É possível ser um profissional individualista que não se isola?
Analisando a tirinha em que Calvin critica o olhar (ou a sensibilidade do olhar), é possível fazer uma comparação com a atividade de muitos professores, que não abrem mão da sua individualidade, e por isso correm o grande risco do isolamento, o que os impede de compartilhar suas práticas e experiências com outros profissionais.
Tal isolamento leva a crer que ainda há muitos pedagogos inseguros, que preferem viver dentro de seu próprio universo, fechado e sem novidades, numa mente obtusa, mesmo tendo um caminho para o aumento de repertório, que consequentemente abre a possibilidade de aproximação de outros colegas de profissão.
A crítica feita no quadrinho se trata do individualismo humano, onde é notável a questão do isolamento na sociedade. As pessoas passam muito tempo trancadas em suas casas, voltadas para si e para a televisão, participando da vida de pessoas intangíveis, sem perceber que, ao seu redor, há várias pessoas esperando um olhar sensível. Esperando o início de uma conversa, o surgimento de uma nova a amizade, uma experiência de troca tangível de vivências e práticas que deram certo e, por isso, devem ser compartilhadas.
Esse fenômeno também acontece nas escolas, onde os pedagogos não entram na sala dos professores para partilhar vivências e práticas positivas, mas entram para criticar seus alunos, sem ao menos perceber que as crianças também são o espelho do professor e que acreditam ser aquilo que dizem. É um pouco óbvio que um aluno que tem um estigma de “criança problema” dará problemas, simplesmente por acreditar naquilo que dizem dele. Mas também é verídico que, uma criança que é vista como o primeiro da turma, o aluno empenhado, terá um desempenho bom, já que ele está levando em consideração aquilo que seu professor acha dele.
É preciso ter muito cuidado e sensibilidade ao lidar com situações complicadas na sala de aula. O professor precisa de um apoio do coordenador pedagógico para desempenhar o seu trabalho de maneira eficiente, mas ele também precisa estar aberto a novas possibilidades e entrar na sala de aula disposto a fazer a diferença e a trabalhar em prol de seus alunos. A educação não se resume a dar aula, mas sim no comprometimento de criar cidadãos críticos que possibilitem uma mudança para a sociedade. Indivíduos que questionam e buscam aperfeiçoar suas práticas através de seus erros e acertos e das experiências bem-sucedidas dos outros. A ideia que gira em torno da autonomia parte do comportamento e do espaço que o professor tem e proporciona dentro da sala de aula.
Não adianta exigir muito de um aluno sem tentar adaptar atividades e mudar as estratégias. O professor não nasce feito, a pedagogia não é uma vocação – se alguém está fazendo esse curso só porque gosta de crianças, então repense a escolha, pois a profissão vai muito além do amor – ela tem uma questão social e política fortíssima. O profissional da educação precisa se aprofundar nas vivências e é a troca com seus colegas de trabalho, sejam eles outros professores ou seu coordenador e diretor, que pode ajudá-lo.
Manter a individualidade não é algo ruim, não se pretende formar professores iguais, que falam da mesma maneira, ensinam de um mesmo jeito, até porque não se ensina a ensinar. Isso se aprende, se molda, se aperfeiçoa ao longo dos anos, com a experiência adquirida e partilhada. A questão não é falar da mesma maneira, mas falar a mesma língua. Coerência, consistência, abertura e compartilhamento de trocas são pontos essenciais para um profissional da área.
Os educadores devem dar abertura, sem perder suas características individuais, mas formando um caminho de ampliação de repertório. A educação é como uma corrente, para existir é preciso de muitos elos, e cada profissional é um deles. Se cada um compartilhar sua vivência, a corrente fica mais forte, sólida, completa e maior.
Não adianta enxergar e entender muito bem só o que há dentro de si, é preciso explorar e encontrar novas possibilidade dentro dos outros, também.
Mafalda sabiamente se questiona sobre o tempo que se “perde” ao trabalhar tanto. E isso se relaciona diretamente ao questionamento de Calvin. Por que os professores passam tanto tempo sem partilhar suas vivências, se dentro das escolas existem tantos profissionais que, talvez, fizessem a diferença espelhando-se nas experiências alheias? Por que se perde tanto tempo trabalhando para ganhar a vida, se muitas vezes o ganho está tão próximo e dentro de seu próprio trabalho? Próximo das informações do outro, vivências, experiências, questionamentos, estudos, planejamento. Há muito a se compartilhar dentro de uma escola. Os professores só precisam ser mais acessíveis, tornando-se um elo da corrente.
A ilusão de que o “ganho da vida” só acontecerá no fim dela, é espantoso. Que dado é esse? A vida pode ser ganha enquanto se está vivo, trabalhando, e lutando por uma educação melhor e de qualidade. Lutando pelas crianças que hoje não tem esperança e estão à margem da sociedade. Que são vítimas de uma meritocracia escancarada. Se o professor não se empenhar em ganhar essas vidas, as de seus alunos, seu trabalho definitivamente não está sendo executado com o empenho suficiente. Sabe-se que os profissionais da educação não operam milagres, mas se sabe, também, que ele tem uma função social indiscutível. As escolas atuais não são as melhores, suas condições não são magnificas, pedagogos não são valorizados, professores e alunos sofrem e lutam muito para alcançar uma educação digna. E é essa luta que deve ser vista como o ganho da vida. A luta por uma educação digna e de qualidade para todos. Educação é um direito!
A insegurança e, talvez, a disputa apresentada por muitos professores traz o medo de perder a autonomia, mas como citado antes, a individualidade de cada um é importante e rica, e deve ser respeitada, mas o isolamento é uma consequência que pode atrapalhar o desenrolar das práticas. A metáfora da corrente cai muito bem nesse caso, onde ficar na defensiva não soma, mas impede a aproximação dos seus elos.
Referência bibliográfica:
HARGREAVES, Andy. Os professores em tempos de mudança: o trabalho e a cultura dos professores na idade pós-moderna. Lisboa: MacGraw – Hill de Portugal, 1998, p.183-208 (cap. 8 – Individualismo e Individualidade – compreender a cultura dos professores) e p. 208-237 (cap. 9 – Colaboração e colegialidade artificial – chávena reconfortante ou cálice envenenado?).