As práticas de escrita para alunos de classes desprivilegiadas.
Este ensaio, para a disciplina de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa: Alfabetização e Letramento foi elaborado a fim de pensar no processo de aquisição da escrita de alunos de classes desprivilegiadas e tentar responder a hipótese de como o professor pode ajudar o aluno a adquirir domínio sobre as práticas de leitura e escrita sem menosprezar sua língua materna.
Em um país com tantas desigualdades de oportunidades e tanta diferença social, temos depositado no sistema escolar a esperança de uma mudança positiva na vida dos cidadãos, o depósito de confiança é ainda maior nas escolas públicas que atendem crianças de baixa renda. No imaginário, pensamos que a escola é capaz de promover a essas crianças acesso a conhecimentos que não serão apreendidos fora do ambiente escolar.
Mas como o professor reage ao impasse de receber em sua sala crianças que trazem marcas lingüísticas tão distintas das esperadas para a alfabetização e letramento em norma culta?
Sobre o posicionamento dos professores perante a língua não padrão dos alunos, Bortoni-Ricardo (2004) identifica quatro condutas: o professor identifica erros na decodificação do material que está sendo lido, mas não faz distinção entre diferenças dialetais e erros de decodificação na leitura; O professor não percebe uso de regras não padrão; o professor percebe o uso de regras não padrão e prefere não intervir para não constranger o aluno; ou o professor percebe o uso de regras não padrão, não intervém, e apresenta em seguida o modelo da variante padrão.
Sobre a apresentação da variante padrão Bagno (2007) afirma a importância de o professor apresentar essa variante para seus alunos:
“A aceitação, a defesa e o reconhecimento da legitimidade das variedades sem prestígio social não estão em contradição com o trabalho didático de levar os falantes dessas variedades a se apoderar também de novos recursos lingüísticos, de outras variedades, principalmente das urbanas, de prestígio e da norma padrão tradicional, que ele só terá condições de conhecer por meio da escolarização.” (BAGNO, 2007, p. 34)
Levado em consideração o que estes dois autores apontaram, percebe-se que a escola não pode se isentar de, primeiro, valorizar o contexto lingüístico e social que faz parte da realidade de seus alunos; segundo, não pode abrir mão de apresentar a eles a norma padrão, que é utilizada em diversas situações do dia-a-dia em contextos formais.
“Algumas pessoas me dizem que a eliminação da noção de erro dará a entender que, em termos de língua, vale tudo. Não é bem assim. Na verdade, em termos de língua, tudo vale alguma coisa, mas esse valor vai depender de uma série de fatores. Falar gíria vale? Claro que vale: no lugar certo, no contexto adequado, com as pessoas certas, e mesmo no lugar errado, no contexto errado e com as pessoas erradas, se a intenção do falante for precisamente se contrapor à ordem estabelecida, às normas sociais convencionais. E usar palavrão? A mesma coisa.” (Bagno, 2007, p. 154)
Com estas explanações acerca da dicotomia valorização da língua materna/ aprendizado da norma culta fica claro que não é possível trazer essas questões para a sala de aula sem pensá-las criticamente. Com alunos pequenos, onde ainda não é possível falar abertamente sobre as implicações de se apropriar da norma padrão, essa aquisição pode ser feita sem tanta intervenção direta do professor. Permitindo que as crianças oralizem seus pensamentos e escreva de forma espontânea, essa percepção será adquirida aos poucos.
Já com os alunos maiores, é possível falar abertamente sobre o que está em jogo na aquisição da leitura e da escrita padrão e da noção sobre onde e quando se utilizar de sua fala comum.
Sobre valorizar a variedade lingüística de seus alunos, é importante pensar sobre o que os professores e a escola conhecem e discutem acerca da formação lingüística do Brasil, das classes populares e da formalização da norma culta.
Segundo Lucchesi, os afro-brasileiros, que em 1808 constituía metade da população do Brasil, difundiu por toda o território o português popular, um português bem diferente do falado e escrito pela elite colonial e pelo Império (p. 156).
Além disso:
“O desaparecimento das línguas africanas trazidas para o Brasil, bem como de variedades crioulizadas delas derivadas reflete, portanto, um longo e profundo processo de repressão cultural e simbólica a que foram submetidos os africanos e seus descendentes. Não obstante os significativos progressos alcançados nas últimas décadas, a identidade lingüística e cultural dos afro-descendentes ainda é objeto de atitudes discriminatórias no Brasil de hoje.” (p. 173)
Pensando no lugar que ocupa as escolas periféricas e na origem de seus alunos, refletir sobre a constituição da variedade lingüística em São Paulo e no Brasil é um exercício de valorização cultural e de empoderamento de uma classe social, que descende, em sua maioria, diretamente destes africanos discriminados desde a origem da escravidão no Brasil. Por isso, essa reflexão vai além do uso do português, está enraizado em questões de raça e preconceito racial, que marca tão fortemente o país até hoje.
Portanto, pensar criticamente sobre a língua oficial que nos foi imposta também deve fazer parte da educação em língua portuguesa. Lucchesi diz que:
“A subserviência lingüística não é apenas reflexo de um lastimável estado de espírito de submissão cultural e ideológica da elite brasileira aos modelos da dominação das grandes potências imperialistas, desde o século XIX até os dias atuais. Revela, sobretudo, um absoluto desprezo pelas coisas da terra e pela cultura nacional e popular. A adoção de um padrão normativo estranho à realidade lingüística do país integra um projeto elitista de poder e de exclusão social, no qual a grande maioria da população do país deve ficar fora dos centros de decisão política e da distribuição da riqueza nacional, até porque “nem sequer sabe falar o idioma pátrio”. O outro lado da moeda desse elitismo lingüístico é o pesado estigma social que recai sobre as variantes lingüísticas mais notáveis da fala popular brasileira.” (p. 158)
Permitir que os alunos pensem e valorizem sua própria fala, sua história e sua cultura é um passo muito importante. E permitir, em momentos de pesquisa e socialização na sala de aula, que estes mesmos alunos percebam a variedade lingüística presente em todo o país, que em algumas ocasiões está mais próximo do que muitos imaginam, presente na origem de parentes e de amigos; e em outras ocasiões está bem distante, como nas culturas indígenas, fortalece a identidade dessas diversas culturas.
Se por um lado, podemos pensar na prática docente que não leva em consideração a língua materna dos alunos, que a menospreza e ridiculariza dentro da escola, também existem muitos professores que também tem suas origens nas classes populares, e por isso, Bortoni-Ricardo nos alerta sobre a possibilidade de o professor simplesmente não identificar no aluno a falha no uso da norma padrão. Para ela, a estratégia do professor em frente ao mau uso na norma padrão deve conter a identificação da diferença e a conscientização da diferença:
“A identificação fica prejudicada pela falta de atenção ou pelo desconhecimento que os professores tenham a respeito daquela regra. Para muitos professores, principalmente aqueles que tem antecedentes rurais, regras do português próprio de uma cultura predominantemente oral são ‘invisíveis’, o professor as tem no seu repertório e não as percebe na linguagem do aluno, especialmente em eventos de fala mais informais.” (p.42)
Sobre conscientização:
“É preciso conscientizar o aluno às diferenças para que ele possa começar a monitorar seu próprio estilo, mas esta conscientização tem de dar-se sem prejuízo do processo de ensino/aprendizagem, isto é, sem causar interrupções inoportunas. Às vezes, será preferível adiar uma intervenção para que uma ideia não se fragmente, ou um raciocínio não se interrompa [...]”. (p. 42)
A partir dessas elucidações, estes dois pontos são novamente enfatizados: a importância de conhecer a origem de seus alunos e a sua própria origem (equipe escolar) a fim de valorizar esse lugar de pertencimento como um espaço de legitimação. E, como professor, se apropriar da norma culta, reciclando seus conhecimentos para apresentar aos seus alunos a maneira entendida como padrão para a comunicação em diferentes lugares formais com a sensibilidade necessária para não trazê-los prejuízos maiores no processo de identificação como sujeito ou para a aquisição das práticas de leitura e escrita.
Para concluir, ensinar alunos das classes desprivilegiadas a ler e escrever não poder ser um ato mecânico, precisa estar carregado de conhecimento sobre a norma culta e reflexão sobre o papel dessa língua na vida desses alunos.
Por isso, a cada aula o professor precisa permitir que os alunos se expressem sem medo de represália, de maneira livre, e que cada intervenção do professor seja feita de maneira sutil, a fim de não bloquear a livre expressão dos alunos e permitir que se apropriem de forma consciente da norma padrão sem prejuízo de sua identidade lingüística.
“Da parte do professor em geral, e do professor de língua em particular, essa mudança de atitude deve refletir-se na não aceitação de dogmas, na adoção de uma nova postura (crítica) em relação ao seu próprio objeto de trabalho.” (Bagno, 2007, p. 140)
REFERÊNCIAS
Bagno, M. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 2007.
Bortoni-Ricardo, S. M. A variação lingüística em sala de aula. In_____ Educação em Língua Materna: a sociolingüística na sala de aula. Rio de Janeiro: Parábola, 2004.
Lucchesi, D. Africanos, crioulos e a língua portuguesa.