Analisando um documento histórico
Ao analisar um documento, precisamos levar em conta quatro aspectos fundamentais: O autor; tipo de documento (carta informal, documento oficial, relação, testamento etc); o contexto histórico em que foi redigido e, claro, saber sobre o que ele se refere. O documento que será aqui analisado é a Carta Régia de 03 de março de 1755 criando a Capitania de São José do Rio Negro. A Carta Régia é um documento oficial assinado por um monarca (no nosso caso, o autor é José I de Portugal), contendo determinações endereçadas diretamente para o chefe político de uma região administrativa. Por ser extensa, não irei compilar a carta totalmente nesse texto, deixando isso para outra ocasião. Para nossa análise, serão utilizado trechos centrais para o entendimento.
Os motivos que levaram à criação da Capitania de São José do Rio Negro
"Tendo consideração ao muito que convem ao serviço de Deos, e meu, e ao bem commum dos meus vassalos moradores nesse Estado, que nelle se augmente o numero dos Fieis alumiados das Leis do Evangelho, pelo proprio meio da multiplicação das Povoações civis e decorosas; para que attrahindo a si os Racionaes, que vivem nos vastos sertões do mesmo Estado separados da Nossa Santa Fé Catholica, e até dos dictames da mesma Natureza: E achando alguns delles na observancia das Leis Divinas, e humanas, socorro e descanço temporal e eterno sirvão de estimulo aos mais que ficarem nos mattos, para que imitando tão saudaveis exemplos, busquem os mesmos benefícios: e attendendo a que aquella necessaria observancia das Leis, senão conseguira para produzir tão uteis effeitos se a vastidão do mesmo Estado que tanto difficulta os recursos das duas capitaes do Gram Pará e de São Luiz do Maranhão senão se subdividissem em mais alguns governos a que as partes possão requerer para conseguirem que se lhes administre justiça com maior brevidade, e sem a vexação de serem obrigados a fazer tão longas, e penosas viagens, como agora fazem. Tenho resoluto estabelecer um terceiro Governo nos confins occidentaes desse Estado, cujo Chefe sera denominado Governador da Capitania de São José do Rio Negro".
Vamos contextualizar a região amazônica na segunda metade do século XVIII e, através desse trecho da carta, compreender as necessidades que levaram à criação de um terceiro governo: Naquela época, a capital do Estado do Maranhão e Grão Pará estava em Belém (desde 1751). Os territórios mais ao interior desse Estado português enfrentavam dificuldades para se desenvolver, principalmente por causa das distâncias entre a capital. Para o governo, era um empecilho para o cumprimento das leis, na arrecadação de impostos e na pregação da religião Católica aos índios. Somamos ao problema da distância, a questão da soberania de Portugal sobre suas fronteiras, tão cobiçadas por ingleses, holandeses, franceses e irlandeses; e a presença de jesuítas, vistos como uma ameaça ao governo de Portugal (o que, 4 anos mais tarde, seria confirmado com a expulsão dessa ordem das possessões do Império Português). O nome escolhido par ao novo Governo, Capitania de São José do Rio Negro, é apenas mais uma marca da religião oficial do Império e de sua colônia.
Logradouros e Prédios Públicos
"Sou servido ordenar-vos, que aproveitando a occazião de vos achares nessas partes, passando a referida Aldea, depois de haveres publicado por Editaes o contheudo nesta, e de haveres feito relação dos moradores que se offerecerem para a povoar, convoqueis todos para determinado dia, no qual sendo presente o Povo determineis o lugar mais proprio para servir de Praça, fazendo levantar no meio della o Pelourinho: assignando área para se edificar uma Igreja capaz de receber um competente numero de Freguezes, quando a Povoação se augmentar, como tambem as outras áreas competentes para as casas das vereações, e audiencias, Cadêas, e mais officinas publicas, fazendo delinear as casas dos moradores por linha recta, de sorte que fiquem largas, e direitas as ruas".
No trecho acima temos destacados os principais componentes de uma vila colonial brasileira: A Praça, o Pelourinho e a Igreja. A Praça seria o local das festividades públicas, dos deveres cívicos para com Vossa Majestade, e o comércio. O Pelourinho, na Amazônia, não teve, na maioria das vezes em que foi usado, o mesmo "sentido" que ganhou nas cidades escravistas do Brasil: As cidades da Amazônia não tinham dinheiro suficiente para importar escravos africanos dos grandes centros coloniais, claro, com exceção da capital Belém, que possuía alguns, em número reduzido, sendo o Pelourinho, na maioria das vezes, utilizado para castigar escravos indígenas ou criminosos. O governo português também estimulou a povoação da nova capitania, dando terras para seus colonos e concedendo facilidades para a exploração de atividades comerciais. A tecnologia da época e o terreno da região não permitiram a criação de vias públicas de qualidade, que só viram melhorias a partir do Império Brasileiro (1822-1889).
Os Limites da Capitania
"O território do sobredito Governo se estenderá pelas duas partes do Norte, e do Occidente até as duas raias Septentrional, e Occidental dos Dominios de Hespanha, e pelas outras duas partes do Oriente, e do meio dia lhe determinareis os limites que vos parecerem justos, e competentes para os fins acima declarados".
Mendonça Furtado, respeitando as novas fronteiras estabelecidas pelo Tratado de Madrid (1750), marcou os limites orientais e sul da Capitania. Foi apenas em 10 de maio de 1757, durante a administração de Joaquim de Melo e Póvoas, primeiro governador da Capitania, que os limites foram melhor traçados: Com a Capitania de Mato Grosso, ao sul, através da cachoeira de Nhamundá até sua foz no Amazonas e deste pelo outeiro do Maracá-Açu, ficando para o Rio Negro a margem ocidental do Nhamundá e do outeiro (REIS, 1989, adaptado).
Através desses trechos da Carta Régia de 03 de março de 1755, percebemos as principais características do documento: É um documento oficial, escrito por um rei e destinado a uma autoridade local. Foi escrito em um contexto de povoação da Amazônia, quando se fazia necessária a presença da autoridade nessa parte do Brasil, com anseios de desenvolvimento econômico e sofrendo ameças estrangeiras. No seu conteúdo temos diversas ordens administrativas (o estabelecimento de um novo Governo na Amazônia, os motivos para sua criação, a povoação do mesmo e a criação de logradouros de prédios públicos).
FONTES:
Carta Régia de 03 de março de 1755 criando a Capitania de São José do Rio Negro. Universidade do Amazonas. CEDEAM. Cartas do Primeiro Governador da Capitania de São José do Rio Negro, Joaquim de Mello e Póvoas (1758-1761): transcrições paleográficas. Manaus, Universidade do Amazonas, 1983. p. 69, 71.
REIS, Arthur Cézar Ferreira. História do Amazonas. 2° ed. Belo Horizonte: Itatiaia; Manaus: Superintendência Cultural do Amazonas, 1989. - (Coleção reconquista do Brasil. 2° série; v. 145). p. 121.