ENSINO, VOZ

Quando a gente sai da escola, escolhe muito cedo o que, dizem alguns, será quando crescer. Dizem que o curso que escolhemos define o que seremos. Quando o dizem assim, como se vida fosse uma progressão linear, na qual é preciso se apressar e “crescer na vida”. E seria cruel – na verdade é, só que cai na naturalidade – que se cobrasse de alguém tão novo, que “defina sua vida”, quando o que a pessoa tem por base é o total desconhecimento, uma pesquisa no Google ou, nos casos de sorte, alguém de referência próximo. No meu caso, que venho de família na qual não era comum pessoas terem nível superior, foi no terceiro ano, em meio a alunos e professores atormentados (positiva e negativamente) com a ideia do vestibular, que, pela primeira vez, tive algum vislumbre sobre como se formam certos profissionais. Sim, eu não sabia sequer que era preciso passar por uma prova e que se fazia um curso de cerca de 4-5 anos. Não sabia, porque, em meu contexto, nunca aconteceu de pensar sobre isso.

Dei muita sorte.

Dei sorte, que muitos não têm, de nascer numa família que sempre deu valor a educação. Tenho certeza de que minha escola e a de meu irmão (assim como a de minha irmã) ocuparam boa parte do orçamento de meus pais, durante boa parte da vida. Não sei de onde veio essa convicção deles, mas sei que a minha não é a mesma sorte de outras pessoas. Às vezes eu era um aluno bom, às vezes não. Estudar, principalmente o que não se gosta, é chato. Mas é estando em um ambiente onde estudar é uma ideia presente que se vai aprender a, de alguma maneira, entender a importância e seguir estudando.

Dei sorte também ao escolher o que eu queria estudar. Foi um chute no vazio, eu nunca tinha visto um arquiteto em minha vida, nem nunca sequer conhecera alguém que conhecia um. Aliás, havia um colega de turma (do primeiro ano do ensino médio) não tão próximo cujo pai era arquiteto, nem sei como soube disso. Já no terceiro ano, em que, convencidos não sei por quem nem como, (a maioria de) meus colegas já pareciam saber o que escolheriam, eu disse que ia fazer arquitetura. Comecei a falar isso basicamente porque um amigo meu disse o mesmo (e aqui a dúvida de se parte daquela certeza de todo mundo não tinha sido construída de forma parecida). E, por pura sorte, gostei e gosto dessa área do conhecimento. Tudo parece se encaixar bem em mim, uma área diversificada, que tem pensamento e prática sobre espaços, presentes na vida de qualquer um. Ainda que uma eterna dúvida paire: a de que se essa relação não é na verdade inversa: sou alguém fabricado por esse universo e quem se encaixou nele fui eu.

Mas não há dúvidas quanto à minha felicidade.

Embora estatisticamente a renda se ligue à escolaridade (e essa à escolaridade dos pais – numa bola de neve que reforça a desigualdade), eu sei que não é o estudo que “dá dinheiro”. O que profissionalmente “dá dinheiro” é uma questão de contexto social e de mercado, que muda de tempos em tempos, de lugares a lugares; o estudo apenas é capaz de (no máximo) nos aprimorar ou habilitar a certas partes de certos contextos. Talvez essa forma de pensar ajude a aliviar o conflito entre fazer o que a gente gosta e fazer o que “dá dinheiro”. No Brasil, a gente tem especial apego ao ensino superior enquanto promessa de melhor renda, e apesar de que é muito justo querer ganhar mais dinheiro (eu também quero), para mim essa não é a grande coisa desse "nível" de ensino. Algo faz muito mais sentido: é aqui que a gente começa a falar de conhecimento (formal) em primeira pessoa, de forma mais horizontal, ou seja, começamos a nós mesmos formular as dúvidas, conversar e dar respostas (ou outras dúvidas). Em tempos de retrocesso político, é importante dizer que muito além da “capacitação” e “treinamento”, há uma cidadania ligada a fazer parte do processo de conhecimento com alguma voz, instrumentos, opinião, assim como é feliz que assim seja na da nossa sociedade, da nossas vidas.