Sofrônia e suas meias cidades. (A partir da obra de Ítalo Calvino)

A primeira metade, aparentemente incerta e escorregadia, é a base. Mesmo com seu lado lúdico, sua forma quase impossível de se sustentar (com cabeças para baixo numa montanha russa, ou com pessoas na mais alta cabine da roda gigante) se mantém firme, fixa. Lá, podemos encontrar raízes.

A segunda, com sua carranca dura, repleta de parafusos, cimento e instituições nos contorna como uma serpente, e quando menos esperamos, está longe. Com sua bagagem, seu peso e com sua passagem de volta sem data marcada. Ela é parecida com as sementes dos frutos que caem das árvores, vão, mas um dia voltam como outras árvores.

A vida em Sofrônia, para quem olhasse de fora, tinha como ultimo elemento o sofrimento. Ela era repleta de uma magia fixa, com purpurina ao invés de poeira, com o ar cheirando a curiosidade da melancia. Quem pisasse em Sofrônia pela primeira vez, sentia uma sensação de adrenalina quase instantânea, como se estivesse em cima se um trapézio com uma rede de proteção furada embaixo.

Mas ela não tinha esse nome por uma simples infelicidade do destino, Sofrônia tinha em sua primeira instancia o sofrimento latente como característica. A sensação de adrenalina, que invadia a todos em um primeiro momento, passava, e em seu lugar permanecia um vazio tão grande, que era quase que como tudo que existisse antes fosse levado embora junto com a adrenalina. Podemos comparar a sensação com a de um equilibrista que teve sua corda cortada, ou com a de um palhaço que perdeu seu nariz.

Os moradores de Sofrônia viviam assim. Nasciam como se ligados na tomada da adrenalina, mas à medida que iam crescendo, e principalmente quando viam sua meia cidade partir pela primeira vez, iam ficando apáticos, como se a bateria interna de cada um estivesse acabando. E permaneciam assim, com essa sensação de vazio extremo, apenas observando a vida pulsante de turistas que passavam por lá. Permaneciam assim, até apontar no horizonte a torre familiar da igreja matriz, sabiam então que sua meia cidade estava de volta. Depois de ter se restabelecido e de ter tomado outros ares, vinha como aquele parente querido que foi morar na capital, mas que sentia falta do gosto do feijão e ansiava pela sobremesa.

Quando viam a torre da igreja e escutavam o canto dos pedreiros, era como se cada morador ligasse sua fonte na tomada novamente. A sensação era de euforia, as crianças, que eram e são mais sensíveis a tudo, ruborizavam e corriam de um lado para o outro rindo compulsivamente. Era como se estivessem imersos num arco-íris, onde todas as cores vibravam e renasciam esperanças dentro de cada um.

Com a volta da meia cidade, muitas ocupações por ora esquecidas, voltavam a ser prioridades. Pagar contas, fazer compras, obedecer a leis, estudar. A escola era o lugar de maior movimentação nesse período, onde antigos alunos voltavam a seus estudos com tamanha ânsia, nunca vista em nenhum outro lugar. E crianças novas ingressavam no mundo da aprendizagem, ficavam encantadas com as possibilidades que aquela instituição proporcionava e ainda ficavam contentes com a certeza de que um dia se livrariam daquele lugar (que cansava em alguns momentos, e obrigava a superar dificuldades), só não sabiam ainda, que sofreriam com sua partida. Que sem ela, a vida ficava vazia depois de um tempo, que o ócio para ser produtivo é preciso de aprendizagem, e que o tédio é dominador.

Sofrônia é instável, não existe uma periodicidade para sua metade ir e vir, por isso, que apesar da euforia e tranquilidade que se estabelece com sua volta, sempre permanece um sentimento de apreensão guardado dentro de cada um. Pois sabem, que podem acordar de um cochilo após o almoço, e os pedreiros já estarem a postos para desmontar o acampamento. Que com isso, suas crianças teriam suas primeiras frustrações com a invasão do vazio em suas vidas, seus adultos voltariam a ficar apáticos e a observar a luz dos turistas e seus velhinhos voltariam a alimentar a esperança da volta, já que como mais experientes, sabem muito bem fazer isso.

Camila Freire
Enviado por Camila Freire em 28/10/2016
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