DESCONSTRUINDO ESTERIÓTIPOS AFRICANOS

O norte da África é separado do sul europeu pelo Mediterrâneo, mantinham estreito contato com os europeus, o mesmo já não ocorria com a África Subsaariana, em algumas regiões o Saara chega a 1600 Km de largura, dificultando sua travessia. Entre o sec. XVIII e fim do XIX tornou-se corriqueiro a parte ocidental racionalizar os estudos sobre o continente africano, como sendo homogêneo sem observar as diversidades das etnias cultura e língua. A generalização foi conveniente para a ideologia europeia, o negro era identificado pelo porto de embarque e não pela sua etnia. A gama de conceitos equivocados surgiu como fruto do desconhecimento sobre o continente. Esse procedimento veio de encontro aos interesses político-econômicos dos colonizadores, favorecendo a exploração do povo e terra. Baseados em analogias e padrões culturais com o europeu o africano foi negativamente rotulado. Lastreado no estereótipo que não tem povo, não tem nação e nem Estado, não tem passado por consequência não tem história, como não tem história não é um ser humano, não tem alma não é gente. Esses conceitos serviram para justificar a escravidão e genocídios praticados pelos europeus, reforçados pela ideologia de que a história pertencia ao velho mundo. Segundo as ideologias europeias os afros subsaarianos eram primitivos e não tinham condição de se desenvolver, seu estado de brutalidade chegava ao ponto de ser desnecessário receber atenção da lei moral e de Deus. Fica evidenciada a existência de duas Áfricas com aspecto geográfico diferentes, classificada em estágio de desenvolvimento diversos, povoada por raças distintas, brancos e negros, sendo que o negro agia por instinto sem lei e história. No decorrer da invasão do continente os estereótipos foram reforçados até os dias atuais. O negro marcado pela pigmentação da pele foi transformado em mercadoria, tido como ilusoriamente inferior, a Igreja por sua vez para não entrar em conflito com os interesses econômicos, não contradizia que o negro não tinha alma.

Somente após a segunda metade do séc. XX o dogma referente ao preconceito passou a ser questionado, embora trabalhos nesse sentido tenham sido realizados antes da 2ª guerra mundial. A historiografia debruçou-se sobre o passado africano visando evidenciar elementos de identidade cultural ocultado pelo colonialismo. Esse trabalho ganhou notoriedade com pesquisas realisadas por afros americanos e afros latinos, no entanto somente a partir da década de 60 sob a influência de movimentos separatistas de descolonização é que a não homogeneidade africana recebe mais atenção. Dentro desse contexto há de se admitir que estudos realizados sobre o império do Congo fundado no início do séc. X e o Império do Mali em 1235 até a decadência de ambos no fechar das cortinas do séc. XIV promovida pelo português Diogo Cão, é jogada por terra a crença de que na África Subsaariana não havia a formação de Estados regidos por leis. Essas informações foram obtidas fundamentadas em escritos de viajantes e comerciantes que mantiveram contato com esses impérios durante o período que antecedeu as grandes navegações a partir do séc. XIV. Para comprovar esses relatos recorreu-se a história oral contada pelos griots (guardiões da palavra falada, responsáveis por transmitir a história através das gerações) e a arqueologia contemporânea que permitiu datar e identificar a origem de uma variedades de objetos de diversos materiais. Esse trabalho serviu para auxiliar na identificação das origens das diferentes organizações sociais e políticas e as causas de movimentos migratórios de povos ágrafos que habitavam o continente. Os que detinham o “conhecimento da palavra falada” por inspiração divina eram chamados de “tradicionalistas” os quais se mantinham fiéis aos relatos sem se desviarem do original. Um poema ritual do Mali exprime com precisão o dever para com a verdade da palavra: [ ... A fala é divinamente exata, convém ser exato com ela, a língua que falsifica a palavra, vicia o sangue daquele que mente ]. Os relatos não se limitam a narrativas focando temas mitológicos, épicos ou lendas, a história e migrações também eram narradas com fidelidade. Aliada a esse preceito a transmissão do saber e o exercício da récita feita nas escolas era feita guardando as particularidades de cada região africana. Cabia também aos “tradicionalistas” além dos ensinamentos esotéricos iniciarem os jovens nas profissões de sapateiro, marceneiro, tecelão e ferreiro, esta última era considerada a mais nobre das profissões, por o fundador do império do Mali ter sido um ferreiro.

Esses estudos serviram de base para que se consolidasse a imagem de um continente pulverizado por inúmeras tribos bastante adversas em sua cultura, como também evidenciou o colonialismo e o racismo reinterando o mito da missão civilizadora caracterizada pela barbárie e selvageria impetrada contra povos identificados pelos europeus como primitivos.

Segundo pesquisas da autora “nega-se que essas sociedades tenham sido passivas, destacando-se as mudanças e sua capacidade revolucionária” dessa forma ocorre a ruptura com o eurocentrismo com o vértice apontado para a hegemonia a qual obscurecia as diferenças locais próprias do continente africano. Diante de tais argumentos fica claro ser errônea a ideia de duas Áfricas diferentes, onde ao norte ser habitada por povos reconhecidos como brancos e desenvolvidos em contrapartida os sudaneses da África Subsaariana serem negros e primitivos, estáticos, regidos pelo instinto.

Relatos historiográficos e arqueológicos identificaram uma ampla rede de transação interna cultural/comercial entre várias tribos, evidenciando mais uma vez ser um continente heterogênio. Importantes cidades como Tombucto e Jenne prosperaram e tornaram-se o centro comercial e cultural no império do Mali, onde eram comercializados todo tipo de artesanato, grãos e vegetais. Outro ponto que precisa ser destacado é que no continente era comum a prática de escravização, porém em pequena escala, que foi infinitamente ampliada com a invasão europeia transformando o escravo (em geral prisioneiro de guerra) em mercadoria. Foi identificada também a presença do Islã levada pelos comerciantes que atravessavam o continente. A escravidão pré-colonial ao contrário do que se possa imaginar, não era desumana como a praticada pelos europeus, as razões que tornavam um homem livre em escravo eram diversas, prisioneiro de guerra, dividas, ou punições por crimes cometidos, mas em geral o período de escravidão tinha uma data pré-estipulada.

A população escrava era dividida em duas partes distintas, os homens eram destinados a serem vendidos para os europeus, jovens mulheres eram escravos internos destinados aos afazeres domésticos e agricultura, além da Europa os escravos também eram comercializados para alguns países árabes. Os produtos comercializados além dos escravos era ouro, prata, cobre marfim e particularmente o sal, produtos agrícolas e um produto que ganhava notoriedade era a noz de cola, um fruto extremamente amargo, mas que causava uma sensação refrescante e estimulante devido a presença de alto teor de cafeína. Ficou caracterizado uma ampla rede de comerciantes bantos e árabes que circulavam por todo o continente, fazendo o intercâmbio de mercadorias e cultura. As mercadorias compunham a maior parte do comércio, em que os escravos representavam apenas uma pequena parcela.

As considerações conclusivas afastam a ideia de um continente dicotomizado em duas partes incomunicáveis, ao mesmo tempo desfazem a ideia da homogeneização da África Subsaariana. Demonstram que em virtude do desprezo europeu pelo negro tido como primitivo, incivilizado sem história, serviu apenas para justificar a barbárie, genocídio e escravização impetrado contra um povo, que ao ser julgado pelos padrões europeus, alavancados pelo desconhecimento, mostra as raízes das justificativas para a arbitrariedade e opressão, preconceito e racismo, presente nas relações entre europeus e africanos desde o século XV. Reforçado com o imperialismo no fim do séc. XIX.

Por fim apresenta um humanismo assistencialista, que apresenta a África como um continente marcado pela incompetência de conduzir a si próprio, condenado a dor e ao sofrimento sem fim, necessitando, por conseguinte a intervenção de povos desenvolvidos no sentido de auxilia-los, porém dentro desse contexto há a cobiça travestida de ajuda humanitária.

Em relação ao preconceito brasileiro era dissimulado, velado, não declarado, aos negros eram destinados apenas serviços subalternos, somente a partir da década de 70 as empresas passaram a admitir negros na linha de frente para atendimento ao público. Nas telenovelas e cinema, em via de regra ao negro era destinado apenas papéis secundários, empregados ou mal feitores, atores como Grande Otelo, Chocolate, Mussum e outros foram exceção, repórter âncora na “telinha” estava fora de cogitação, Gloria Maria da Rede Globo foi uma das pioneiras ao acompanhar a eleição de Tancredo Neves em 1985, porém era uma tática ideológica imposta pela mídia visando angariar a simpatia do público ao demonstrar ilusoriamente que a ditadura militar estava extinta, que doravante o povo brasileiro passaria a gozar de felicidade, igualdade e liberdade. Nos Estados Unidos da América o racismo inicia seu declínio com os trabalhos do Pastor Martin Luther King nas décadas de 50 e 60, disse ele “ Eu tenho um sonho, que um dia um homem seja julgado pelo seu caráter, e não pela cor de sua pele”, as atuações de Nelson Mandela na África do Sul contra o Apartheid no apagar das luzes do século XX contribuiu de forma decisiva contra o racismo em seu país e em outras partes do mundo, a atuação de Mandela na África do Sul também teve seu grau de influência no Brasil.