Como e por que o ensino de Língua Portuguesa no Brasil passa de beletrista a procedimental

     A educação escolar no Brasil em seu início fazia uso ornamental e erudito do conhecimento, gerando uma monopolização dos saberes entre os mestres e sua clientela restrita e elitizada, que gozavam do status que aquela educação trazia-lhes. A escola requeria práticas de bem falar, descritivas e superficiais que cumpriam apenas uma função ornamental e hierárquica na sociedade (beletrista), refletindo a sociedade que ela mesma moldava.

     Após os anos 60, a configuração do regime militar e um crescimento econômico significativo, remodelaram o ensino, e as necessidades do quê, para quê e de como ensinar se alteraram. A expansão do acesso e da democratização do ensino, contudo, se marca com alta seletividade e exclusão.

     A partir da década de 70, as capacidades e competências comunicativas passaram a ser cada vez mais requeridas, sobretudo após a popularização da TV. O ensino da língua materna, então, foi amenizando seu caráter prescritivo e voltou-se para a conflagração de diversas vertentes de estudos que redefiniam sua função. Surgiram novos métodos de abordagem da língua e de seu ensino, como o textual comunicativo, o psicolinguístico e o interacionista que comprometeriam a exclusividade e rigidez da abordagem retórico-lógica. Além de refletir o caráter dinâmico e mutável da língua, isso demonstra que novas abordagens emergem a partir das necessidades sociais na qual a língua se insere.

     As necessidades impostas pelas mudanças (sociais, econômicas, filosóficas etc) remodelaram a língua portuguesa como objeto de ensino-aprendizagem, de modo que a própria noção de alfabetização se alargou. Não basta mais que os indivíduos consigam decifrar o código linguístico, mas que desenvolvam capacidades através da língua, indo além e desenvolvendo a partir dela, outras capacidades.

     Também o conceito de alfabetização teve de ser ampliado, com o aparecimento das teorias de letramento. Podemos entender letramento não apenas como a apropriação e o conhecimento do alfabeto, mas como o processo de apropriação das práticas socias de leitura e de escrita e, naturalmente, das capacidades nelas envolvidas. (ROJO, 2004, p. 3)

     O ensino indubitavelmente adotaria enfoque mais procedimental a partir dessa virada pragmática, pois a sociedade foi desvelando cada vez mais a sua diversidade, seu grafocentrismo emergente e sua necessidade de capacitar os cidadãos para as mudanças que ocorreriam a passos largos.

     Nossa época atual, entre outras coisas, se caracteriza pela diversidade, pela quebra de dogmas, relativização de certezas, pela instabilidade e interatividade. Compreensível, portanto, que não haja ainda um consenso, uma uniformidade homogênea de apropriação e de abordagem da língua portuguesa.


     A virada pragmática no ensino de português é um processo que esta se iniciando entre os professores, de modo que debates e pesquisas em torno dessa questão são essenciais. Se por um lado há problemas a serem vencidos no ambiente escolar, por outro, existem ainda pontos nebulosos nas proposições teóricas e há poucos resultados de pesquisas quanto ao desempenho das propostas. Contudo, o debate cresceu muito nos últimos anos em aspectos quantitativos e qualitativos. (BONINI, 2002, p.43)

     Novas perspectivas surgiram, algumas como releituras de perspectivas já existentes como a sócio-histórica e a cognitiva, num processo de interação e experimentação e as noções de letramento e de produção textual se desenvolveram. Esta última, mais que uma redação, não mais atrelada só a aspectos gramaticais e estruturais, mas considerada em amplitude, como produção de gêneros diversos, de discursos igualmente diversificados.

     Autorizadas pela abordagem bakhtiniana e por sua compatibilidade básica com as ideias de Vygotsky, vemos, ao final da década de 80 e nos anos 90, que alguns trabalhos realizam um deslocamento básico de interpretação, implicado na redefinição dos conceitos de linguagem e discurso (...) carregados de uma perspectiva comunicativa e funcional (...) foram relidos como produtos sociais postos em circulação social nas interações concretas emergentes em situações de produção (enunciações) específicas. (ROJO, 2003, p. 4)

     O embate vem crescendo, mas ainda nos vemos nessa “crise de linguagem”, como lembra Geraldi (1981) na discussão do quê, para quê e para quem ensinar. Discutimos se a língua deve ser priorizada como ferramenta comunicativa, meio de expressão, forma de interagir e agir no mundo, objeto de análise, instrumento para aquisição de competências e habilidades que a perpassem e a requeiram, forma de exercer autonomia e de circunscrever-se nas práticas sociais diversas. No entanto, ela de fato serve a tudo isto, de modo que, priorizando um ou outro ponto estaremos invariavelmente relegando os demais. Sem dúvida, ela é um meio de conhecermos nossa história e cultura refletida em seus textos, leituras e falares.
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ROJO, Roxane. Letramento e capacidades de leitura para a cidadania; Revista LAEL/PUC-SP, 2004. Retirado em: < http://ggte.unicamp.br/redefor3/cursos/diretorio/leituras_312_15//Rojo_2004.pdf?1320383592> Acesso em: 03/11/2011.
ROJO, Roxane. Revisitando a produção de textos na escola; In G. Rocha & M. G. Costa Val (orgs) (2003) Reflexões sobre práticas escolares de produção de texto – o sujeito-autor. BH: CEALE/AutIentica, pp. 185-205. Retirado em: Acesso em: 03/11/2011.
BONINI, Adair. Metodologias de ensino de produção textual: retrospectiva e perspectivas da enunciação e o papel da Psicolinguística . Revista Perspectiva, Florianópolis, 2002. GERALDI, João Wanderley (organizador);
ALMEIDA, Milton José de. O Texto na sala de Aula. [et.al.]. 4 ed. – São Paulo, 2006.