O Entrudo na Província do Amazonas
“O carnaval com o seo cortejo de folias,
caretas e momices, nos bate á porta; mesmo já nos parece ouvir
um desconchavado você me conhece, d’algum ratão coberto de
trapos e burundangas, cujo espirito o barometro gradua zero”.
Chronica. Esperança: Periodico litterario e critico do Amazonas
21/01/1877.
“Pedimos a polícia providências”, escreveu o redator do jornal A Voz do Amazonas sobre os mascarados que saíam nas ruas das vilas da província durante a realização do entrudo, folguedo popular de raízes ibéricas coloniais marcado por brincadeiras informais em que valia tudo, desde o arremesso de limas com água perfumada até ovos podres, trigo e tinta. Ele salienta também que na Europa e na corte do Rio de Janeiro haviam bailes mascarados, os “bailes masqueés” (1), mas que estes eram vigiados pela polícia, e que só se poderia utilizar máscaras no recinto em que estava sendo realizada a festa.
O entrudo, do latim introitu, uma introdução à Quaresma, começava pela madrugada. As limas, laranjas e limões de cheiro, feitas com cera derretida em formas e onde eram colocados diferentes tipos de líquidos (água, água aromatizada, urina, tinta etc), eram previamente preparadas pelas donas de casa, escravas e agregados. Se a residência tivesse dois pisos, seus moradores dirigiam-se para o segundo e, quem passasse pela rua, era atingido por esses objetos. Esse era o entrudo familiar, privado. Nas ruas ocorria o entrudo mais popular, uma verdadeira guerra em que participavam tapuios, brancos e escravos, arremessando uns nos outros pó de arroz, trigo, tinta, água, ovos podres e o que tivessem em alcance.
Na Lei N° 101 de 08 de julho de 1859, em que foi aprovado o Regulamento n° 10 de maio daquele ano, para o Colégio de Nossa Senhora dos Remédios, os dias de realização do entrudo são considerados feriados, ao lado dos “dias santos de guarda, os de festa nacional, ou provincial marcados por Lei, os de lucto nacional declarados pelo Governo […] os de quarta feira Santa até o domingo da Paschoa, e os que decorrem desde 20 de dezembro até 6 de janeiro” (2). A festa, ou jogo, como também era chamado, era realizada costumeiramente de segunda até quarta-feira, mas também poderia ocorrer em dias variados.
Até determinado período do século XIX existia a separação entre o ‘entrudo’ e o ‘carnaval’. O Entrudo era mais popular, desorganizado, enquanto o carnaval era sinônimo de festa mais organizada, destinada às elites. Os termos entrudo e carnaval, na segunda metade do XIX, passaram a confundir-se. Talvez tivessem o mesmo sentido. As ‘providências’ pedidas pelo redator parecem que ainda não tinham sido tomadas. Em 1867, no jornal Amazonas, comemorava-se que o Carnaval daquele ano “esteve como sempre, alegre, e folgasão: alem dos mascarados que na tarde de domingo e terça-feira percorreram as ruas, tivemos alguns bailes dados por uma sociedade; bem como no salão do sr. Pingarilho, que sempre proporciona aos diletantes estes bellos passatempos” (3).
Se até aquele momento essa prática festiva era tolerada, a introdução de novas práticas culturais consideradas mais refinadas, como os bailes mascarados, privados, realizados em estilo francês ou veneziano, fizeram os dirigentes da província tomar medidas que combatessem o que passava a ser considerado impróprio e nocivo para os novos padrões. Em 1870, na Vila de Serpa, o entrudo é proibido, como ficou estabelecido no Art.20 do Código de Posturas: “Á ninguém é permittido andar pelas ruas e lugares publicos jogando o entrudo, nem das casas lançar cousa alguma sobre os viandantes, sob pena de incorrer cada um dos infractores na multa de cinco mil réis, ou dous dias de prizão” (4). Os escravos que fossem encontrados na rua a partir das 21 horas até o amanhecer, se não estivessem com as autorizações escritas de seus senhores, com a declaração do nome do escravo, seriam presos. Em 1872, no Código de Posturas Municipais de Silves, ocorre o mesmo (5). No mesmo ano, no Código de Posturas Municipais de Manaus, no Art. 82, ficou determinado que:
Art. 82 - E’ prohibido andar-se pelas ruas e logares publicos á jogar entrudo ou lançar alguma cousa sobre os transeuntes.
Pena de dez mil réis de multa ou tres dias de prisão.
§ 1. - Permitte-se as mascaradas e danças carnavalescas, de modo que não se offenda a moral tranquilidade publica e não contenhão allusão as autoridades ou a religião.
§ 2. - Pelas ruas, praças e estradas da cidade não transitarão pessoas mascaradas depois do toque de – Ave Maria – salvo os que tiverem para isso licença da autoridade policial. Os infratores incorrerão na multa de cinco mil réis ou dous dias de prisão (6).
No Código de Posturas de 1875 o texto permanece quase que inalterado, com exceção de algumas mudanças:
Art. 91 – E’ prohibido andar-se pelas ruas e lugares publicos a jogar entrudo, ou lançar sobre os transeuntes alguma cousa que possa prejudical-os, sob pena da multa de dez mil réis ou três dias de prisão.
§ 1. - Permitte-se as mascaradas, dansas carnavalescas de modo que não offendam a moral, a tranquillidade publica e não contenham aluzões á religião, ás autoridades ou a pessoas gradas, sob pena da multa de dez mil réis ou três dias de prisão.
§ 2. - Pelas ruas, praças e estradas da cidade não transitarão pessoas mascaradas depois do toque de – Ave Maria – salvo tendo para isso licença por escripto da autoridade policial. O infractor será multado em cinco mil réis ou vinte e quatro horas de prisão (7).
Interessante notar as proibições sobre a religião, as autoridades e as pessoas da elite. Nas pequenas vilas da Província, onde a vida social estava centrada nas modestas paróquias, no acanhado comércio e por onde corriam facilmente os boatos, era difícil que algo passasse despercebido por seus habitantes. A época do entrudo era a oportunidade para se fazer zombarias com escândalos envolvendo religiosos, autoridades políticas e militares, e membros da alta sociedade. Ferreira Penna & Companhia tinha um grande e variado sortimento de máscaras em sua loja, das mais requintadas até as “nunca esquecidas caricatas” (8).
Locais “apropriados” foram construídos para a realização do carnaval. Em 1872 Demetrio Antonio Peixoto apresentava a sua ‘Nova Sociedade Carnaval Amazonense’, instalada em seu hotel de nome Amazonas, na rua do Imperador, onde passaria a receber as famílias da sociedade “[…] em lugares decentemente decorados e independentes n’ uma extensa galeria no primeiro grande salão collocada, aonde os Srs. Elegantes phantasiados formaráõ o primeiro divertimento”. Em um segundo salão os participantes poderiam encontrar um toilete e, em outras câmaras iluminadas, “[…] reffrescos, fiambres, salames, chá, chocolate, café, cerveja, tortas, queijos de diversas qualidades, tudo pelos preços estabelecidos, e equidade” (9). A tabela de preços para os participantes estava dividida da seguinte forma:
“Senhoras – Grátis
Cavalheiros – 2$000
Phantasiados (par) – 3$000
Ditos (singularmente) - 2$000” (10)
Essas proibições já vinham ocorrendo há tempos em outras províncias, tendo iniciado no Rio de Janeiro. O caráter privado e elitista ganhou cada vez mais espaço. Os jogos ficaram restritos ao ambiente familiar, impondo dessa forma a separação entre os grupos que antes festejavam entre si. Os que tivessem maior poder aquisitivo podiam recorrer às lojas especializadas na venda de artigos para a festa. O senhor Santos, no canto da rua Brasileira, oferecia roupas à fantasia, tendo “23 costumes, tanto para homens como para senhoras […] feitas na França, algumas novas, outras com pouco uso” (11). Theresa Pereira Tavares, a Teté, em sua loja na rua da Instalação, tinha por volta de 1879 um rico e variado sortimento de máscaras, “fantasias de pierrôs, vivandeiras e chicard de cetim bordado” (12). Em um anúncio de 1881, a Loja Brinquinho, na então rua da Matriz, anunciava a “Alta novidade para o carnaval”, pois acabara de receber “um grande sortimento de bisnagas com os mais finos extractos e pós de arroz, próprias para jogar o entrudo em casas de familia” (13).
As festas, agora, tinham início e fim para acabar, como ficou estabelecido nas alterações de 1879 no Código de Posturas de Manaus, indo “desde a Dominga de Quinquagesima até as 11 horas da noite de terça-feira, véspera de quarta-feira de Cinza” (14). Em 1884, prestes a começar o Carnaval daquele ano, a Secretaria de Polícia, por ordem do chefe de polícia, publicou as disposições do Código de Posturas Municipais sobre os festejos. Em parte ele ainda lembrava os de 1872 e 1875, mas tinha acrescidas novas proibições e punições:
Art. 81. Todo aquelle que insultar com palavras ou acções á qualquer pessôa, será multado em 20$000 rs ou 5 dias de prisão. Art. 91. E’ prohibido andar-se pelas ruas e lugares publicos a jogar entrudo, ou lançar sobre os transeuntes alguma cousa que possa prejudical-os, sob pena da multa de 10$000 ou 3 dias de prisão. 1° Permitte-se as mascaradas, danças carnavalescas, de modo que não offendam a moral, a tranquilidade publica e não contenham allusão á religião, ás autoridades ou á pessoas gradas sob pena da multa de 10$000 rs, ou 3 dias de prisão. 2° Pelas ruas, praças e estradas da cidade não se andará com mascaras na cara depois das ‘Ave Marias’, salvo tendo para isso licença por escripto da autoridade policial. O infractor será multado em 5$000 rs ou 24 horas de prisão (15).
Nos bailes, os que perturbassem a ordem ou não se portassem como pedia a ocasião seriam retirados do recinto, como ficou instituído em um antigo regulamento dos tempos da Comarca do Alto Amazonas, de N° 120 de 31 de Janeiro de 1842. A prática do entrudo continuaria nas décadas seguintes, assim como as investidas para a sua proibição e minimização, de forma a tornar o Carnaval uma festa popular sadia, ou, pelo menos, passar essa imagem. No grande Carnaval de 1905, retratado em pinturas, desenhos e fotografias, por exemplo, um cidadão foi multado em 50$000 réis por estar praticando, com um grupo de foliões, o entrudo em cima de um caminhão na Avenida Eduardo Ribeiro; e outro por “consentir que de sua casa se entrudasse os transeuntes com água suja” (16).
No Amazonas e no restante do Brasil, o Carnaval realizado desde o início do século XX guardou inúmeras práticas do antigo entrudo ibérico colonial, prevalecendo a tomada das ruas por foliões que realizam toda a ordem de brincadeiras, zombarias, sátiras e danças. Os Códigos de Posturas já não são mais uma ameaça aos brincantes, mas, assim como o entrudo foi mal visto no passado por parte dos dirigentes e das elites, o Carnaval é alvo da reprovação por parte de alguns paladinos da ‘moral e dos bons costumes’.
NOTAS:
1 A Voz do Amazonas, 03 de Fevereiro de 1867.
2 Lei N° 101 – de 8 de Julho de 1859. Regulamento N° 10 de 7 de Maio de 1859, para o Collegio de Nossa Senhora dos Remédios. Estrella do Amazonas, 7 de Setembro de 1859.
3 Amazonas, 07 de Março de 1867.
4 Amazonas, s.d., 1870.
5 Amazonas, 18 de Maio de 1872.
6 Amazonas, 03 de Julho de 1872.
7 Amazonas, 30 de julho de 1875.
8 Amazonas, 19 de Janeiro de 1879.
9 Amazonas, 17 de Janeiro de 1872.
10 Amazonas, 24 de Janeiro de 1872
11 Amazonas, 01 de Janeiro de 1879.
12 Amazonas, 31 de Janeiro de 1879.
13 Amazonas, 18 de Fevereiro de 1881.
14 Amazonas, 8 de Junho de 1879.
15 Amazonas, 01 de Janeiro de 1884.
16 Jornal do Comércio, 28 de Fevereiro de 1905.