Escola sem Partido: o senso comum contra a educação
Professores ao falarem de desigualdades sociais, discriminações raciais e de gênero, denunciando injustiças e cumprindo seu papel de contribuir para uma sociedade mais solidária e empática estariam doutrinando seus alunos?
Primeiro vamos pensar sobre o que são especificidades do ensino e a desfazer a confusão entre doutrina e dogma.
> Especificidades do Ensino
O professor só consegue realizar sua tarefa de ensinar, isto vale para qualquer disciplina, se houver autenticidade em suas explicações. A autoridade do professor tem como base a sua autenticidade.
Se as experiências de vida e aprendizagens do professor envolvem suas dificuldades relacionadas as desigualdades, preconceitos e dificuldades relacionadas, dificilmente ficarão de fora da forma como ele compreende a realidade, encara dificuldades e analisa as pessoas.
Ela não pode ser autentica e ao mesmo deixar de lado as experiências que moldaram sua maneira de ser, aprendizagens e enfim tudo que forma os saberes mais profundos e característicos dele como profissional e pessoa.
O aluno não aprende só conteúdos. O ensino confere necessariamente, impossível se desvincular disto, sentido, valor e propósito naquilo que ele fala. Ele ensina uma dada forma de pensar, a incorpora e se debruça sobre situações de forma a deixar claro como uma teoria ou maneira de pensar levam a certos entendimentos sobre a realidade social e física.
O aluno só aprende se o professor operar seu pensamento com autenticidade, não apresenta simplesmente uma ideia, ele opera e trabalha com ela interpretando os diversos aspectos da realidade a partir dela.
Ensina com o próprio exemplo, não pode exigir que o aluno aprenda certa forma de pensar, sem que ele mesmo dê exemplo pensando a partir dela e demonstrando por cálculo, exposições ou outros meios.
Cada teoria ou conceito só pode ser assimilado pelo aluno se for também raciocinado pelo professor. E ele demonstra por diversos meios como operar com aquelas ideias e as conclusões plausíveis.
> Doutrina e Dogma
Há uma confusão muito grande entre doutrina e dogma. Fala-se de doutrinar, quando na verdade o termo correto seria dogmatizar - o que é um bom exemplo de mal uso de termos.
Pesquisei vários dicionários on line disponíveis, selecionei somente de um, mas pude verificar que o sentido pouco varia de um para outro - nada essencial:
* Doutrina
"Substantivo feminino Reunião dos fundamentos e/ou ideias que, por serem essenciais, devem ser ensinadas. Reunião dos preceitos básicos que compõem um sistema (religioso, político, social, econômico etc.).
[Política] Reunião dos preceitos utilizados por um governo como base para sua ação (social ou política).
[Por Extensão] Sistema que uma pessoa passa a adotar para gerir sua própria vida; norma, regra ou preceito. O conjunto do que se utiliza para ensinar; disciplina.
[Religião] Crença ou reunião das crenças que são tidas como verdadeiras pelas pessoas que nelas acreditam; os dogmas relacionados à fé cristã; catecismo.
[Jurídico] Reunião daquilo (ideias, opiniões, pensamentos, pontos de vista etc.) que é utilizado como base para formulação de teorias (exame ou análise) no âmbito jurídico; regra que, resultante de uma interpretação, é utilizada como padrão no exercício prático de uma lei. Etimologia (origem da palavra doutrina). Do latim doctrina.ae.”
https://www.dicio.com.br/doutrina/
* Dogma
"Substantivo masculino Ponto fundamental ou mais importante de uma doutrina religiosa que se apresenta como algo indiscutível ou inquestionável.[Por Extensão] Preceito; causa delimitada; opinião estabelecida, firmada ou inquestionável.[Por Extensão] Qualquer discurso ou ideologia de teor inquestionável.Etimologia (origem da palavra dogma). Do grego dógma.atos, pelo latim dogma.atis"
https://www.dicio.com.br/dogma/
Enquanto "doutrina" se refere a preceitos básicos e essenciais de uma teoria, religião, sistema filosófico, jurídico e etc., "dogma" se relaciona a uma doutrina ou ideologia quanto alguns pontos inquestionáveis, que são aceitos como verdades por si mesmos ou pelo valor que alguma autoridade tenha dado a eles.
O que alguns críticos dos professores tem se referido a especificidade de suas práticas como "doutrinação", na verdade quiseram dizer "dogmatização". Como se o professor impusesse certos princípios ideológicos sem mostrar suas razões ou aceitar questionamentos válidos do ponto de vista lógico.
Doutrinar seria então no contexto da prática do professor iniciar o aluno as ideias básicas de certas formas de pensamento, teorias e conceitos de sua disciplina. Ele não ensinaria, neste sentido, sem de certa forma doutrinar - isto é, iniciar o aluno aos princípios fundamentais de certas teorias e concepções.
É possível doutrinar alguém sem dogmatizar. Já que podemos ensinar como opera aquele pensamento e seus princípios. Arrisco a dizer que não se ensina, pelo menos nas ciências humanas sem "doutrinar".
Como ensinar sem convencer o aluno da importância do que se ensina? Como ensinar sem mostrar como operam certas formas de pensamento que constituem um disciplina ou ciência?
Dogmatizar seria impor tais teorias, sem aceitar questionamentos razoáveis e ambiguidades apontadas. O que é uma prática condenável até mesmo por estudiosos da educação apontados como esquerdistas.
Por que na verdade não se ensina quando se dogmatiza, o dogma é aceito por conveniência, por medo, como uma reação de proteção de suas verdades contra a diversidade de ideias e concepções que o mundo oferece.
A própria ciência, parafraseando Weber, teria seus pressupostos como a fé que a lógica e a análise dos fatos nos aproximaria mais da realidade das coisas do que por outros métodos. A ciência é um ato de fé que exige provas diárias e sem recusar refutações e novos fatos sem colocar seus pressupostos de fé em risco.
> Ciência e Interesse
É possível abstrair o que se faz como ciência dos interesses a ela atrelados? Como eu poderia justificar o interesse por dado objeto de pesquisa sem recorrer aos meus desejos, vivências, suposições e visões pessoais? A utilidade e importância social não tornam um estudo mais científico do que aquele que tenha uma importância pessoal ou restrita a certos grupos de interesse.
A busca da relação entre os fatos e suas múltiplas causalidades é um instrumento que em si não diz por que devemos pesquisar, o que queremos entender e que respostas queremos obter. A metodologia busca somente adequar sua investigação e reflexão aos princípios científicos como a lógica e os fatos.
A pesquisa metodologicamente embasada significa que os seus interesses, curiosidades e objetivos, cuja constituição não é científica, mas fruto da sua vida em sociedade, pode ser conduzida de forma científica seguindo certa metodologia. Da mesma forma que pode ser conduzida por meios não científicos.
Este problema, de fato, é que pode levar a escola a se tornar dogmática, ao colocar como iguais ciência e religião. E mesmo evitando conceitos e teorias científicas quando estas entram em conflito com a fé ou ideologia política de um ou outro aluno.
A contestação de uma pesquisa ou teoria científica se dá por meios como contraprovas e inconsistências lógicas. Quando ela é contestada por outros meios, como pelo fato de dizer algo que não gosto ou que se contrapõe ao que minha fé diz, estou descaracterizando a ciência e a rebaixando a meras opinião e escolha pessoal.
O problema hoje é que querem que professores coloquem no mesmo patamar aquilo que é conduzido por meio da investigação científica e aquilo que segue outros meios e princípios, como o senso comum da experiência cotidiana e não sistemática a expressões religiosas dogmáticas.
> É melhor aprender sobre o que pouco se sabe, do que tomar a própria ignorância como sabedoria
Se não sabe o que é ensinar e o que é aprender, é de muita valia se calar. De mais valia ainda é buscar aprender, até que se possa falar e defender o que se fala sem endemonizar ou tratar aqueles que discordam como inimigos, manipuladores ou acusá-los de "doutrinadores" sem nem ao menos saber o significado correto e preciso da palavra.
Tenho por mim que tornar proibitiva as especificidades da prática docente, principalmente na área de humanas, é valorizar uma educação onde as habilidades voltadas para a reflexão e compreensão do outro são secundárias e vistas como improdutivas.
São justamente habilidades que as famílias mais pobres não podem proporcionar facilmente e que estão justamente relacionadas a reprodução e conformação a um modo de vida de ampla miséria diante da riqueza de poucos.
Por que são justamente aquelas habilidades que permitem aos indivíduos questionarem aquilo que é dirigido contra ele como normas e natureza das coisas para conformá-lo e apequená-lo diante do mundo social - reduzindo suas possibilidades e caminhos além do que provavelmente a miséria lhe proporcionará.