A Fundação de Roma segundo Tito Lívio e Eutrópio

As cidades mais antigas do mundo, fundadas por civilizações que se mostraram grandiosas em seus feitos, tem suas origens incertas e envoltas em um mar de mitos e lendas. As incertezas, somadas ao fantástico, instigam pesquisadores como arqueólogos, antropólogos, historiadores e outros profissionais das áreas Humanas. Quem foram Rômulo e Remo, personagens amamentadas por uma loba? Seriam apenas figuras mitológicas ou de fato existiram? Autores antigos já debruçavam sobre essas questões. Para esse texto escolhi as versões de dois historiadores clássicos: Os romanos Flavius Eutrópio (século IV d.C.) e Tito Lívio (59 a.C. - 17 d.C.).

Em Desde a Fundação da cidade, obra densa que originalmente possuía 142 livros, dos quais restaram apenas 35, Tito Lívio, como diz o título do livro, registra a história de Roma desde sua fundação, em algum momento de 753 a.C. até o século I d.C. Tito Lívio exalta os valores do passado romano, decadentes depois de um longo período de guerras civis, e dá grande atenção aos mitos e lendas do Império, considerados por ele dignos de serem preservados.

''Conta-se que o primeiro agouro apareceu a Remo: eram seis abutres. Acabava de ser anunciado, quando Rômulo viu doze deles, e ambos foram proclamados reis por seus partidários. Um baseava suas pretensões na primogenitura, o outro no número das aves. Durante o debate que seguiu, sua cólera, aumentada pela resistência, ensanguentou a disputa. Em meio à desordem, Remo, ferido, cai morto. Uma tradição mais corrente relata que Remo, para insultar seu irmão, saltara as novas muralhas e que Rômulo, no arrebatamento da fúria, matou-o, dizendo: “Assim há de morrer aquele que transpor minhas muralhas”. Rômulho ficou sendo, pois, o único chefe, e a nova cidade tomou o nome de seu fundador. Primeiro, ocupou-se de fortificar o monte Palatino onde fora criado; ofereceu sacrifícios aos deuses segundo o rito de Alba; apenas para Hércules, seguiu o rito grego, estabelecido por Evandro.

Conta-se que Hércules, vencedor de Gerião, conduziu para lá bois de rara beleza e que, depois de atravessar o Tibre a nado, tendo-os à frente, descansou às margens do rio para que o rebanho se refizesse nos pastos abundantes. Exausto, farto de carne e vinho, estendeu-se na relva e adormeceu. Um pastor da província, chamado Caco, temido por sua força extraordinária, foi seduzido pela beleza dos bois e decidiu tomar para si tão rica presa. Mas, trazê-los à sua caverna seria guiar para lá o dono, quando este seguisse o rasto. Ele então escolheu os mais belos e arrastou-os pelo rabo até sua habitação. Ao raiar do sol, Hércules desperta, olha seu rebanho, percebe que faltam alguns, e corre em direção à caverna vizinha para verificar se as pegadas iam para lá. Todas se afastavam dela. Não sabendo o que resolver diante desta incerteza, retirou seu rebanho desses pastos perigosos. Na hora de partir, alguns bezerros, sentindo falta das companheiras que tinha perdido, deram mugidos. Os que se encontravam no antro responderam e sua voz chamou a atenção de Hércules. Ele se precipitou em direção à caverna. Caco quis fechar o caminho, pediu em vão a ajuda dos pastores e caiu vítima da terrível clava.

Evandro, vindo do Peloponeso refugiar-se nestes lugares, tinha, sem autoridade real, grande influência; ele a devia ao conhecimento da escrita, cuja maravilha era nova para estas nações incultas e, mais ainda, à fé na divindade de sua mão Carmenta, cujas predições tinham enchido de admiração esses povos, antes da chegada da Sibila à Itália. O ajuntamento dos pastores curiosos, em torno do estrangeiro culpado de um assassínio manifesto, chamou a atenção de Evandro, o qual se informa do fato e das causas que o trouxeram até aí; depois, considerando a estatura acima do normal, os traços nobres, ele pergunta ao herói quem é. Quando soube seu nome, o de seu pai e de sua pátria, disse: “Filho de Júpiter, Hércules, te saúdo. Minha mãe, infalível intérprete dos deuses, me predisse que tu devias assentar-se entre os habitantes do céu. A ti, a mais poderosa nação do mundo deve consagrar, neste mesmo lugar, um altar, que se chamará de maior, do qual fixarás o culto”. Hércules estendeu-lhe a mão, dizendo que aceitava o agouro e que, para seguir o decreto do destino, ia erguer e consagrar o altar. Escolhe o bezerro mais belo do rebanho e o primeiro sacrifício é oferecido à Hércules.

Os Potícios e os Pinários, as duas famílias mais ilustres da província, assistiram à cerimônia e ao festim. Aconteceu que os Potícios chegaram a tempo, e a carne da vítima lhes foi servida. Os Pinários só chegaram quando esta foi consumida e tomaram parte no final do festim. Vem daí o costume, conservado até a extinção da família Pinário, que lhe proibia a carne das vítimas imoladas. Os Potícios, instruídos por Hércules, foram durante vários séculos os ministros desse culto; mas, quando encarregaram os escravos públicos destas funções confiadas exclusivamente à sua família, todos pereceram. Tal culto foi o único que Rômulo imitou dos estrangeiros: já naquele tempo, ele aplaudia a virtude da imortalidade, para a qual seu destino conduzia.

Terminadas as cerimônias religiosas, ele reuniu numa assembleia geral a multidão que só os liames das leis podiam unir e ditou-lhe as suas; mas, persuadido de que convinha, para merecer o respeito desses homens grosseiros, engrandecer-se a si mesmo com as insígnias do poder, entre outras marcas exteriores de sua potência, elegeu doze litores. Acredita-se que ele escolheu este número por causa das aves que lhe tinham anunciado o império; mas sou da opinião dos que pensam que imitou os etruscos, seus vizinhos, a quem devemos as ordenanças e os outros oficiais, as cadeiras curules e a toga pretexta: nos etruscos, o número era de doze, porque doze povos elegiam em comum um rei, ao qual cada um dava um litor.

No entanto, a cidade crescia: estendia-se cada dia, devido mas às esperanças do fundador do que à população atual. Mas, para concretizar essa grandeza, para atrair as multidões, fiel à política dos fundadores de cidade que, aliciando homens ignorantes e desconhecidos, pretendem que a terra conceba cidadãos, Rômulo abriu um asilo no lugar hoje cercado, que se encontra na descida do Capitólio, nos bosques sagrados. A novidade logo atraiu uma multidão de homens livres e de escravos. Assim se deu o primeiro passo para a potência da qual se lançavam os alicerces. Satisfeito com suas forças, Rômulo escolheu os meios para usá-las. Elege cem senadores; este número pareceu-lhe suficiente, ou talvez encontrasse apenas cem personagens dignos desse título. Receberam o nome honorífico de pais e seus descendentes o de patrícios''.

TITO LÍVIO, I, VII-VIII.

Na versão de Tito Lívio, devemos perceber o seguinte: Os agouros, bons ou maus, previsões e superstições são uma das principais marcas da escrita de Lívio. Ele exalta a figura de Rômulo e a predestinação da cidade, que nasceu para se tornar grande e poderosa. Os mitos, importantes para ele, são usados de forma mais densa que em Eutrópio. A menção aos etruscos é um dos aspectos históricos mais importantes, pois se sabe, através de pesquisas arqueológicas e históricas, que estes tinham 12 cidades, que se uniam em uma confederação; e que alguns dos primeiros reis romanos eram de origem etrusca. Os patrícios constituíam a aristocracia romana, e os litores eram funcionários públicos que escoltavam os magistrados curules.

O segundo autor, Eutrópio, viveu na segunda metade do século IV de nossa era, e desempenhou o cargo de secretário em Constantinopla. Sua principal obra, Breviário de História Romana, dedicada ao imperador Flávio Júlio Valente (imperador de 364 d.C. a 378 d.C.) é um compêndio sobre a história da cidade desde sua fundação até o início da administração de Valente. Escrito de forma simples e concisa, sem espaço para técnicas de embelezamento estilístico, o Breviário é dividido em 10 livros, que informam os principais fatos da história romana e as campanhas militares no exterior.

"O Império Romano, de início talvez o mais fraco e que se tornou, por suas conquistas, o Estado mais poderoso que jamais existiu na face da terra, tem sua origem em Rômulo, filho de uma sacerdotisa de Vesta e, ao que se acredita, de Marte.

Rômulo nasceu com Remo, seu irmão gêmeo. Depois de viver entre os pastores, as armas sempre na mão, aos dezoito anos ele ergue uma pequena cidade no monte Palatino, no dia onze das calendas de maio, durante o terceiro ano da sexta olimpíada, cerca de trezentos e noventa e quatro anos após a ruína de Tróia, segundo as tradições mais ou menos exatas dos historiadores.

Após fundar a cidade, que chamou Roma, no que tirou do seu, faz o que se segue: recebeu, na nova cidade, todos seus vizinhos; escolheu cem dos mais velhos para que o aconselhassem em todas suas ações; deu-lhes o nome de senadores, por causa de sua idade avançada. Mas, como ele e seu povo não tinham mulheres, convidou para os jogos as nações vizinhas de Roma e mandou raptar as moças. Este ultraje logo provou guerras; os ceninenses, os antenates, os crustuminenses, os sabinos, os fidenates e os veientanos, cujas cidades estavam ao redor de Roma, foram vencidos. E, tendo Rômulo desaparecido durante uma súbita tempestade – após um reinado de trinta e seis anos - , acreditou-se que tinha sido recebido no céu: foram-lhe rendidas as honras da apoteose".

EUTRÓPIO, I, 1-2.

Da versão de Eutrópio retiramos os seguintes pontos: Primeiro, o autor cita os pais de Rômulo e Remo, Reia Silva, uma vestal, e Marte, Deus da Guerra; segundo, o monte Palatino, onde foi erguida, por Rômulo, uma pequena cidade. De fato, existem ruínas romanas nesse lugar, algumas datando dos séculos VI e IV a.C., o que atesta essa parte do relato. Terceiro, é citada uma instituição criada nos anos iniciais da expansão romana (o Senado); quarto, são mencionados os povos que viviam ao redor da cidade, povos esses mais tarde conquistados pelos romanos; e, por último, temos uma segunda versão do fim da vida de Rômulo: Após uma tempestade criada por seu pai, Marte, ele ascende aos céus na posição de divindade. Outra versão conta que este foi assassinado em uma conspiração do Senado. Diferente de Tito Lívio, que exalta a superioridade de Roma, Eutrópio mantém uma posição neutra em relação ao Império.

Depois dessa breve análise de duas versões (as duas com elementos míticos e também históricos) sobre a fundação da cidade de Roma, percebemos que as histórias antigas são uma importante fonte para a reconstrução do passado. Devemos, claro, entender a influência que o fantástico tinha na vida desses autores, como em Tito Lívio, que dele tirava exemplos morais. Com uma análise crítica, cuidadosa e com total expurgo de anacronismos, temos materiais que, auxiliados por outras fontes, constituem mais um passo ao preenchimento de lacunas tão antigas quanto essas civilizações.

FONTES:

Textos de Eutrópio e Tito Lívio: PINSKY, Jaime. 100 Textos e Documentos de História Antiga. 4° ed. São Paulo: Contexto, 1988.

EUTROPIO, AURELIO VÍCTOR. Breviario Libros Cesares. Madrid: Biblioteca Clásica Gredos, vol. 261, 1999.

SHOTWELL, James T. Historia de la Historia en el mundo antiguo. Ciudad de Mexico, Fondo de Cultura Económica, traducción de Ramón Iglesa, 1982.