O menino, o vento e a pipa: uma reflexão

Acredito que o início desta reflexão parte necessariamente da frase final do texto de Alfomali e Faria: “Na vida, é preciso insistir”. Talvez, direcionar o olhar para algo diferente do que já visto, enxergar sob um ângulo totalmente diferente do original, sair completamente do marasmo e da rotina cotidiana, enfim, pequenas mudanças de atitude podem sim ser motivadas por pequenas experiências.

É exatamente nisto que o texto “O Menino, o vento e a Pipa” nos leva a crer. Ele nos apresenta um menino chamado João. João era um menino que possuía uma capacidade incrível de sonhar, e fundamentalmente, por este motivo, era tido por todos como ‘João – o Sonhador’. João, o Sonhador, possuía uma imaginação fértil. Embora com atitudes idênticas a muitas crianças que fazem do lúdico o seu caminhar cotidiano, João era determinado. Não se cansava, não se deixava abater. Adotava o princípio de que as coisas são vistas da maneira como desejamos vê-las. Dizia: “Se você quer ver uma galáxia, é só olhar pelo céu pela janela e pronto, ela está lá”. As visões conscientes do imaginário levavam João a viver de forma diferente, a ver o que poucos viam, a acreditar em um mundo mágico. O mundo para ele era mágico como sua pipa. Por mais que a pipa teimava em não ganhar altura, o menino não recuava de seu intento. Tentava por vezes, a pipa caia, ele caia, mas João continuava até que, “segurou bem alto, correu até sentir o vento e soltou a pipa no ar. A pipa subiu, subiu, subiu... e continuou ganhando altura”.

Era clara a intenção do texto de comparar a pipa com a vida , como clara também eram as intenções do narrador em colocar o leitor como observador de um mundo mágico e repleto de esperanças. João, o Sonhador era dotado de compaixão, de esperança e de agradecimento por sua vida. A nota final do texto surpreende. O menino vivia em uma instituição para meninos portadores do vírus HIV . Mas sua dor não transpareceu em momento algum naquelas escritas. Sua bravura e sua felicidade causam embaralho na cabeça do leitor e produzem borboletas em seu estômago, afinal, qual motivo teria João em ser esperançoso para com a vida? Certamente o menino não tinha família, não tinha lar. A Instituição era seu mundo e os meninos com sua condição, o seu sentido de viver. Ser criança (por não se sabe quanto tempo), era um alento. Um mundo fora do mundo, uma realidade mágica.

João estava em uma Instituição que certamente acolhia crianças doentes. Existia uma inclusão de excluídos dentro daqueles muros. Nas limitações de sua estadia, o que se percebe é que João era uma criança feliz, compreendida, respeitada pelos seus pares. Embora excluído da sociedade, foi incluído em uma instituição e estava feliz. Podia se dar ao luxo de sonhar, de brincar, de ser criança. Óbvio que não é muito, mas para João, as paredes daquela Instituição era o seu castelo. “Cada quarto, cada corredor, a biblioteca, a sala .... Cada aposento era, em dados momentos, seu esconderijo, suas passagens secretas, sua fortaleza,, seu mundo, seu sonho” (MICHALISZIN, 2012).

Tive oportunidade de conhecer crianças como ‘João – O Sonhador’ na cidade de Ribeirão Preto no ano de 2000. O local comportava também crianças portadoras do vírus HIV . Quando adentrei naquele local, todas as crianças vieram receber-me com um abraço. Um forte abraço. Eram carentes, mas estavam felizes. Não existia um menino em questão. Todas disputavam minha atenção. Queriam ser minhas amigas, talvez minhas filhas, ou apenas, serem enxergadas (quem sabe). O local era dotado de profissionais competentes, com infra-estrutura condizente e com pessoas capazes de confortar os pequenos, ao menos em suas mínimas necessidades materiais. Mas, como no texto, havia respeito e compreensão pela condição daquelas crianças. Existia uma percepção de uma diferença , uma diferença que a sociedade impunha a eles pela doença, embora os profissionais a todo momento os incluísse, inclusão geradora de conforto e compaixão.

Fiquei no local a tarde toda de um dia de novembro. Os meus problemas tornaram-se pequenos perto dos deles. Subitamente, descobri que poderia ser mais feliz com o que tinha, pois eram felizes mesmo com o que não tinham. Atordoou-me aquela visita, mas no sentido da positividade.

Maria Lúcia Sartoretto diz que:

A inclusão só é possível lá onde houver respeito à diferença e, consequentemente, a adoção de práticas pedagógicas que permitam às pessoas com deficiências aprender e ter reconhecidos e valorizados os conhecimentos que são capazes de produzir, segundo seu ritmo e a medida de suas possibilidades (2008, p.77).

Neste raciocínio, observei na Casa Caio um respeito àquelas crianças que a sociedade teimou em separar de seus semelhantes. Lá, compreendi que o respeito é caminho para a inclusão, que uma pedagogia voltada àqueles considerados “diferentes” faz sentido e liberta.

Crianças como João (O Sonhador) estão por toda parte. Eles fazem com que a maquinaria social fique mais leve. Produzem sorrisos e mesmo entre suas mazelas, se positivam, são felizes, acolhem intrusos. Não são diferentes, como não o são, qualquer deficiente. A mentalidade secular de normalidade não resiste a eles. Sua pureza coloca a sociedade de joelhos e sua alegria faz-nos desejar um mundo repleto de ‘Joãos’ – todos sonhadores.

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Referências:

SARTORETTO, Maria Lúcia. Inclusão: da concepção à ação. In: MANTOAN, Maria Teresa Eglér (org.). O desafio das diferenças nas escolas. Petrópolis: Vozes, 2008.

MICHALISZIN, Mário Sérgio. Educação e Diversidade. Curitiba: InterSaberes, 2012.

PINTO, Céli Regina Jardim. Teorias da democracia: diferenças e identidades na contemporaneidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

SILVÉRIO, Valter Roberto. A (re)configuração do nacional e a questão da diversidade. In: ABRAMOWICZ, Anete; SILVÉRIO, Valter Roberto (orgs.). Afirmando diferenças: montando o quebra-cabeça da diversidade na escola. Campinas: Papirus, 2005.