História do bairro de São Francisco (1950-1960)

Ainda paira sobre inúmeros bairros de Manaus a nuvem escura do esquecimento, das origens incertas, de uma identidade ainda não forjada ou identificada. As dificuldades são de vários tipos, indo do acesso às fontes (documentais, orais) até os meios para produzir e divulgar trabalhos. Não faltam historiadores dispostos a usar suas penas para dar vida aos resquícios do passado dos bairros da cidade.

No texto de hoje tentarei apresentar as origens remotas do bairro de São Francisco. O bairro de São Francisco está localizado na zona Centro-Sul de Manaus, fazendo limites com os bairros da Cachoeirinha, ao sul; de Petrópolis, a leste; de Adrianópolis, a oeste; e Aleixo, a norte. Focarei apenas nas duas primeiras décadas de sua existência, entre 1950 e 1960.

As primeiras ruas do bairro de São Francisco começaram a ser abertas por volta de 1950, sendo os trabalhos concluídos em 1954. Desse trabalho, que era realizado dia após dia, surgiram 109 ruas e 15 praças, algumas mais tarde incorporadas ao bairro de Petrópolis. Das primeiras vias públicas, muitas com a nomenclatura alterada há décadas ou mesmo desaparecidas, podem ser citadas as ruas Temistocles Trigueiro, General Carneiro, Hamilton Mourão, Waldemar Pedrosa, Plínio Coelho, Oséas Martins, Arnaldo Péres, Armando Menezes e Jorge Abrahim. Entre as praças que existiram, a Jovino Lemos, Oscar Rayol, Jayme Araújo, Coari e Gama e Silva.

Em 1952 o senhor Oscar Meneses foi indenizado em 50.000 cruzeiros por um terreno que foi aproveitado para a construção do bairro de Petrópolis. No local foram abertas as ruas Leandro Antony, Praça Gama e Silva, Coriolano Lindoso, Fausto Maia, Raul Antony e Marques da Silveira. Nesse mesmo ano é criada a Associação Beneficente dos Amigos do Bairro de São Francisco (ABABSF).

Nesse período a população do bairro era estimada em 4.000 habitantes, existindo cerca de 800 casas. O que surgia ali não era apenas um bairro, mas um empreendimento, um grande empreendimento, que teve como autor Alexandre Pereira Montoril (1893-1975). Alexandre Montoril nasceu na cidade de Assaré, Distrito do Crato, no Ceará, vindo para Manaus em 1912. De acordo com Archipo Góes, autor de Nunca Mais Coari: a fuga dos Jurimáguas, Montoril foi prefeito de Coari por 15 anos, em três intervalos de tempo, entre 1932-36, 1936-39 e 1939-47. Em 1947 foi eleito deputado estadual.

Enquanto deputado estadual, Montoril decidiu, para dar assistência às famílias que já moravam no local, formadas por nordestinos e pessoas vindas do interior do Estado, criar um bairro naquelas terras afastadas da área urbana. O nome pensado para aquele núcleo seria Coari, em homenagem à cidade que geriu por décadas, mas um fato ocorrido em 1951 mudou os planos. O deputado, naquele ano, junto dos homens da equipe de obras, andava pela mata quando encontrou, deitado sobre uma cama de varas, um senhor de nome Luís de Sousa, rezador. O deputado perguntou se ele estava dormindo, no que Sousa respondeu que estava conversando com São Francisco. Montoril perguntou o que o santo tinha falado. O rezador disse que, em uma capoeira, seria erguida uma capela em honra ao orago. Dessa forma, Alexandre Montoril decidiu batizar o bairro com o nome de São Francisco. Restou da primeira homenagem o nome da praça onde foi erguida a igreja primitiva, Praça Coari.

A História da aparição de São Francisco é um exemplo da forma como os bairros de Manaus eram fundados no passado, quando a maior parte da população era Católica, sob a égide da proteção de um santo ou santa e com uma capela ou paróquia no centro da vida da comunidade.

Como estrutura básica, foram construídos um posto policial, um posto médico e algumas escolas. O posto médico foi inaugurado em 1954, sendo denominado José Francisco da Gama e Silva, por este ter, enquanto governador em exercício, doado 10.000 cruzeiros para a sua construção. Ele foi instalado em uma modesta casa de madeira, custando o total de 17.000 cruzeiros. As escolas construídas foram a Raul Antony e Clearco Antony, esta última dirigida pela professora Francisca Simões do Nascimento. Alexandre Montoril conseguiu 60.000 cruzeiros, verba federal, para a realização dessas obras, também utilizados na compra de medicamentos, para o pagamento dos funcionários das escolas e para a compra de madeira utilizada na construção de casas.

A Igreja de São Francisco, erguida na Praça Coari, recebeu o auxílio dos padres do bairro de Adrianópolis. Para tal, Montoril recebeu 1.730 cruzeiros de doações dos deputados da Assembleia Legislativa, valor entregue aos religiosos. Para a região vizinha, Petrópolis, foi reservada uma área de 1.600m² para a construção da Igreja de São Pedro Apóstolo, trabalho entregue nas mãos dos padres Redentoristas, que a concluíram na década de 1960.

O cemitério do bairro, que seria denominado São Pedro, que não chegou a ser construído, ficaria entre as ruas Mário Ypiranga, a norte; Danilo Corrêa, a leste; Oyama Ituassú, a sul; e José Florêncio, a oeste. A área compreendida media aproximadamente 12.000 m².Em 1955 um grupo de moradores do bairro foi até o Palácio Rio Negro pedir o estabelecimento de uma linha de ônibus na comunidade, no que passaram a ser atendidos pelo ‘Radiant’. Por volta de 1965, na administração de Paulo Pinto Nery, a Prefeitura deu início à construção do Mercado de São Francisco, que foi inaugurado em 6 de setembro de 1966, substituindo a antiga feira improvisada.

Aquele novo bairro ao norte da Cachoeirinha chamava a atenção de várias pessoas de outros bairros e que chegavam na cidade. Os amplos terrenos e a vizinhança eram um atrativo. Nos jornais antigos é possível encontrar vários anúncios de compra e venda de casas, de madeira e palha, algumas já com telhas, e de terrenos, todos podendo ser pagos em leves prestações.

Assim como outros bairros nascentes entre as décadas de 1950 e 1960, São Francisco era alvo dos políticos que buscavam votos para eleições ou reeleições. Membros do PTB, como Gilberto Mestrinho e Plínio Coelho, realizavam comícios em suas ruas, bem como do PSD, do PST (1946-1965) e do PSB. Também movimentavam o bairro os campeonatos de futebol e vôlei organizados pela Associação Esportiva São Paulo e pelo Grêmio Esportivo São Francisco; as procissões, festas do Divino Espírito Santo e as festas dadas no ‘Club de São Francisco’. Em 1961, na administração estadual de Gilberto Mestrinho, foram inauguradas a Quadra de Esportes Thomé Medeiros; a Organização Social da Família do Amazonas; e a escola Dom João de Souza Lima.

Em 1966 as ruas do bairro tiveram os nomes alterados. Através do Decreto Municipal N° 5, de 26 de janeiro de 1966, ficou estabelecido o seguinte: Arthur Cézar Ferreira Reis para Coronel Conrado Niemeyer, Paulo Nery para Cônego Manoel Monteiro, Aderson de Menezes para Thomaz do Amaral, Francisco Pinheiro para João Dias Vieira, Jackson Cabral para Manuel Corrêa de Miranda, Anísio Jobim para Crisanto Jobim, Luiz Marinho para Silval de Moura, Waldemar Cardoso para Adolfo Lacerda, Paulo Rezende para Dr. Aristides Rocha, Ney Rayol para Coronel Ferreira de Araújo, Arthur Virgílio para Rodrigues do Carmo, Dona Raquel para Cel. Basílio Pirro, Zulmar Bonates para Bernardo Michiles, Francisco Plínio Coelho para José da Gama e Abreu, Arlindo Porto para Pereira do Rego, Sergio Neto para Areal Souto, Licurgo Cavalcante para Carneiro da Cunha, Ramayana Chevalier para Ferreira Sobrinho, Pogy Figueiredo para Cel. Miranda da Silva Reis, Coriclano Lindoso para Monteiro Peixoto, Leandro Antony para Antonio dos Passos Miranda, João Crisóstomo para Ribeiro Guimarães, Walter Rayol para Domingos Monteiro, José Amâncio para Agesilau Pereira da Silva, Áurelo Melo para Barão de Maracajú, Plínio Coelho para Clarindo de Queiroz, Cel. Luís Carlos para Oliveira Dias, Álvaro Sifrônio para Alarico José Furtado, Cosme Ferreira para Vasconcelos Chaves, Manuel Barbuda para Monteiro Neto, Cel. Temístocles Trigueiro para Nuno de Melo Cardoso, Waldemar Pedrosa para Senador Leitão da Cunha. Oseas Martins para Jonas da Silva, André Araújo para Ayres de Almeida, Ruy Araújo para Joaquim Tanajura, Álvaro Maia para Valério Botelho de Andrade, Vivaldo Lima para Negreiros Ferreira, Moacir Rosas para Nilo Guerra, Amaro Lima para Francisco José Furtado, Antonio Maia para Franco de Sá, Ferreira da Silva para Maranhão Sobrinho, João Veiga para Paes de Andrade, Edson Melo para Tito Bittencourt, Xenofonte Antony para Sátiro Dias, Márcio de Menezes para Guerreiro Antony, Pereira Júnior para Ernesto Chaves, Fausto Maia para Adelaide Gonçalves, Gama e Silva para Dr. Almir Pedreira, Wilson Calmon para Dr. Agenor Magalhães, Samuel Zuani para Barbosa Rodrigues, Walter Zuani para Pimenta Bueno, Salvador Macedo para Lopes Braga, Geraldo Costa para Cardoso de Andrade, Arnoldo de Menezes para Francisco Machado, Jovino Lemos para Gabriel Filgueiras, Nuno Cardoso para Atayde Verona, Luís Cavalcante para Tinoco Valente e Olenka de Menezes para Custódia Lima. Permaneceram inalteradas a Virgílio Barros, Arnoldo Peres, Tomás Meirelles, Gualter Marques Batista, Alfredo Barreto, Araújo Filho, Cel. Manuel Corrêa, Hamilton Mourão e Nicolau da Silva.

Alexandre Montoril, além de político, também se arriscava na arte poética. Aliás, uma das fontes mais interessantes sobre os primeiros anos do bairro é um longo poema seu intitulado História do bairro de São Francisco, publicado no Jornal do Comércio em 23 de fevereiro de 1958.

HISTÓRIA DO BAIRRO DE SÃO FRANCISCO

Eu quisera ser poeta

De sublime inspiração,

Ou trovador repentista

De grande imaginação,

Que eu gravaria em disco

A história de SÃO FRANCISCO,

Sem temer correr o risco

De passar decepção.

Foi no ano de cinquenta

Da era que vai passando

Que iniciei esse bairro

Cuja história estou contando

Sob o influxo divino,

Em função do meu destino

Agindo com muito tino,

No povo sempre pensando…

O bairro de SÃO FRANCISCO

É uma revelação

Do quanto pode a loucura

Da minha dedicação

Em favor de tanta gente,

Para mim indiferente,

De política independente

Que precisava de chão.

Foi ao norte de Manaus,

Nas terras da Prefeitura

Que se travou esta luta

De ideal e de bravura,

Fortalecendo-me a crença

De que naquela área extensa

Coberta de mata densa,

Fundar um bairro a altura,

- O maior dos de Manaus,

O mais simpático também,

Com a ZONA DE PETRÓPOLIS

Outro igual Manaus não tem;

- Porque a coisa quando é boa

Que Deus do céu abençoa,

- A má vontade é a toa

Não tem valor o desdem…

E o bairro de SÃO FRANCISCO

É essa coisa invulgar

Que o gênio da poesia

Não me permite cantar;

E para que não pareça

Que por isso eu o esqueça

- Antes que tal aconteça

- Sua história eu vou contar:

Eu era então deputado,

Sentindo as ânsias do povo

Devolvi-lhe os meus proventos:

- Construindo um bairro novo.

Mas, talvez por fatalismo

Eu cai no ostracismo;

Mas não renego o civismo,

- E confio ainda no povo!…

Esse bairro é um milagre,

Só a ideia é que foi minha,

E quem sabe se até isso

De SÃO FRANCISCO não vinha?!…

- Pois a minha resistência,

Nessa obra de paciência,

Demonstra com evidência,

Que outra origem não tinha…

São Francisco apareceu

No local da sua ermida,

Dizendo que nesse ponto

Seria a mesma erigida:

Seu Luiz um rezador,

Homem sério sim senhor,

De moral reconhecida.

Eu chegava nesse instante,

(Era um dia de verão)

Quando ele me contou

Inda cheio de emoção

A aparição que viu.

- Eu senti um arrepio

Não calor nem frio

- Mas estranha sensação.

Acreditei na história

E disse na mesma hora:

- Seria Coari o bairro,

Mas é SÃO FRANCISCO agora;

Deste então no meu caminho

Não vi pedra nem espinho,

Não estava mais sozinho

- Tinha o Santo por escora…

E assim o nosso bairro

- Foi avançando p’ ara Oeste

Té à rua Paraíba;

E do lado oposto, a Leste,

Em Petrópolis, já no fim,

Atingiu o JAPIIM,

Limitando o bairro assim,

Com um areial agreste.

À Sul a rua Belém,

Onde o bairro começou,

- É a divisa mais bonita

Que SÃO FRANCISCO encontrou;

É justo que se assinale

Que a rua COUTO VALE

(Para que nele se fale)

Com SÃO JORGE limitou…

Os seus limites ao Norte,

- Das nascentes do SEGUNDO

Seguem de Leste a Oeste,

Como uma linha de fundo;

As terras do lado além,

Que a mesma posição tem

Limitam o bairro também…

Mas quase se acaba o mundo…

Também na parte Sul

Com a Granja BOM FUTURO,

O bairro fecha o polígono

- Num limite mais seguro;

Nesse ponto o SANATÓRIO

Teve um gesto meritório

- Junto e conciliatório,

Colaborando no “duro”.

O bairro que foi traçado

Dentro dum alto critério,

Tem cem ruas quinze praças,

Foi trabalho muito sério;

Com terrenos reservados,

Que deixei lá demarcados

Para postos e Mercados,

Cinemas e cemitério.

Essa reserva de terras

De pública utilidade,

Não tem sido respeitada

Na sua totalidade:

Porque então senhor Prefeito,

Que é um homem de conceito,

Permite a qualquer sujeito,

Ser ali autoridade?!…

O bairro de SÃO FRANCISCO

Tem uma Sociedade

Que pode bem dirigi-lo

Com mais capacidade

E modo eficiente,

Maneiroso e paciente

E de personalidade.

É preciso que esse bairro

Que em parte luz já tem,

Seja visto com carinho

Para ter água também;

Andei por lá outro dia

Enaltecendo o que via,

Mas seu povo me dizia:

Água aqui… ainda não tem…

Demos água a SÃO FRANCISCO

E transporte eficiente,

E à ZONA DE PETRÓPOLIS

- Uma luz resplandecente;

- Se eu fosso deputado,

Seria desassombrado

Agindo por todo lado,

- Em favor daquela gente…

Outro dia em SÃO FRANCISCO

Eu fiquei maravilhado:

Como aquilo está bonito

E o seu povo, animado!

- Gentes que eu não conhecia

Mostravam sua alegria,

- Há três anos que eu não ia

P’ ras bandas daquele lado…

Já que estou fazendo história

Vou agora esclarecer:

Que eu deixei o SÃO FRANCISCO

Mas não posso o esquecer;

- O tempo pode passar,

- A vida pode cessar,

- Tudo pode se acabar…

Mas o bairro há de viver!…

PETRÓPOLIS e SÃO FRANCISCO

Ninguém deve separar;

- São uma e a mesma coisa

Têm que juntos caminhar:

- Na estrada do trabalho,

Quais flores do mesmo galho,

Ou gotas do mesmo orvalho,

Sempre unidos, a marchar…

É tempo de terminar

Pois já está chegando a hora

Em que o Sol vai se deitar

P’ ra acordar com nova aurora.

Encerrando esta história

Pra mim uma vitória

Vou repousar a memória

Porque a musa foi-se embora…

Alexandre Pereira Montoril. Manaus, 13/02/1958

Essa foi uma tentativa de apresentar, de forma concisa, as primeiras décadas de existência do bairro de São Francisco. Muitos elementos ficaram dispersos na narrativa. Considero que um bom trabalho sobre as origens históricas de bairros e comunidades, além de estar assentado sobre fontes documentais, precisa dos relatos orais, dos depoimentos daqueles que foram testemunhas dos primeiros tempos, que vieram em ondas migratórias, que fizeram casas e ruas inopinadas, para que se penetre mais intimamente na trajetória coletiva desses lugares.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

GÓES, Archipo. Nunca Mais Coari: a fuga dos Jurimáguas. Coari, Amazonas, 2016.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro Histórico de Manaus. Manaus, Editora da Universidade do Amazonas, 1998.

FONTES:

Jornal do Comércio, 07/09/1954

Jornal do Comércio, 13/02/1958

Jornal do Comércio, 01/02/1966

Jornal do Comércio, 14/07/1967

Mensagem da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, 15/03/1953

Mensagem da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, 15/03/1954

Mensagem da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, 1957

Mensagem da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, 1958