O Pensamento Político de Frei Bartolomé de Las Casas

Bartolomé de Las Casas (1474-1566) foi um frade dominicano espanhol que atuou na América durante o processo de conquista, no século XVI. Mas, mais que um frade dominicano, Las Casas pode ser considerado, dada a produção, a dimensão e a difusão de suas ideias, um pensador político que atuou tanto em defesa dos nativos americanos quanto na reflexão sobre a diversidade de poderes políticos existentes naquele momento.

Dois mundos entraram em choque quando do “descobrimento” da América. De um lado, uma sociedade unida pelos valores culturais e políticos da cristandade europeia. Do outro, um mundo que apresentava-se como novo, com outros povos e realidades distintas. O impacto foi grande, pois como escreveu o cronista Fernando López de Gómara em sua História Geral das Índias (1552) “a maior coisa depois da criação do mundo, tirando a encarnação e a morte de quem o criou, foi o descobrimento das Índias”. O dominicano Frei Bartolomé de Las Casas, vindo para a América em 1503, aperfeiçoou seu pensamento político, ou teoria política, ao longo da evolução do processo de conquista empreendido pelos espanhóis.

O pensamento político de Las Casas caracteriza-se pela ênfase ao Direito Natural e aos valores cristãos, estes aplicados em defesa dos nativos, bem como à soberania popular e questões sobre a diversidade de poderes e seus papéis. Las Casas, a Espanha, a Europa, faziam parte da Cristandade, esta entendida como uma sociedade global unida por uma mesma religião, por um mesmo Deus e pela tradição escrita da língua latina. O objeto de estudo de Las Casas era a América, terra que ainda estava sendo incorporada a Cristandade. É nessa questão de incorporação da América ao mundo cristão que o frade dominicano começa a expressar seus primeiros questionamentos.

Para Las Casas, a forma como o continente estava sendo incorporado à Cristandade passava por cima de todos os preceitos do Direito Natural e daquela sociedade assentada nas bases cristãs católicas: A Igreja e o príncipe de Castela não tinham domínio sobre as populações americanas enquanto estas, de livre e espontânea, não aceitassem a nova religião e o novo soberano. Em Treinta Proposiciones Muy Jurídicas (1552) ele afirma que

“Todos os reis e senhores naturais, cidades e povos das Índias são obrigados a reconhecer os reis de Castela como universais senhores soberanos e imperadores da maneira dita, depois de terem recebido de sua própria e livre vontade nossa santa fé e o sacro batismo, e se antes que tenham recebido ou não queiram receber, não podem ser por algum juiz ou Justiça punidos” (Las Casas, 1965, vol. 1, p. 483 APUD Bruit, 2003, p. 9).

Já é por demais conhecido que os conquistadores não esperaram a “livre e espontânea” vontade dos nativos. Igreja e Coroa Espanhola passaram por cima das tentativas de uma incorporação mais “democrática” da América. Estava instalada uma crise de valores, pois para Las Casas, as ações violentas dos conquistadores impediram a formação de uma sociedade cristã livre, justa, com respeito à condição humana. Dado esse fracasso, era necessária a elaboração de uma teoria política sobre a sociedade e o Estado. Os primeiros argumentos de Las Casas são religiosos e humanitários, assumindo posteriormente um caráter jurídico-político.

Em Tratado Comprobatorio del Império Soberano e Algunos Princípios que deben servir de punto de partida, ambas de 1553, Las Casas escrevia que a sociedade deveria funcionar em equilíbrio a partir do império da lei, que mediaria as relações entre governantes e governados (LE BRUIT, 2003, p. 7). Para o frade dominicano os fundamentos do Cristianismo rejeitavam a força como instrumento de expansão da fé. O Papa era o senhor espiritual dos cristãos e também dos nativos, mas destes últimos apenas por suas vontades e consentimentos. Por essas ideias sobre os nativos e o Papa que Las Casas travou um acirrado debate, em 1550, com o sacerdote e filósofo Juan Ginés de Sepúlveda (1489-1573). Sepúlveda tinha como base a filosofia aristotélica e defendia que o nativo americano, “por sua bestialidade e inferioridade, marcadas por suas práticas de idolatria, politeísmo, canibalismo, sodomia, incesto e sacrifícios humanos, era escravo natural dos espanhóis” (FIGUEIREDO JÚNIOR, 2011, p. 5). Acusava, também, que Las Casas negava o poder temporal do Papa.

Em contrapartida, Las Casas defendia os nativos afirmando que qualquer nação e povos, possuidores de terras e reinos que habitam desde o início dos tempos, são povos livres que reconhecem apenas a autoridade de seus senhores. Em sua defesa também utilizou o preceito cristão de que todos os homens são criados à imagem e semelhança de Deus e de que somente pela fé, e não pela força, poderiam ser amenizadas e modificadas certas práticas nativas. Ele não negava o poder temporal do Papa, mas defendia veemente que este não poderia usar instrumentos que fossem contra a vontade dos indígenas. Las Casas nunca se questionou sobre a importância do poder espiritual, pois este se originava de Deus, estando acima do poder dos reis de Castela. O poder temporal “aperfeiçoava-se e atingia seu verdadeiro sentido pela aprovação do Papa, mas isto não queria dizer que esse poder tivesse origem no Papa, pois era de direito natural e estava fundado no povo” (BRUIT, 2003, p. 8).

Em outras palavras, quando os nativos aceitassem a fé cristã católica os reis teriam a jurisdição sobre eles. O poder político era uma consequência do espiritual eclesiástico, este último também devendo ser aceito e não imposto aos indígenas. Las Casas, dessa forma, dá luz a uma pluralidade de autoridades políticas. Caso os nativos aceitassem a fé cristã, o monarca espanhol seria o poder central, mas os soberanos nativos teriam autonomia para governar seus reinos, mediante o pagamento de um tributo à Coroa. O poder, para o autor, emanava do povo, e este não era inferior ao do soberano, sendo o segundo determinado pelo primeiro. Em Algunos Princípios ele expressa essa ideia da seguinte forma:

“Vendo os homens que não podiam viver em comum sem um chefe, elegeram por mútuo acordo ou pacto desde o início algum ou alguns para dirigir e governar toda a comunidade e cuidaram principalmente de todo o bem comum […] Somente deste modo, ou seja, por eleição do povo, teve sua origem qualquer domínio justo ou jurídico dos reis sobre os homens em todo o mundo e em todas as nações, domínio que, de outro modo, teria sido injusto e tirânico” (Las Casas, 1965, vol. 2, p. 1245 a 1259 APUD Bruit, 2003, p. 11).

Direito, justiça e lei são os três fundamentos do pensamento de Bartolomé de Las Casas. Para ele reis e imperadores não são senhores soberanos, mas sim administradores dos interesses públicos. O mais importante para que a sociedade funcionasse sem nenhuma arbitrariedade era a soberania popular, a união de vontades do povo, que os encaminharia à liberdade, ao bem-estar e a defesa da propriedade. Antes de um político tomar alguma decisão ou realizar alguma obra, era necessário que este consultasse sua comunidade, que diria se isso beneficiaria ou não a coletividade. O rei não pode “vender a jurisdição, contratá-la ou aliená-la, pois não é dono dela. A jurisdição é do povo. Se o rei a vendesse, cometeria roubo, pois a jurisdição é de direito público” (BRUIT, 2003, p. 17). É obrigação do rei administrar os bens fiscais e patrimoniais, bem como exercer jurisdição e proteção sobre os bens privados, não tendo, no entanto, direito de propriedade sobre eles.

Bartolomé de Las Casas, sem dúvidas, estava a frente de seu tempo, com uma teoria que prezava antes a soberania popular, o direito natural da liberdade e da propriedade dos povos, que o poder real e o eclesiástico. É possível falar que fosse ele um teórico da democracia, dos Direitos Humanos? Para Ruggiero Romano (1972) o “Estado” que se forma nos países da América é fraco, dominado por um número incrível de contradições, de interesses contrastantes que dificilmente chegam a encontrar um equilíbrio. Nesse ponto, é interessante ver o embate entre Las Casas, que defende os interesses da Coroa Espanhola; E Sepúlveda, que defende o interesse dos encomenderos, os particulares. Las Casas vê na ação da Coroa, mediada pela Igreja, ambas aceitas pelos nativos, a única forma de amenizar as relações políticas e sociais na América.

BIBLIOGRAFIA:

BRUIT, Héctor H. Uma utopia democrática do século XVI. São Paulo, Revista Eletrônica da Anphlac, n°03, 2003.

FIGUEIREDO JÚNIOR, Selmo Ribeiro. Valladolid: A polêmica indigenista entre Las Casas e Sepúlveda. Brasília, Revista Filosofia Capital, vol. 6, ed. 12, 2011.

ROMANO, Ruggiero. Os Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo, Editora Perspectiva, 1972. (Coleção Kronos).