História da América: Análise de documento
Trecho de Historia de los indios de Nueva España, de Frei Toríbio Motolinía
Tratado primeiro, capítulo VI – Da festa chamada panquezalizti, e dos sacrifícios e homicídios que nela se faziam; e como tiravam os corações e os ofereciam, e depois comiam os que sacrificavam.
[...]Naqueles dias dos meses acima ditos, em um deles que se chamava panquezalizthi, que era o décimo quarto, o qual era dedicado aos deuses do México, principalmente a dois deles que se diziam ser irmãos e deuses da guerra, poderosos para matar e destruir, vencer e sujeitar; pois neste dia, como páscoa ou festa muito importante, se faziam muitos sacrifícios de sangue, tanto das orelhas como da língua, sendo isso muito comum; outros se sacrificavam dos braços e peitos e outras partes do corpo; mas porque nisto de arrancar um pouco de sangue para lançar nos ídolos, como quem derrama água benta com os dedos , ou jogar o sangue em alguns papéis e oferecê-los das orelhas e da língua era comum a todos em todas as partes; mas das outras partes do corpo cada província tinha o seu costume; uns dos braços, outros dos peitos, e através desses sinais se reconhecia de que províncias eram. Além destes e de outros sacrifícios e cerimônias, eles sacrificavam e matavam muitos da maneira que aqui direi.
Tinham uma pedra grande, de uma braçada de comprimento, e quase um palmo e meio de largura, e um bom palmo de grossura ou de espessura. Metade desta pedra estava enterrada na terra, no alto, em cima dos degraus, diante do altar dos ídolos. Nessa pedra estendiam os desventurados de costas, para os sacrificar, com o peito muito tenso, porque tinham atados os pés e as mãos, e o principal sacerdote dos ídolos e seu lugar-tenente, que eram os que mais comumente sacrificavam, e se algumas vezes haviam muitos a serem sacrificados e estes se cansassem, entravam outros que já eram hábeis no sacrifício e , prontamente, com uma pedra de pedernal com que tiram faíscas, desta pedra faz-se uma grande navalha como ferro de lança, não muito afiada; digo isto porque muitos pensam que eram daquelas navalhas de pedra negra, que há nesta terra, e as fazem com o corte tão fino quanto o de uma navalha, e corta tão docemente como navalha, que logo abrem fendas: com aquela cruel navalha grande, como o peito estava tão tenso, com muita força abriam o desventurado e prontamente lhe tiravam o coração, e o oficial desta maldade jogava o coração em cima do umbral do altar na parte de fora, e ali deixava feita uma mancha de sangue; e caído o coração, ele ainda se mexia um pouco na terra, e logo o colocavam em uma tigela diante do altar. Outras vezes, pegavam o coração e levantavam-no em direção ao sol, e às vezes untavam os lábios dos ídolos com o sangue. Às vezes, os ministros velhos comiam os corações; outras, enterravam-no e logo pegavam o corpo e o jogavam rolando escada abaixo; e chegando embaixo, se o corpo era dos presos de guerra, o que o prendeu, com seus amigos e parentes, levavam-no e preparavam aquela carne humana com outras comidas, e em outro dia faziam festa e o comiam ; o mesmo que o prendeu, se tinha como o fazer, dava naquele dia mantos a seus convidados; e se o sacrificado era escravo, não o jogavam a rodar, mas sim o desciam nos braços, e faziam a mesma festa e convite que ao preso de guerra, ainda que não tanto com o escravo...Quanto aos corações dos que sacrificavam, digo: que após tirar o coração do sacrificado, aquele sacerdote do demônio tomava o coração em suas mãos e o levantava como quem o mostra ao sol, e logo voltava a fazer o mesmo ao ídolo, e o colocava diante de um vaso de madeira pintada, maior que uma tigela, e em outro vaso colhia o sangue e o davam como que de comer ao ídolo principal...
Em outros dias daqueles já nomeados se sacrificavam muitos, ainda que não tanto como na festa já dita; e ninguém pense que nenhum dos que sacrificavam matando-lhes e tirando-lhes coração, ou qualquer outra morte, que não era de sua própria vontade, mas sim à força, e sentiam muito a morte e sua espantosa dor. Os outros sacrifícios de tirar sangue das orelhas ou língua, ou de outras partes, estes eram voluntários quase sempre. Daqueles que assim sacrificavam, tiravam a pele de alguns, em umas partes, dois ou três, em outras, quatro ou cinco, em outras, dez, e no México até doze ou quinze, e vestiam aqueles couros, que pelas costas e em cima dos ombros, deixavam abertos, e vestido o mais justo que podiam, como quem veste colete e calças, dançavam com aquela cruel e espantosa vestimenta; e como todos os sacrificados ou eram escravos ou prisioneiros de guerra, no México, para este dia, guardavam algum prisioneiro de guerra que fosse senhor ou pessoa importante e, a este, esfolavam para vestir o couro dele no grande senhor do México, o qual, vestido com aquele couro, dançava com muita solenidade, pensando que fazia grande serviço ao demônio que naquele dia honravam; e a isto muitos iam ver com grande maravilha porque nos outros povoados não se vestiam os senhores com os couros dos esfolados, mas outros principais. Outro dia, de outra festa, em cada parte sacrificavam uma mulher, e esfolavam-na, e alguém se vestia com o couro dela e dançava com todos os outros do povo; aquele vestido com o couro da mulher e os outros com suas plumagens.
Havia outro dia em que faziam festa ao deus da água. Antes que este dia chegasse, vinte ou trinta dias, compravam um escravo e uma escrava e os faziam morar juntos como casados; e chegado o dia da festa, vestiam o escravo com as roupas e insígnias daquele deus, e a escrava com as da deusa, mulher daquele deus, e assim vestidos dançavam todo aquele dia até à meia-noite quando os sacrificavam; e a estes não os comiam, mas sim os deixavam em uma cova como um depósito que para isto tinham.
(FERNANDES, Luis E. de Oliveira. “Motolinía: o choque espiritual no Novo Mundo”, Ideias: Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Unicamp, ano 11, vol. 1, 2004)
FREI TORÍBIO DE BENAVENTE
Frei Toríbio de Benavente, alcunhado ‘Motolinía”, o pobre, nasceu no final do século XV. Era, portanto, um homem que viveu em um contexto de Renascimento cultural e disputas religiosas. Veio para a Nova Espanha como religioso franciscano, atuando no projeto espanhol de colonização. Sendo um homem do Renascimento e do mundo religioso, tinha conhecimentos de Filosofia e Teologia, o que leva Leandro Karnal a classificá-lo como um autor que transitava entre o intelectual e o religioso. Dentro dessa perspectiva, estava inserido no projeto colonial como um agente que utilizava a cultura como um mecanismo da colonização nativa, de forma que fossem eliminadas práticas e alterados comportamentos que não fosse de encontro com a ordem colonizadora. O texto estudado em questão, Tratado primeiro, capítulo VI – Da festa chamada panquezalizti, e dos sacrifícios e homicídios que nela se faziam; e como tiravam os corações e os ofereciam, e depois comiam os que sacrificavam, foi produzido na segunda metade do século XVI, entre 1540 e 1550. É válido salientar que, além de Toríbio ser um homem de um contexto de Renascimento, ele também vinha de uma Europa cujas estruturas políticas, sociais e urbanas ainda guardavam fortes traços medievais, traços esses fortemente influenciadores nas mentalidades de homens e mulheres. Não é exagero afirmar que a Igreja que veio para a América era medieval, igreja essa que reproduziria no território conquistado doutrinação, conversão e controle através do aparelho religioso. Santo Santiago Matamoros, terror dos ‘sarracenos’ durante a reconquista da Península Ibérica (1492), é transformado em Santiago Mataindios na América, isso em um curto intervalo de tempo entre um processo puramente medieval e outro da era ‘moderna’. O local e os inimigos eram outros, mas a ideia era a mesma: conquistar. Toríbio é um dos vários agentes do processo de introdução dos nativos em uma ordem a eles imposta.
SOBRE ALTERIDADE E SÍNTESE DE IDEIAS
Alteridade, a questão do outro, como escreveu Todorov no clássico Conquista da América: a questão do outro (1983). Frei Toríbio escreveu etnograficamente sobre os índios da Nova Espanha, impregnado de uma visão de mundo religiosa. Nesse texto, é possível identificar alguns elementos de uma escrita de alteridade. No início, Toríbio inicia sua narrativa como um tradicional cronista religioso e etnográfico, destacando as principais características das festividades nativas e comparando-as com festejos cristãos. Seria essa alguma tentativa de encontrar semelhanças, mesmo que mínimas, entre duas realidades distintas? Ou apenas um parâmetro eurocêntrico? Aos poucos, alguns termos e observações vão dando o tom de uma narrativa que tem por objetivo, além da documentação, depreciar determinadas práticas. A pessoa que realiza o sacrifício é chamado de “oficial do diabo”. Os deuses eram nomeados “ídolos”, que faz remeter ao “terrível pecado da idolatria”. Outro agente do processo de sacrifício é chamado de “sacerdote do demônio”, numa clássica oposição entre o bem (colonizador, Cristianismo) e o mal (nativo, práticas pagãs). Toríbio dá ênfase que, para o sacrificado, o processo “não era de sua própria vontade, mas sim à força”, e que este “sentia muito a morte e sua espantosa dor”. Os adereços utilizados nos ritos (feitos de pele humana) também eram vistos como cruéis e espantosos. Outra forma de se referir aos deuses ou ídolos era por “demônios”, os quais eram honrados pelos indígenas. Dessa forma, Toríbio buscava em sua escrita etnográfica um meio para facilitar o processo evangelizador. Sua crônica é religiosa e etnográfica, intelectual e eclesiástica, descritiva e crítica. Essas passagens escolhidas para falar sobre uma escrita de alteridade, nos permitem entender a mentalidade por trás conquista.
O título do trabalho de onde foi retirado esse texto, Motolinía: o choque espiritual no Novo Mundo, já nos direciona para uma discussão de caráter cultural. Portanto, esse texto do século XVI, amparado por outras fontes de caráter seriado e quantitativo, nos permite, através de sua problematização, identificar elementos do contexto do processo de colonização da América, seus mecanismos e as mentalidades de seus agentes.