O DEFICIENTE NA CULTURA GRECO-ROMANA

A ótica espartana

     É sabido que entre os gregos antigos, a perfeição estética, corporal e intelectual eram as qualidades mais amadas por aquela civilização. Daí o desenvolvimento das práticas esportivas por um lado, com o objetivo de alcançar a perfeição da forma física, e de outro o da filosofia, cuja função era o aprimoramento das faculdades intelectuais. Num ambiente desses, é possível imaginar a dificuldade que uma pessoa deficiente, física ou intelectualmente, tinha para viver. Nessas sociedades, o indivíduo era valorado pela capacidade que ele tinha para servir a polis, ou seja, a comunidade representada pela cidade- estado, concepção maior da sabedoria política desenvolvida pelos gregos. Daí o estabelecimento de uma cultura profundamente voltada para o refinamento intelectual, através da filosofia e das artes em geral, e principalmente para educação física. Assim, nas sociedades do período clássico, especialmente entre os povos gregos, as políticas públicas eram formuladas no sentido de se obter uma formação perfeita do intelecto e da estética do corpo, como se via em Atenas, e na supervalorização da força física, como ocorria em Esparta.
As qualidades viris eram de fundamental importância para uma sociedade que vivia da conquista guerreira e da manutenção desses status quo através da força. Destarte, as leis e os costumes refletiam a necessidade de produzir indivíduos fortes e saudáveis, que pudessem servir ás suas comunidades e não depender delas para sobreviver. Vem desse fato a adoção de práticas discriminativas contra os que não apresentassem esse perfil. Daí, também, o costume observado em algumas dessas sociedades, de eliminar, já por ocasião do nascimento, as crianças que apresentassem alguma deficiência congênita que as impedisse de ser um cidadão útil aos propósitos do Estado.  Nessas sociedades, crianças nascidas com essas características eram eliminadas ou abandonadas sem que isso fosse considerado crime.
Um dos mais significativos exemplos dessa prática discriminatória em relação às pessoas com deficiência foi aquela adotada em Esparta. Nesta cidade-estado, todo recém nascido, que fosse gerado no seio de uma família livre, era examinado pelo Conselho dos Anciãos. Assembléia formada pelos cidadãos mais antigos da comunidade. Se ela nascesse disforme, ou com alguma fragilidade que viesse a impedir, no futuro, o exercício pleno da cidadania, conforme exigia o ideal espartano, ela era sumariamente eliminada. 
A legislação de Licurgo, o mais conhecido legislador espartano, estabelecia que toda família, em Esparta, devia apresentar seus filhos recém-nascidos ao Conselho da cidade, e se este não tinha nenhuma deficiência, era devolvido á família, que dela cuidaria até os sete anos. Depois dessa idade o estado tomava para si a responsabilidade de transformá-la em um cidadão. Se homem, competente para guerrear, se mulher, competente para gerar filhos e cuidar de um lar. Porém se a criança nascia feia, disforme ou com alguma indicação de deficiência mental, os membros do Conselho a levavam para o local chamado apothetai (depósito), que na verdade era um precipício, de onde a criança era jogada. A ideia era a de que não servia para o estado espartano uma pessoa que não fosse bem constituída, tanto na mente como no corpo. [1]
Ressalte-se que essa prática era exigida somente para os chamados homoios, ou seja, cidadãos livres, os quais constituiam a elite da cidade. Não era exigido dos periecos (classes populares nem dos hilotas (escravos), os quais podiam viver com suas deficiências, desde que pudessem trabalhar.
Isso porque Esparta era um estado essencialmente militarista, governado por um regime estritamente comunista. O individuo era completamente submetido ao ideal comum, e nenhum interesse particular sobressaia ao interesse do estado. Por isso, quem não tivesse condições de servir aos interesses comunitários não tinha nenhum valor e devia ser eliminado. Esse ideal, como veremos, foi adotado nos primeiros tempos de Roma, cidade que nasceu também a partir de assentamentos militares, e que por isso mesmo, valorava a noção do corpo perfeito e da força física, negando á pessoa com deficiência até mesmo o direito à vida

A visão do tema em Atenas
 
Em princípio, as leis e os costumes da cidade-estado de Atenas também contemplavam a eugenia das crianças nascidas com deficiências congênitas que as tornassem incapazes de exercer seus deveres de cidadão. Essas disposições já faziam parte da severa legislação escrita por Dracon para os atenienses no século VI a. C. pois, como em Esparta e outras cidades-estado da Grécia, em princípio lá imperou o ideal do corpo perfeito.[2]
Esse estado de coisas mudaria, no entanto, com o tempo e com o desenvolvimento da filosofia, que como se sabe, foi a grande contribuição da cidade de Atenas à história do pensamento. Assim, já na época de Péricles e Clístenes, por exemplo, uma sensível mudança na percepção das pessoas com relação a esse tema pode ser observado.
Não obstante, essa visão levou bastante tempo para obter algum resultado prático, pois embora a prática da eugenia em crianças nascidas com deficiência tivesse sido abolida desde os tempos de Sólon, aquelas que sobreviviam ao infanticídio, geralmente praticado pelos próprios pais, continuavam a ser estigmatizadas quando se tornavam adultas, e geralmente eram referidas como monstruosidades, muitas vezes simbolizadas em mitos, como o do deus Hefestos.[3]
Todavia, na prática é possível perceber, nas leis aprovadas pelo Areópago e pelas assembléias populares (a Eclésia) que esse comportamento em relação ás pessoas com deficiência foi mudando gradualmente, como nos mostra alguns fragmentos da filosofia ensinada por Aristóteles (384-322 a.C), para quem o tratamento dado ao deficiente não podia ser igual ao que se dava ás pessoas sem deficiência, razão pela qual a legislação ateniense, já na reforma realizada por  Péricles (444 a 429 a.C) havia dispositivos legais que obrigavam o estado a amparar esse tipo de pessoas.[4]
 
O direito romano
 
     Entre os romanos a prática da eugenia em crianças nascidas com deficiência foi, desde o início da história da República romana um comportamento normal. Como se pode perceber nesse discurso de Sêneca, um dos mais famosos filósofos romanos, essa prática não só era aceita como uma necessidade política, como também como uma espécie de profilaxia social:
    ..."Não se sente ira contra um membro gangrenado que se manda amputar; não o cortamos por ressentimento, pois, trata-se de um rigor salutar. Matam-se cães quando estão com raiva; exterminam-se touros bravios; cortam-se as cabeças das ovelhas enfermas para que as demais não sejam contaminadas; matamos os fetos e os recém-nascidos monstruosos; se nascerem defeituosos e monstruosos afogamo-los; não devido ao ódio, mas à razão, para distinguirmos as coisas inúteis das saudáveis”. [5].
   

    Foi, pois, em Roma que o preconceito e a rejeição contra as pessoas com deficiência mais se acentuou. Cicero, grande orador e historiador romano, observa que nos primórdios da organização do estado romano, os chefes dos clãs, tanto patrícios quanto plebeus, podiam por lei, sacrificar filhos e escravos que nasciam com algum tipo de deficiência que os impedisse de trabalhar ou cumprir suas obrigações. Essa permissão já vinha da primitiva legislação romana expressa na lei das Doze Tábuas que textualmente dizia;

Tábua IV - Sobre o Direito do Pai e do Casamento. - Lei III - O pai de imediato matará o filho monstruoso e contra a forma do gênero humano, que lhe tenha nascido recentemente.
("Tabula IV - De Jure Pátrio et Jure Connubii)
Lex III - Pater filium monstrosum et contra formam generis humanae, recens sibi natum, cito necato ").[6]
 
     A lei previa, entretanto, que a criança nascida com deficiência devia ser mostrada a pelo menos cinco pessoas, para que a anomalia fosse devidamente constatada e certificada. Após essa providência, a criança poderia ser afogada pela própria parteira, ou exposta em locais próximas a um rio, ou ainda em templos e bosques considerados sagrados, para que o ritual de eliminação fosse praticado de acordo com os ritos legais.
     Entretanto, apesar do rigor previsto na lei, em relação ás pessoas com deficiência, com o tempo, o direito romano, teve que abrandar essas regras draconianas, abrindo uma exceção com relação aos escravos e às classes populares. Tanto é que, já no século II a. C, é possível observar uma expressiva população de pessoas com anomalias físicas vivendo na cidade de Roma. Essa mudança, segundo Plutarco, teve origens misteriosas, ocorrida por conta de algum castigo lançado pelos deuses. Como relata esse historiador "no ano 280 de Roma, um temor supersticioso tinha invadido toda a cidade, porque as mulheres grávidas davam à luz crianças quase todas elas defeituosas e imperfeitas em alguma parte do corpo", o que gerou um temor supersticioso na cidade e motivou o Senado a modificar as leis, desobrigando as famílias da prática da eugenia.[7]
     O novo costume passou a ser o abandono dessas crianças nas margens dos rios e bosques sagrados para “que os deuses decidissem sobre o seu destino”. Na prática, o que ocorria era que os escravos e as famílias plebéias, que geralmente viviam da mendicância, da prostituição e outros expedientes, recolhiam essas crianças e as criavam para mais tarde usarem-nas para explorar o sentimento de culpa dos patrícios romanos, já que com esse comportamento eles contribuíram em muito para aumentar a população excluída em Roma.
     Sêneca, em sua obra "Controvérsias", no capítulo IV, ("Sobre os Mendigos e Aleijados") nos dá mais detalhes sobre esse assunto, referindo-se á verdadeira onda de chantagem que era feita às famílias romanas nessa época, por meio de crianças mendigas, que se apresentavam com marcantes deformidades, batendo nas portas das famílias patrícias e se identificando como aquelas que foram abandonadas nas margens do Tibre e nos bosques sagrados. Como nunca se sabia, ao certo, se era ou não verdade o que elas diziam, as famílias patrícias acabavam dando gordas esmolas a elas, não só para mitigar o sentimento de culpa, mas também para evitar qualquer escândalo que elas pudessem provocar, denunciando o parentesco.
     Destarte, a população mais pobre de Roma acabou por encontrar nesse expediente um rendoso meio de vida. Era comum colocar pessoas com deficiência para esmolar nas ruas, praças e portas dos templos da cidade. Pessoas com deformidades físicas eram usadas nos espetáculos públicos para representar monstros, anões e outras aberrações das fábulas gregas e romanas, muito apreciadas pelo público.  Adolescentes cegas eram colocadas em prostíbulos. Como informa o historiador Durant, "existia em Roma um mercado especial para compra e venda de homens sem pernas ou sem braços, de um só olho, gigantes, anões e hermafroditas"  e esse era um comércio muito lucrativo no concorrido mercado de escravos da Roma antiga.[8]
     Não obstante, como nos informa Sêneca, houve casos em que pessoas com deficiência conseguiram se destacar na estratificada sociedade romana e chegaram mesmo ocupar posições importantes na vida pública. Um deles foi o Censor Ápio Cláudio, conhecido como "o Cego", que se tornou famoso pela construção da via Ápia, a mais famosa estrada romana, que ainda existe até hoje, denunciando a excelência da engenharia romana nesse campo. [9]

Nota.

 Este texto é uma introdução preparatória ao livro dos cinquenta anos da APAE em Mogi das Cruzes. Quem tiver alguma informação sobre a história da APAE em Mogi das Cruzes, sobre seus fundadores, alunos que foram orientados nessa organização e conseguiram sucesso em sua inclusao social, ou qualquer outra experiência envolvendo a APAE Mogi das Cruzes, e quiserem prestar algum depoimento a respeito, entrar em contato conosco por este site. A APAE agradece.
 
 
[1] Idem, Oton Marques da Silva, citado, pg. 130.
[2] Esse ideal de valorização do corpo físico é bastante visível nos poemas de Homero (Ilíada e Odisséia), onde os heróis (Aquiles, Heitor, Ajax, Ulisses, Agamenon, Paris, Enéas e outros) são destacados por suas proezas físicas ou intelectuais. Esse ideal também é percebido nos mitos gregos, nos quais os heróis (Hércules, Teseu, Perseu, etc) são sempre descritos como indivíduos fortes fisicamente, ou muito argutos intelectualmente.
[3]Sólon (638a.C. – 558a.C.) foi um grande estadista,  legislador e poeta . Em 594 a.C., escreveu uma espécie de Constituição para a cidade-estado de Atenas, que foi considerada a primeira legislação escrita de uma democracia que se tem notícia na História. Hefesto era filho da deusa Hera e de Zeus. Nascido com defeitos em suas pernas, ele foi lançado do alto do monte Olimpo pelo próprio pai, justamente pelo fato de ter nascido com deficiência. Recolhido no interior da terra pelas nereidas Tétis e Eurínome ele tornou-le o patrono da metalurgia. Em Roma ele era conhecido como Vulcano, ou seja, o controlador dos vulcões e patrono de todos os trabalhadores que usam o fogo para a realização de suas obras.
[4] Gilda N. M. de Barros. Sólon de Atenas - A cidadania antiga. São Paulo: Humanitas, 1999.
[5] Sêneca, Discursos, pg. 46.              
[6] Marco Túlio Cicero- "De Legibus", Cultrix, São Paulo sd.
[7] Publius Valerius Publícola, Vidas Paralelas, Alianza Ed. 2008
[8] Will Durant- História da Civilização- Ed.Nacional, 1957
[9] Otto Marques da Silva, A Epopéia Ignorada - A Pessoa Deficiente na História do Mundo de Ontem e de Hoje, citado.