Bairro: o fragmento de uma cidade
Texto sobre o bairro como elemento social e histórico de uma cidade, produzido através de extratos do prefácio do meu futuro livro, Barro Vermelho: História e Memória do bairro São Lázaro.
Bairro, na definição do mais simples dicionário, é cada uma das partes que formam uma cidade. É em cada uma dessas partes, seja em qual zona for, que surge a memória coletiva, passada de geração em geração através da vida pública, representada pela convivência em templos religiosos, estabelecimentos comerciais e repartições públicas; e da vida privada, por meio de ensinamentos e práticas familiares. Essas memórias, quando evocadas e transmitidas de forma oral, constituem-se de matéria essencial para a construção da História desses bairros. Soma-se à memória as fontes documentais, encontrada em paróquias, prefeituras e acervos particulares.
Essa divisão administrativa e geográfica de uma urbe, a menor hierarquicamente, se faz presente desde as civilizações da Antiguidade, com diferentes funções em determinados locais e épocas: Nas cidades da América pré-colombiana, por exemplo, estavam acima dos núcleos familiares e tinham mais liberdade em relação ao estado; e na China da Dinastia Tang, surgiram para facilitar o registro civil e a cobrança de impostos.
Um bairro não é igual ao outro. Cada um possui particularidades distintas e bem visíveis. Na Roma Clássica, Subura era conhecido como lugar dos prazeres mundanos e da libertinagem, e Cerâmico, por abrigar os oleiros da capital. Alfama, bairro português do século XV, era conhecido por seus banhos públicos desde os tempos clássicos. Vila Nova Conceição, em São Paulo, é considerado o mais caro da capital. Essas diferenças, com o passar do tempo e aceitação dos moradores, se tornam referência para a comunidade.
Em Manaus, São Vicente de Fora, núcleo inicial de povoação do Centro, é considerado o mais antigo da cidade, com relatos desde o século XVIII. Compreendia as ruas 5 de Setembro, Bernardo Ramos, Frei José dos Inocentes, Visconde de Mauá, Monteiro de Souza, Tamandaré e Itamaracá. Mais tarde surgiram Remédios, Espírito Santo, Campina, República e Nazaré, todos amalgamados e transformados no que hoje é o Centro.
Esses locais, no decorrer da História de Manaus, foram surgindo de diferentes formas: alguns, raros, tem início de forma planejada, com projetos registrados em plantas e traçados feitos por engenheiros, como foi o caso dos bairros Cachoeirinha e Adrianópolis. A maioria esmagadora foi surgindo por meio de invasões em momentos críticos como o fim da economia gomífera; a grande cheia de 1953; a destruição da Cidade Flutuante, grande favela fluvial erguida em 1920 em frente ao Centro (destruída em 1967); e o boom provocado pela instalação da Zona Franca (1967-1990). Estes se encontram em peso nas zonas Leste e Norte, e também estão nas zonas Sul e Oeste.
São Lázaro, na zona Sul, foi um desses bairros que surgiu em meio a invasões, durante os anos 1950, quando a cidade ainda sofria os reflexos da decadência da economia da borracha e passava a receber um número crescente de pessoas vindas do interior do estado, que estava com seus seringais falidos e abandonados. Nele se amalgamaram os saberes populares, as tradições culturais e os dramas anônimos daqueles que tentavam se fixar e iniciar uma nova vida na capital. A Paróquia improvisada, construída de madeira e palha; as casas humildes, feitas do mesmo material; e as ruas, irregulares, abertas sem ordenamento e nomeadas conforme a topografia, o nome de um morador ilustre ou nome religioso, são elementos de um cenário bucólico presente nos primeiros tempos de existência da comunidade.
Uma parte, um pedaço, uma divisão, um fragmento. Da Roma Clássica à Manaus, guardadas as devidas diferenças, o bairro é o elemento que catalisa a vida em comunidade, o social em confluência ao histórico, os saberes populares e culturais. Quando se juntam esses “fragmentos”, todos com as características anteriormente citadas, se forma o espírito de uma cidade. Que num futuro não tão distante se produza uma grandiosa História Geral dos bairros e comunidades de Manaus, com foco nas zonas Leste e Norte, carentes de uma narrativa que dê luz às suas identidades históricas.