A QUESTÃO DA DEFICIÊNCIA, NOS ESTADOS MODERNOS
 
Os pioneiros
 
Nota-se, a partir do século XVIII, uma nova perspectiva em relação ao problema da pessoa com deficiência. A herança social e cultural passa a ser o fator predominante da inteligência e não mais a herança racial e os pressupostos de uma espiritualidade duvidosa na ancestralidade das famílias, os responsáveis pelo nascimento privilegiado de um ser humano. Pois para Locke e seus seguidores, a inteligência não era mais do que um produto final do meio em que se vivia. Alguns de seus discípulos, como Jean Marc Gaspard Itard, Édoúard Seguin, e Maria Montessori (1850-1952), por exemplo, praticaram e descreveram suas experiências comprovando a possibilidade de educar pessoas com deficiência intelectual. [1]
A partir do trabalho realizado por esses pesquisadores, varias instituições passaram a praticar o método fisiológico e o treino sensório motor como base de tratamento para pessoas com deficiência. Essas ações contribuíram bastante para eliminar as concepções supersticiosas que pesavam sobre o tema, fazendo com ele passasse a ser estudado do ponto de vista científico, com enfoque, principalmente médico e educacional. 
Por fim, o trabalho pioneiro de Binet-Simon, trouxe contribuição decisiva ao tema indicando que pessoas com deficiência deveriam ser treinadas nas atividades da vida diária.  Criou, para subsídio da sua tese, a chamada Escala Métrica da Inteligência, que representou um grande avanço científico para a época.[2] Os testes de inteligência que ele criou previam elaborações mensuráveis, imutáveis e estáticas sobre a inteligência, possibilitando uma melhor adequação na reabilitação das pessoas com essa condição. Através deste teste sabia-se a idade mental do sujeito e, com base nessa informação era possível escolher a melhor estratégia para lidar, individualmente, com cada problema. Ficava assim, mais fácil medir o potencial cognitivo da pessoa com deficiência e a sua capacidade, ou incapacidade de adaptação ao meio social, considerando sua idade cronológica e mental, resultante do teste psicométrico. 
A categorização da pessoa com deficiência pela idade mental é um recurso que persiste, até hoje, como indicador de possibilidade e tecnologia de obtenção de informações para um diagnóstico mais preciso da deficiência e dos meios de minorar os seus efeitos.
 
Ignorância e preconceito no Século XX
 
Curiosamente, porém, apesar de todos esses avanços foi justamente no século XX, como já assinalamos, que se deram as maiores demonstrações de ignorância e crueldade que a História registra, em relação ao trato com as pessoas com deficiência. A ideologia racista das nações que adotaram políticas nacionalistas conservadoras e xenófobas, viriam atingir, não só as etnias consideradas nocivas ao desenvolvimento genealógico do povo dessas nações, como também as pessoas que apresentavam deficiências físicas ou intelectuais consideradas perigosas do ponto vista genético, para uma perfeita saúde biológica desses povos.
Destarte, ocorreu exatamente no século XX o apogeu histórico do processo de discriminação das pessoas portadores de deficiência, quando foram aprovadas as leis eugênicas de esterilização de pessoas com deficiência (para impedir a sua reprodução) em mais de vinte estados norte-americanos e diversos países europeus, como a Alemanha, a Finlândia e a Suíça. Esse comportamento discriminatório e cruel teve seu auge, como já referido neste trabalho durante o governo nazista na Alemanha, com as experiências realizadas pelo governo de Hitler em busca das origens da raça pura.

A pessoa com deficiência, hoje

As Constituições dos estados modernos, que emergiram depois das
revoluções ocorridas em fins do século XVIII, especialmente a Revolução Francesa e as guerras de independência dos Estados Unidos da América, trouxeram novos enfoques para essa questão. Nos Estados, já no início do século XIX, mais precisamente m 1811, o governo americano criou formulas previdenciárias para garantir a subsistência de soldados que, lutando pela pátria, viessem a adquirir limitações físicas que os impedisse de ganhar a vida por si mesmos.  Essa providência abriu espaço para outras medidas de atenção específica para com pessoas com deficiência, que não apenas aquelas adquiridas na guerra. Essas medidas tiveram um grande incremento depois da guerra civil entre os estados, dado o grande número de pessoas mutiladas nesse conflito, o que fez também que essas providências se acentuassem em relação às pessoas com deficiências congênitas, que passaram a ser foco de interesse de entidades filantrópicas em geral, que se multiplicaram pelos Estados Unidos com muita rapidez.                

Pioneiros nesse sentido, os americanos entrariam no século vinte já com uma rede assistencial bastante vigorosa no atendimento de pessoas com essas características.
Novas técnicas de ensino e capacitação de pessoas com deficiência foram desenvolvidas por educadores americanos. Atenção especial às crianças nessas condições foram dadas como prioritárias, daí o desenvolvimento de especialidades e programas específicos de reabilitação.
A partir dessa nova ótica, incorporada aos avanços trazidos pela medicina especializada, a contribuição importante adicionada pelas descobertas da psicologia cognitiva, e especialmente a visão humanista trazida pela Declaração dos Direitos Humanos, surgiram as propostas modernas de integração social da pessoa com deficiência que vivenciamos hoje. Essas propostas tem seus alicerces fundados na prestação de serviços e desenvolvimento de estratégias educacionais, onde a finalidade específica é buscar a integração das pessoas com deficiência na sociedade, sem aquela conotação pejorativa de que se tratam de pessoas especiais. Essa fórmula pressupõe que o principal óbice para a inserção social da pessoa com deficiência sensorial, física e mental é o handcap que ela possui e, dessa forma, é preciso dar-lhe uma educação e um preparo adequado para que ela possa se assemelhar, o mais possível, aos demais cidadãos, para então conviver com eles em um clima de igualdade e não apenas de tolerância inspirada pela necessidade pelo chamado comportamento politicamente correto.
A pessoa com deficiência, nesse contexto, não pode ser vista mais como uma anomalia que a sociedade deve se esforçar para absorver. Elas são produtos da sociedade, tanto quanto qualquer outra pessoa que não apresente qualquer deficiência em sua estrutura orgânica. Nesse sentido vale o adágio que diz que a natureza não faz nada que não seja útil. Assim, se nascem pessoas com essas condições é porque, em algum sentido, elas são úteis e necessárias ao equilíbrio universal. Só precisamos achar o lugar que lhes compete no desenho estrutural do universo e prepará-las adequadamente para desempenhar o papel que lhe cabe.
A quantidade de pessoas deficientes que permanecem excluídas da sociedade é um claro indicativo de doença social. Por isso a sociedade tem que procurar, com todos os meios que puder reunir,  sanar essas deficiências sociais, buscando sempre dar melhor tratamento e educação à pessoa com deficiência. É salutar que o tratamento desse tema tenha saído do campo teológico, assistencialista e científico para o território mais amplo das disciplinas interdisciplinares, onde o interesse das áreas médicas, sociais, psicológicas, pedagógicas, econômicas e política convergem e fazem intercessão. O progresso da medicina tem mostrado que o corpo humano não é, como se pensava na antiguidade e na Idade Média, a ainda pensam aqueles que se programam pelos ideais do  pensamento inatista, um atributo divino, que é dado a alguns eleitos, ou que é conferido á uma etnia ou indivíduos em especial, em detrimento de outros.  O desenvolvimento de uma filosofia humanista, em sua visão moderna, integracionista, holística e preocupada com o todo, contribuiu também para o desenvolvimento de uma nova visão do homem. E nesta nova visão importa reconhecer  que cada vida medrada no seio da natureza cumpre um papel importante no desenho estrutural de um universo que dele necessita para cumprir sua finalidade.  É nesse sentido, visto que a condição única de cada indivíduo no convívio social é importante e merece ser olhada com interesse por todos aqueles que têm responsabilidade social, o que aliás, deveríamos ser todos nós. Cumpre aqui, finalmente, reconhecer as contribuições de grandes pesquisadores e cientistas que, com seus trabalhos e pesquisas, trouxeram importantes avanços para o bom desempenho que hoje temos em relação a esse problema. Os psicólogos da escola soviética (Leontiev, Luria, Vygotski) por exemplo, que deram bastante ênfase ao principio da normalidade, ou seja, a tese que os princípios para o desenvolvimento das pessoas com deficiência devem são os mesmos que são aplicados aos demais seres humanos, com ênfase, porém, na sua  herança histórico-cultural. Também a Jean Piaget, cujo método sugere uma abordagem epistêmica para o problema, ou seja, que o ser humano é sujeito que se constrói progressivamente na interação com o meio, e na sua forma de dar respostas aos desafios que o ambiente lhe oferece.  Nos programas de intervenção cognitiva e avaliação psico-pedagógica ( Programa de Enriquecimento Instrumental (PEI)  Abordagem da Avaliação do Potencial de Aprendizagem (LPAD e propostas por Vygotski e Feurstein; na teoria da Teoria das Inteligências Múltiplas de Gardner, cujo estudo propõe um novo paradigma para pensar a inteligência, e assim, desmistificar, de forma definitiva, o problema da pessoa com deficiência.[3]
 
 
 
 
[1]  Jean Marc Gaspard Itard foi um educador francês que desenvolveu métodos para treinar surdos-mudos e outros deficientes, com a finalidade de levá-los a superar suas deficiências e obter sua integração na sociedade. É famoso o caso do menino Victor de Aveyron, uma criança com deficiências intelectuais que ele adotou e educou, fazendo dela uma pessoa inteiramente integrada à sociedade. Esse caso foi relatado pelo cineasta Francoise Truffaut, no filme “Garoto Selvagem”, de 1969.
Édouard Séguin (1812 – 1880) foi um médico e educador francês que trabalhou com crianças com deficiências cognitivas e criou um método, ainda hoje muito utilizado, para tratar com esse tipo de problema. Publicou o livro “Tratamento Moral, Higiênico e Educacional de Deficientes) que ainda hoje é um clássico no tratamento de crianças especiais.

Maria Tecla Artemisia Montessori (1870- 1952) foi uma educadora, médica e pedagoga italiana.que desenvolveu um método especial de ensino para crianças ( O método Montessori), que ainda hoje é usado em escolas públicas e privadas em todo o mundo. 
[2] Alfred Binet (1857 —  1911) foi um psicólogo e pedagogo francês que ficou conhecido por sua contribuição no campo da psicometria, sendo considerado o inventor do primeiro teste de inteligência, que se tornou a base dos atuais testes de QI. Théodore Simon (1873-1961),foi um médico-psicanalista francês, que desenvolveu junto com Alfred Binet, a chamada escala de medição de inteligência.
[3] Lev Semenovich Vygotsky (1896-1934), Pensamento e Linguagem- E-book.Brasil.com. O trabalho de Vygotsky tem por objetivo explicar o desenvolvimento cognitivo do ser humano.
Alexis Nikolaevich Leontiev (1903-1979), psicólogo russo cujo trabalho aborda o desenvolvimento cognitivo do ser humano em estréia conexão com as questões linguísticas.
Luria, Alexander Romanovich Luria,( 1902-1977). A construção da Mente. São Paulo : ícone, 1992. O trabalho de Luria concentra-se no estudo do desenvolvimento da mente dos camponeses russos em suas relações com o meio ambiente. De um modo geral, os psicólogos russos acima citados são representantes da chamada escola histórico-cultural, movimento da psicologia soviética que procurou compatibilizar as mais modernas conquistas da psicologia com a ideologia marxista, vigente na União Soviética desde 1917 até o fim dos anos oitenta.