Com educação não há humilhação
Se dependesse do ex-deputado João Herrmann Neto, a crase estaria com os dias contados. É de sua autoria o projeto de lei 5.154, de 2005, que extingue o uso do acento grave para indicar a ocorrência de crase. O fenômeno fonético-sintático continuará existindo, diz o projeto, sugerindo equivocadamente que um fato linguístico se sujeite ao crivo da lei.
Chegou-me ao conhecimento a iniciativa do parlamentar através da revista Língua Portuguesa, a qual, em sua edição de novembro de 2005, estampa opiniões de renomados especialistas no assunto, como Evanildo Bechara – defensor do citado sinal – e Celso Pedro Luft – para quem se justificaria o sinal diacrítico nos casos em que sua presença evita ambiguidade, como em “A menina cheira a rosa” (aspira o perfume do flor) e “A menina cheira à rosa” (exala o perfume da flor).
Anos a fio, transmitindo informações sobre a língua, sinto-me modestamente credenciado a refletir sobre o assunto. Da experiência de sala de aula, fica, para mim, a lição de que se trata de tópico complexo. Crasear com segurança implica relativo domínio da sintaxe da língua no que tange às relações de regência, razão por que, talvez, o aprofundamento na questão devesse ser feito durante o ensino médio.
Não poucas vezes os manuais didáticos se embrenham nos mistérios da crase ainda no ensino fundamental, o que pode ser contraproducente e (o que é pior!) frustrante para os aprendizes, que acabam por não extravasar seus pendores para a escrita em razão de marcas e marcas vermelhas em seus textos escolares.
O que dizer, por exemplo, do sinal da crase com pronomes relativos? Basta que se compare, ilustrativamente, “A situação à qual cheguei” com “A situação a que cheguei” para verificar quanta ginástica tem de fazer o professor a fim de clarear um caso desses e não ficar simplesmente na substituição do antecedente por um elemento masculino, o que resultaria em construções do tipo “O local ao qual cheguei” e “O local a que cheguei”.
Como se vê, trata-se de assunto que tem suas complexidades e que deve ser ensinado pausadamente à medida que se vão apresentando aportes sintáticos. Isso, por si, justificaria a extinção do sinal como queria o deputado?
Na matéria publicada em Língua Portuguesa, João Herrmann argumenta que a crase, desde sua instituição, não tem feito outra coisa senão humilhar muita gente. É bem possível que esteja subjacente ao argumento do legislador o aforismo “A crase não foi feita para humilhar ninguém”, criado, jocosamente, em 1955, pelo poeta maranhense Ferreira Gullar, um conhecedor profundo da arte de crasear. Quem lê a biografia do poeta, fica sabendo que ele, na juventude, debruçou-se por dois anos sobre estudos gramaticais, após ser advertido por erros de português em uma de suas redações. Um exemplo célebre de que se pode conciliar criatividade com técnica, pois Gullar se tornou um de nossos mais festejados poetas…
Jocosidade à parte, o aforismo gullariano nos permite outra leitura. Não só a crase, mas a gramática em si, ou as normas da língua culta, nada disso foi feito para humilhar. Tudo isso é conhecimento e requer de nós esforço para o seu domínio. Lembra-me aqui texto de José Carlos de Azeredo em que esse estudioso enfatiza que nossos estudantes fazem, ainda no ensino fundamental, importantes reflexões sobre o mundo das ciências e seria despropositado imaginá-los incapazes de refletir também sobre a língua. Cabe, evidentemente, ao educador dosar a exigência nessas reflexões, sob pena de preterir os rudimentos indispensáveis à aprendizagem, como tivemos a oportunidade de comentar em “Um diagnóstico preciso”, publicado neste Observatório.
O projeto do deputado João Herrmann concede às editoras de livros o prazo de três anos para se adaptarem à lei. É evidente, também, que, se aprovada, a nova legislação levará à obsolescência gráfica nosso atual patrimônio livresco, o que certamente implicará vultosos gastos.
Subjaz, a nosso juízo, à iniciativa do parlamentar a convicção de que temos um ensino precário e talvez seja plausível intervir em um aspecto do sistema gráfico que oferece dificuldade aos usuários. Na opinião da professora Maria Helena de Moura Neves, “uma iniciativa desse tipo teria de fazer parte de uma política global de simplificação das notações diacríticas, que não perdesse de vista o sistema como um todo”, posição com a qual concordamos, embora achemos que, na situação em que se encontra a educação brasileira, o projeto – mesmo ampliado na direção do que sugere a professora – está muito longe de ser prioridade. Com uma educação de verdade, certamente a crase não vai humilhar ninguém.
Texto originalmente publicado no Observatório da Imprensa (não mais disponível) e recuperado em http://mesquita.blog.br/educacao-crase-em-questao