de Portos do Brasil). O mais refinado deles foi o Balneário do Bosque Clube, instalado na antiga Estrada de Flores, este cortado pelo Igarapé dos Franceses. Era, no início do século passado, ponto de encontro da colônia inglesa de Manaus, sempre a fazer, nos finais de semana, seus famosos ‘picnics’. O memorialista Luiz de Miranda Corrêa, em seu 'Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade do Rio Negro', cita os banhos "Tucunaré, Casablanca e Bancrévea" (CORRÊA, 1969, p. 88).

A futura degradação dos igarapés e balneários de Manaus já se anunciava desde a década de 1960. A destruição da Cidade Flutuante, favela fluvial existente na orla da cidade desde a década de 1920, feita com pouco planejamento, fez com que inúmeras famílias passassem a ocupar os leitos dos igarapés da cidade, erguendo habitações irregulares. No fim desse período e ao longo da década de 1970, com a intensificação da industrialização, mediante a instalação da Zona Franca, bem como o crescimento desordenado da cidade, recebendo milhares de imigrantes, os igarapés tornaram-se os locais de despejo dos esgotos residencial e industrial. Os danos foram tamanhos que, em 1981, o Presidente da Associação Amazonense de Proteção Ambiental, Francisco Braga, afirmou categoricamente que “todos os igarapés de Manaus estão sendo poluídos pelos esgotos residenciais e industriais” (JORNAL DO COMÉRCIO, 05/11/1981).

Há mais de 20 anos o cenário desses espaços que um dia fizeram a alegria dos manauaras é desolador. As gerações mais novas foram privadas desse divertimento, tendo como referenciais mais próximos as fotografias, os cartões-postais e os relatos dos mais velhos. Faltou consciência dos que passaram a ocupar suas margens, faltou planejamento dos administradores públicos no tocante à habitação. Ambos são problemas históricos que acompanham nossa sociedade. Caso não ocorram mudanças, corre-se o risco de que a degradação chegue ao Rio Negro e aos rios do interior do Amazonas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AGASSIZ, Jean Louis Rodolph. Viagem ao Brasil 1865-1866. Trad. de Edgar Süssekind de Mendonça. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000.

CORRÊA, Luiz de Miranda. Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade do Rio Negro. Manaus: Artenova, 1969.

MESQUITA, Otoni Moreira. Manaus, História e Arquitetura (1852-1910), 3° ed, Manaus: Editora Valer, Prefeitura de Manaus e Uninorte, 2006.

SÁ, Jorge Franco de. Manaus: higiene, meio ambiente e segurança do trabalho na época áurea da borracha. Manaus: Edua, 2012.

FONTES:

Amazonas, 31/08/1892.

A Marreta, 01/12/1912.

Jornal do Comércio, 14/01/1913.

Jornal do Comércio, 30/07/1959.

Jornal do Comércio, 10/06/1994.

Jornal do Comércio, 05/11/1981.