Ensino da Matemática no Pará eAmazonas

 
Luiz Carlos Pais e Tarcísio Luiz de Leão e Souza


Resumo: Este artigo descreve uma pesquisa cujo objetivo foi analisar elementos históricos do ensino da matemática secundária no contexto das províncias do Pará e do Amazonas, no período de 1840 a 1870. As principais fontes primárias utilizadas foram leis, regulamentos da instrução pública primária e secundária, relatórios dos presidentes das províncias e de outras autoridades responsáveis pela instrução pública. Foram também utilizadas informações descritas na obra de Primitivo Moacyr, publicada em 1939. As fontes de informação foram submetidas a uma análise de discurso e interpretadas por meio de uma abordagem cultural e histórica, na linha proposta por André Chervel. Os fatos históricos foram definidos com base no pressuposto de que as propostas de instrução pública, no período considerado, foram implementadas a partir de estratégias fortemente ligadas ao projeto político. Foi possível constatar que os desafios da educação matemática nas províncias do Pará e do Amazonas se aproximam das dificuldades das demais províncias e, em parte, resultam da política colocada em prática a partir do Ato Adicional de 1834. Apesar das iniciativas de alguns governos, somente uma pequena parcela da sociedade local tinha acesso à educação secundária. A prioridade era preparar os alunos para o ingresso no ensino superior, missão iniciada pelo Liceu Paraense e que norteou também a criação do Liceu Amazonense, em 1869. No período analisado persistem os problemas da falta de professores, escolas e de condições para expandir o processo de formação de professores primários.
Palavras-chave: Educação Matemática. História da Educação Paraense. História da Educação Matemática. Educação Matemática no Amazonas.
 
Considerações iniciais
 
Para analisar aspectos históricos da educação escolar em um determinado contexto social é necessário criar diferentes caminhos e posições teóricas. Isso faz com que a configuração de um trabalho dedicado ao tema proposto neste artigo dependa, entre outras condições, de certo número de pressupostos adotados no programa ao qual os pesquisadores estão filiados. Quando diferentes programas são usados como referência, compete ainda ao pesquisador o desafio de fazer as articulações possíveis entre as teorias de suporte, mostrando possíveis pontos de convergência e os limites das aproximações. Com base nesse princípio concernente ao campo da pesquisa educacional e diante da diversidade de caminhos existentes, cumpre-nos abordar as opções construídas no contexto do nosso grupo de pesquisa, o qual pretende valorizar estudos históricos da educação matemática escolar sem perder de vista das bases epistemológicas das ciências de referência.
 
Esta intenção é desafiante porque os referenciais mais usados, na atualidade, para realizar estudos históricos do ensino da Matemática tendem a se deslocaram para duas posições radicais: permanecer no território dos conteúdos específicos, priorizando a história dos saberes matemáticos ou partem para conceitos excessivamente genéricos que supostamente contemplariam a especificidade de todas as disciplinas escolares. A posição na qual nos colocamos para tratar do tema histórico consiste em valorizar a escola como território de produção de saberes, campo de atuação do trabalho docente, sem perder de vista a especificidade das práticas e da ciência de referência. Nossa intenção é valorizar uma abordagem histórico-epistemológica. A história de uma disciplina escolar está impregnada de sua especificidade e de aspectos epistemológicos tal como é a valorização da categoria da argumentação no ensino da Matemática.
 
As raízes positivistas do ensino tradicional da matemática deixaram profundas marcas na maneira de conceber e conduzir a disciplina ministrada em nível das escolaridades primária e secundária. Os resultados dessa realidade estão presentes nas atuais orientações de formação de professores, onde predomina bases metodológicas vinculadas ao pensamento típico da sistematização do saber matemático. Por esse motivo a especificidade educacional da matemática deve ser analisada em sintonia com as referências mais amplas da educação, sem perder de vista o que existe no conjunto de todas as disciplinas, uma generalidade que pode esconder as ideologias predominantes no projeto político em um dado momento e contexto social.
 
Analisar vínculos entre a especificidade do ensino da matemática e o projeto político no qual as práticas escolares estão inseridas é um desafio. E no atual cenário diversificado da Educação Matemática, a superação desse desafio passa pelo diálogo entre os programas nos quais as pesquisas estão associadas. A defesa desse diálogo minimiza o prejuízo histórico decorrente da tentativa de isentar as práticas educativas de posições políticas e a função exercida pelo ensino da matemática. A objetividade típica do saber matemático não deve servir de argumento para reduzir o diálogo necessário ou inibir a compreensão das suas funções construídas ao longo da história.
 
Com base nos pressupostos que acabamos de descrever, o objetivo da pesquisa cujos resultados são descritos neste artigo foi analisar elementos históricos do ensino da matemática secundária no contexto das províncias do Pará e do Amazonas, no período de 1840 a 1870, e articular essas informações históricas com o panorama educacional mais amplo do século XIX. O período foi escolhido para envolver eventos relacionados à criação do Liceu Paraense (1841) e à instalação do Liceu Amazonense (1869). As histórias dessas duas instituições escolares estão associadas, nesse período, em função da presença dos paraenses que atuaram na instalação da Província do Amazonas.
 
Ao fazer esta pesquisa, procuramos compreender as relações existentes entre as realidades locais e os projetos educacionais propostos para o município sede do poder imperial. Esse objetivo pode ser traduzido na seguinte questão: Que pressupostos podem ser identificados nas orientações que aparecem no plano discursivo oficial para conduzir o ensino da matemática secundária nas províncias do Pará e do Amazonas, no período de 1840 a 1870 e quais relações existiam entre os eventos locais dessas províncias e o panorama geral da instrução pública da época?
 
Referencial teórico-metodológico
 
A pesquisa em história do ensino da matemática escolar é conduzida por nós a partir de noções oriundas a dois referencias teóricos que se complementam em vista do nosso objeto de estudo. Em primeiro lugar, usamos alguns conceitos do programa proposto por Chervel (1990), tais como as noções de vulgata, cultura e disciplina escolar, as quais servem como instrumento para precisar a natureza dos conhecimentos produzidos na escola. Em seguida, nossa intenção é também complementar a dimensão institucional das práticas culturais vivenciadas em certo contexto e as especificidades inerentes ao ensino da matemática.
 
Esse pressuposto permite compreender a maneira como ocorre o fenômeno cultural da produção de saberes no contexto de uma instituição e da rede a qual está associada. Ao aplicar os conceitos propostos por André Chervel e compartilhados por outros pesquisadores, pretendemos olhar com mais pontualidade as relações existentes no fenômeno da apropriação e da transformação de objetos culturais. Esse movimento resulta na produção ou na reprodução de práticas e saberes, os quais são transformadas em função dos interesses e dos problemas institucionais.
 
Ao considerar as relações estabelecidas entre as instituições existentes em torno da escola, entendemos que o saber acadêmico não dever ser concebido como uma fonte privilegiada na produção dos saberes que determinariam o funcionamento e a natureza dos saberes escolares. Uma das ciências de referência das práticas docentes escolares é a Matemática estudada na universidade, concebida no contexto do saber acadêmico, mas acreditamos que esta fonte apenas condiciona o funcionamento dos estudos escolares, mas não tem o poder de determinar a sua natureza. As práticas docentes escolares se constituem em um território de produções e por isso não devem ser concebidas apenas como um subproduto das práticas universitárias. Tendo como base esse entendimento, ao estudar a histórica da educação matemática, optamos por destacar aspectos característicos de práticas localizadas no contexto considerado.
 
A cultura escolar envolve uma diversidade de elementos vinculados a um campo específico de conhecimentos e à generalidade existente no conjunto das disciplinas que constituem o contexto educacional considerado. Entendemos que as práticas inculcadas, termo usado por Dominique Julia para caracterizar parte da cultura escolar, trazem uma especificidade vinculada às ciências de referência e à produção efetiva da escola. Os elementos que permeiam as práticas estão envolvidos em uma espécie de amalgama cultural típico da instituição: conteúdos específicos, objetivos, valores, ideologias, métodos, técnicas, exames, livros didáticos e outros recursos.
 
A valorização desses elementos flui sob a vigilância dos agentes institucionais, detentores de cargos criados para fazer esse tipo de trabalho sem o qual o território não tem futuro. É uma tarefa desafiadora e por esse motivo existe uma rede de outras instituições que dão suporte ao empreendimento. Mesmo não havendo concordância plena entre os discursos dessas instituições, no transcorrer de período de tempo mais longos, em dado momento, predomina a convergência de um discurso hegemônico. As práticas adotadas para resolver as tarefas matemáticas estão ancoradas e defendidas com base em tecnologias e teorias matemáticas, em sintonia com argumentos didáticos revestidos de bases ideológicas e escolhas políticas.
 
Os fatos históricos são definidos com base em traços registrados nas fontes primárias, contendo discursos, valores, normas e práticas prescritas por instituições que atuam em um determinado contexto. Ao fazer essa leitura, procuramos contemplar a dimensão política subjacente às propostas educativas, entrelaçando aspectos históricos e didáticos. A intenção é identificar as bases didáticas e matemáticas que sustentam práticas escolares da época e do contexto considerados. Ao persistir com essa intenção, optamos por pesquisar a legislação educacional paraense, através da descrição de Primitivo Moacyr, na obra dedicada à instrução pública nas províncias da região norte.
 
Pretendemos não perder de vista as relações existentes entre o discurso político local e a rede de instituições na qual circulava o ensino secundário da Matemática no contexto considerado por nós. Dessa maneira, é bom diferenciar as ações docentes, concebidas como de cunho pessoal, das práticas que ganham aval das instituições. O professor que ensina Matemática pode, até mesmo, sugerir procedimentos pessoais, mas a validade dessa opção cria corpo na medida em que recebe o aval das instituições envolvidas. O risco decorrente do aval dessas práticas é a possibilidade de tornar obscuras os interesses ou as tramas características das relações de poder existentes em suas entranhas. Daí a necessidade de viés crítico na condução das práticas escolares.
 
Por volta da década de 1830
 
A instrução elementar nos domínios da imensa capitania do Grão-Pará esteve entregue ao trabalho dos jesuítas até por volta de 1750, quando tem início os primeiros conflitos de interesse entre os agentes das instituições envolvidas: religiosos, militares e políticos vinculados à coroa portuguesa. (REIS, 1998.) De modo geral, a atuação dos padres jesuítas na instrução elementar também predominou nas demais capitanias. Com o episódio da expulsão dos padres inacianos dos domínios portugueses, ocorrido em 1757, e com o consequente fechamento dos seus colégios teve início um período de cerca de oito décadas onde pouco se fez em termos de instrução escolar no Brasil. Estamos nos referindo ao período de 1757 a 1837, sendo este ano em que foi criado o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Este período de oito décadas pode ser dividido ainda em dois outros, pois com a vinda da Família Real, em 1808 e com a instalação dos primeiros cursos superiores, as aulas régias de ensino secundário tiveram uma pequena expansão em termos do número de professores.
 
Dessa maneira, a situação de quase total abandono da instrução escolar pública persistiu até por volta dos meados da década de 1830, quando algumas das províncias começam a pensar em abrir estabelecimentos para ministrar o ensino secundário. No caso da província do Grão-Pará, base onde situa parte do período focalizado na pesquisa relatada neste artigo, talvez a situação fosse ainda pior do que ocorria nas demais províncias, tendo em vista sua imensa extensão territorial, as dificuldades de transporte e também a falta de pessoas que pudessem assumir as tarefas do magistério. Nos dizeres de Clóvis Moraes Rego, a ignorância favorecia as ambições dos que dominavam e dos que queriam dominar. Por esse motivo a instrução pública primária e secundária não estava entre as prioridades políticas locais. Com a proclamação da independência, de imediato, pouca coisa mudou. Assim, em 1835, período quando inicia o conflito da Cabanagem, Belém tinha apenas três Escolas de Primeiras Letras nas quais se praticava o método de ensino mútuo. (REGO, 2002) Mas, essa situação de abandono da instrução pública não ocorreu somente na região norte. De modo geral, a instrução pública foi tratada como uma questão de menor importância ao longo de todo o século XIX.
 
A ausência de um sistema de instrução pública escolar, ao longo de quase todo o século XIX, provocou profundas consequências no desenvolvimento do país. De forma mais direta, a distribuição de verbas públicas para financiar a instrução escolar ficou em plano secundário em relação às prioridades definidas pelo poder imperial. Somente nas últimas décadas do Segundo Império surgiram pequenas mudanças no quadro da oferta de instrução escolar, em parte, em decorrência da necessidade de expandir a oferta da instrução escolar para um número maior de pessoas. A partir dos meados da década de 1870 começou a expandir as exportações de café e iniciou um ciclo de desenvolvimento econômico, embora ainda restrito quase somente à região sudeste. Nessa época teve início a construção das primeiras linhas de transporte ferroviário, começou a chegar os primeiros imigrantes italianos para trabalhar nas fazendas paulistas em consequência do início das restrições à mão-de-obra escrava.
 
Demerval Saviani analisa essa ausência de um sistema de educação, durante o Império, ao fazer um balanço geral do legado educacional do século XIX, destacando o reduzido orçamento destinado à educação pela política imperial. (SAVIANI, 2007) Dados coletados por pesquisadores da área de história da educação brasileira mostram que, nos últimos anos do período imperial, os recursos concedidos à instrução escolar eram extremamente reduzidos em relação aos demais serviços públicos. Por esse motivo, deve-se ter cautela em concordar com as alegações de falta de verbas para custear os investimentos no campo da educação. Assim, é preciso colocar essa questão para interpretar o problema da falta de professores e os demais problemas que serão objeto na descrição dos próximos parágrafos.
 
Falta de professores (1839)
 
O problema da falta de professores para o ensino primário e secundário foi quase uma constante ao longo de todo o século XIX e isto está extensivamente presente entre os argumentos dos presidentes das províncias para justificar a situação da instrução pública em suas localidades. E quanto a esta questão, as províncias do Amazonas e do Pará não eram exceções. O relatório de 1839 do presidente paraense Bernardo de Souza Franco confirma essa observação, quando descreve o estado lastimoso em que se encontrava a instrução pública na sua província. Como reconhecia o presidente, os salários dos professores eram irrisórios e não haviam pessoas interessadas em fazer os exames, como uma peça do aparelho docimológico, para ocupar as vagas existentes. Dante dessa situação, criar novas cadeiras não resolvia o problema. Foi realizado um concurso para preencher as cadeiras vagas de Primeiras Letras e o resultado foi desolador porque não apareceu sequer um único candidato interessado. O número de cadeiras vagas correspondia a dois terços do total das existentes.
 
Mesmo que o ensino secundário fosse acessível somente por uma pequena parcela da sociedade, existia um reduzido número de cadeiras criadas e essa carência era agravada pela falta de professores. O relatório mencionado acima destaca a existência no Pará de apenas uma cadeira de Filosofia Racional, uma de Retórica, quatro de Latim e uma de Francês e nem todas estavam funcionando devido à falta de professores. Apesar das dificuldades, no que se refere à escala de prioridade entre as disciplinas escolares, percebemos, portanto, que a formação em ciências humanas se destacava, de modo acentuado, em relação à formação científica. A cultura escolar instituída naquele momento estava voltada para as chamadas humanidades clássicas e, em particular, para o estudo do Latim, tendo em vista a existência de quatro cadeiras de Latim.
 
Para contornar o problema da falta de professores, a lei paraense no 30, de 28 de setembro de 1839, autorizou o governo a contratar professores interinos para as cadeiras de Retórica, Francês e de Primeiras Letras, dispensando a realização dos exames previstos. Em termos teóricos, isso significa dizer que a estratégia oficial adotada foi flexibilizar o aparelho docimológico instituído pelo Estado. (CHERVEL, 1998) Como era uma contratação provisória, essa lei previa que, uma vez aparecendo candidato disposto a prestar o devido concurso público, se ele fosse aprovado, o professor interino deveria deixar o cargo. (REGO, 2002).
 
Demanda por Aulas de Geometria (1840)
 
Ao iniciar nossa análise de traços históricos do ensino secundário da matemática no contexto das províncias do Pará e do Amazonas, e nos meados do século XIX, encontramos registros textuais de demanda política pela criação de Aulas de Geometria. O termo Aula era empregado, naquela época, no sentido de uma instituição, gerida por um único professor cujo salário seria pago com os recursos públicos e que geralmente ministrava seus ensinamentos em sua própria residência. Também encontramos nos documentos paraenses a expressão Escola de Geometria. Mas, o período de instalação dessas instituições isoladas precedeu a fase de criação dos primeiros liceus provinciais. Os relatórios analisados por nós enfatizavam a necessidade da criação dessas Aulas de Geometria. Assim, despertamos nosso interesse para tentar compreender, no contexto da época, a origem desse discurso de valorização pelo estudo da Geometria. Por que não defender, naquele momento o estudo da Aritmética, da Álgebra ou da Trigonometria? Quais eram os motivos que justificavam o estudo dessa parte da Matemática?
 
Na linha proposta por André Chervel, as disciplinas escolares não têm o mesmo grau de importância, em função das finalidades que outras instituições tentam impor à escola. Atualmente, segundo nosso entendimento, o aparelho docimológico idealizado pelo poder público brasileiro voltou a priorizar uma avaliação diferenciada dos estudos de Língua Portuguesa e Matemática. Mas, os professores não devem concordar com essa visão porque trata de uma ingerência externa, tentando determinar os rumos das práticas escolares que são produzidas no canteiro de trabalho cotidiano dos professores. O discurso político estava valorizando, no contexto paraense, o estudo de uma disciplina em função do momento histórico e das finalidades previstas no quadro da cultura escolar instalada. André Chervel trata dessa questão, ao mostrar a valorização assumida pelo estudo de certas disciplinas em detrimento de outras. Da mesma forma como existe uma escala de excelência no conjunto dos exercícios propostos, em dado momento no quadro de uma disciplina escolar, as próprias disciplinas também recebem valorização diferenciada por parte das instituições associadas à escola.
 
Encontramos também essa mesma demanda pela criação de Aulas de Geometria em relatórios, da mesma época, dos presidentes das províncias do Maranhão e do Ceará. As anotações de Primitivo Moacyr (1939) também transcrevem exemplos dessa valorização discursiva em favor a abertura de aulas de Geometria. (MOACYR, 1934) O motivo dessa demanda era que os exames de preparatórios para o ingresso nos cursos jurídicos, de Recife e São Paulo, passaram a incluir esse conteúdo matemático. Em outros termos, havia um aparelho docimológico, usando a expressão de Chervel (1998). Trata-se de idealizar um sistema articulado de exames por meio dos quais as instituições tentam exercer o controle sobre a escola. No caso analisado, a Geometria passou incluída nos programas de exame para o ingresso nos cursos jurídicos.
 
Os organizadores dos cursos jurídicos, em sintonia com o poder legislativo,  passaram a defender a importância do raciocínio lógico contido nas demonstrações geométricas como uma prática formadora da razão ou como uma lógica prática, de acordo com expressão transcrita por Wagner Valente. Entretanto, a inclusão dessa matéria no ensino secundário não significou uma opção em ampliar os aspectos científicos da instrução pública, pois a valorização da visão humanista predominou, de forma quase absoluta, até o final do Segundo Império. Nesse momento o discurso em favor da criação de aulas de geometria justificava-se diante da necessidade da instrução pública proporcionar um ensino secundário compatível com as orientações do ensino superior de cunho humanista. (VALENTE 2007)
 
No primeiro plano de estudo do Colégio Pedro II o estudo da matemática estava proposto de acordo com a seqüência de Bézout, a qual consistia em começar pela Aritmética, passar para a Geometria e, em seguida, concluir com a Álgebra. Em outros termos, a valorização do estudo da Geometria, tal como constatamos nas províncias do norte do Brasil, por volta da década de 1840, estava inserida numa cultura escolar, onde havia ainda uma sequência a ser seguida no ensino secundário, tal como a vulgata estabelece uma ordem a ser seguida pelo professor. Esse modelo predominou certo tempo em instituições militares, onde a intenção era aplicar os conteúdos na solução de problemas práticos. Mas, apenas três anos após iniciar as aulas, foi feita a primeira reformulação nos programas e a seqüência adotada foi aquela idealizada por Lacroix, antecipando o estudo da Álgebra em relação à Geometria.
 
Reforma paraense da instrução pública (1841)
 
O discurso político em favor da criação de aulas avulsas de Geometria tomou maior materialidade, no contexto paraense, com a Lei provincial no 97, de 28 de junho de 1841, sancionada pelo presidente Bernardo de Souza Franco, instituindo uma ampla reforma na instrução primária e secundária nos domínios da província e criando o Liceu Paraense. Como aconteceu em outras províncias, o objetivo dessa reforma era criar um estabelecimento para reunir aulas avulsas e servir de referência para toda a instrução pública provincial. Essa foi uma estratégia adotada não somente no Pará e, de certa forma, tentava reproduzir a estratégia da criação Colégio Pedro II, concebido para servir de modelo para todas as outras instituições de ensino secundário.
 
A reforma paraense de 1841 determinou que o ensino secundário seria ministrado em dois Liceus. Mas, no contexto da redação do documento, entendemos que o termo Liceu foi usado no sentido de curso, pois, esclarece que um deles seria destinado aos estudos das humanidades clássicas e o outro para o comércio. Além do mais, o artigo 11º da referida lei confirma esse entendimento – o termo Liceu estava sendo usado no sentido de curso – ao esclarecer que haveria somente um estabelecimento com o nome de Lyceu Paraense. [grifo nosso]. Entretanto, a criação de um estabelecimento de ensino traz consigo outro elemento fundamental que os programas de ensino ou planos de estudo. Esta última expressão sendo empregada com uma conotação bem mais ampla, instituindo o conjunto das matérias que o estabelecimento deve ministrar, enquanto que a primeira expressão tem um sentido mais preciso e lista os conteúdos a ser ministrado no contexto de uma disciplina. (CHERVEL, 1998)
 
Dessa maneira, fomos levados a identificar os planos de estudo previstos para os dois cursos iniciais do Liceu Paraense. O conjunto das matérias previstas para os dois cursos eram as seguintes: Língua Latina; Língua Francesa; Aritmética, Álgebra e Geometria; Filosofia Racional e Moral; História Universal; Geografia Antiga e Moderna; História do Brasil; Retórica, Crítica, Gramática e Poética; Escrituração Mercantil e Contabilidade Língua Inglesa. Portanto, com exceção das matérias da área contábil e das matemáticas, todas as outras estavam voltadas para a formação clássico-humanista. O curso de ensino secundário de cunho humanista foi estruturado para ter cinco anos de duração, enquanto o correspondente curso do Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, era composto por sete anos de estudo. Em termos gerais, predomina nesse momento uma cultura escolar voltada, quase exclusivamente, para a formação clássica. Desse modo, somos levados a refletir qual era a finalidade das matérias matemáticas no contexto desse quadro cultural no qual o Liceu Paraense foi instalado.
 
As matérias de Matemática eram a mesma da instituição de referência localizada no Rio de Janeiro, bem como a ordem prevista: Aritmética; Álgebra e Geometria. Mas, passados sete anos da instalação do Liceu Paraense, apenas o Curso de Humanidades estava funcionando com as matérias: Latim, Francês, Inglês, Filosofia racional e moral, Retórica, Geografia, Escrituração mercantil. Nesse momento, não havia pessoas em condições de ministrar as aulas de Matemática e o governo lança a estratégia de oferecer bolsas de estudo para jovens paraenses que quisessem realizar estudos de Matemática na Europa. (MOACYR, 1939, p. 80) Dessa maneira, mesmo que visão predominante fosse a formação humanista surge a intenção de aplicar recursos públicos da formação de jovens que pudessem se qualificar na Europa e retornar para ensinar Matemática.
 
Ao pesquisar traços históricos do ensino secundário da Matemática no contexto de criação do Liceu Paraense, é preciso indagar a propósito das condições existentes naquele momento para o ensino primário. A reforma de 1841 previu instrução primária gratuita para todos os cidadãos. Por outro lado, foi criada a estratégia de dividir as escolas em duas classes. As escolas de Primeira Classe, aquelas que teriam um plano de estudo bem mais completo, e as de Segunda Classe teriam um plano de estudo bem mais reduzido. Nesse aspecto, é preciso perceber que o termo classe estava sendo utilizado para qualificar a instrução ministrada. Quando a esse aspecto, Chervel chama-nos a atenção para o fato do início da expansão das escolas populares na França ter exatamente essa mesma diferenciação das escolas primárias em função das suas finalidades, ou seja, nesse momento, não podemos pensar em uma cultura escolar geral para todas as classes sociais. (CHERVEL, 1998)
 
Para compreender essa diferença no contexto paraense de 1841, fomos levados a indagar a propósito da diferença do estudo da matemática previsto para esses dois tipos de escola. O plano de estudo das escolas de primeira classe previa: leitura, escrita ou caligrafia, princípios de aritmética com o perfeito conhecimento das quatro operações aritméticas, mais o estudo dos números inteiros, fracionados e complexos e proporções; gramática da língua nacional e elementos de ortografia. Novamente, no que se refere ao estudo da matemática, esse plano de estudo era uma proposta arrojada para época, pois estava em sintonia com o sumário da obra história de Lacroix. Para as escolas primárias de segunda classe estavam previstas apenas as seguintes matérias: princípios da moral cristã e da religião do Estado, noções de civilidade, elementos gerais de geografia, leitura da constituição e história do Brasil. Em outros termos, para as classes populares a instrução matemática não existe no plano oficial de estudos.
 
Aritmética de André Curcino Benjamim (1851)
 
A lei provincial paraense no 193, de outubro de 1851, determinou que fosse adotada nas escolas públicas da província a Aritmética Prática, um livro didático escrito por André Curcino Benjamin. Mas, a própria legislação previu que o autor deveria atender a uma exigência para contribuir com os professores que fossem utilizar o livro. Ele deveria, no período de um ano, fornecer explicações sobre as regras contidas no seu livro a todos os professores primários que o procurassem. O poder provincial determina a obrigação do autor fornecer explicações sobre as regras matemáticas contidas em seu texto didático. Nesse ponto, a existência de uma rede de instituições aparece com clareza, envolvendo escola, professor, autor de livro didático e o poder público. Trata-se de um quadro de relações de poder, interligando poder público, autor, escolas e os professores. Nesse sentido, o poder público estava dotado de uma estratégia de controle não somente sobre o autor, mas também em relação aos professores que deveriam se dispor em tirar suas dúvidas diretamente com quem escreveu o livro. Esse controle se constitui em uma parte localizada do aparelho docimológico, conceito proposto por Chervel para caracterizar parte da cultura escolar, a legislação previa que o livro somente poderia ser admitido definitivamente nas escolas paraenses depois que o autor procedesse às alterações sugeridas pelos avaliadores. Dessa maneira, após proceder às correções, o livro seria novamente avaliado e depois da aprovação por um conselho e pelos deputados. Esse fato ilustra um mecanismo de controle das relações entre as instituições, mostrando as linhas de articulação entre as praxeologias específicas das organizações matemáticas e o aval da obra fornecido pelo poder público.
 
Escolas Primárias de 1º e 2º graus (1851)
 
Uma década após a instalação do Liceu Paraense, o estudo da Matemática ainda continua com problemas devido a falta quase constante de professores e de alunos em condições de receber as lições. A solução criada para ampliar as bases desse estudo no contexto paraense segue a mesma orientação do que aconteceu em outras províncias: a manutenção e reforço da política de diferenciar o ensino primário, visando propiciar um nível adequado em que os alunos pudessem ser preparados para continuarem seus estudos no nível secundário. Nesse sentido, a lei paraense no 203, de outubro de 1851, instituiu uma reforma de ensino, mantendo a classificação das escolas primárias em dois graus. As escolas do primeiro grau tinham o objetivo de ensinar o aluno a ler, escrever e estudar arithmetica até proporções. Para as escolas de segundo grau estava prevista a continuidade do estudo da matemática elementar através das aplicações da aritmética ao comércio, bem como o estudo de geometria prática. A existência de um comércio arrojado no Pará, nessa época, influencia a definição de uma cultura escolar que contemplasse a aplicação da matemática em problemas do comércio. Tratava-se da articulação do currículo humanista e tentar atender exigências locais em contemplar o estudo de questões do comercio. Nesse momento, verificamos que o plano de estudo de matemática das escolas de 2º grau era uma continuidade dos estudos feitos no 1º grau, direcionando para uma preparação para o trabalho e com um enfoque essencialmente prático. O critério previsto para classificar as escolas deveria ser o número de alunos.
 
Aritmética Álgebra e Geometria (1859)
 
O ensino secundário estava, em 1859, concentrado no Liceu Paraense e as matérias ministradas eram as seguintes: latim; francês; inglês; aritmética e álgebra, geometria retilínea, contabilidade e escrituração mercantil, geografia e história universal e do Brasil, retórica e poética, filosofia racional e moral, musica. (Moacyr, 1939) Portanto, na parte referente ao ensino da matemática Estava sendo aplicado o modelo proposto por Lacroix, no bojo das inovações decorrentes das reformas patrocinadas pela Revolução Francesa. Esse modelo era inovador consistia em defender uma antecipação do estudo da Álgebra, sob o argumento de que não faria sentido separar esta disciplina do estudo da Aritmética. Nesse momento prevalecia a concepção de que a Álgebra era uma Aritmética Universal, no sentido de ser uma generalização das idéias estudadas na Aritmética Elementar. (VALENTE, 2007). A adoção desse currículo inovador para o estudo da matemática secundário mostrava, por um lado, certa atualidade em relação ao discurso educacional de alguns dos responsáveis pela instrução pública. Entretanto, não havia estabilidade nessa linha dos discursos oficiais, pois, ao mesmo tempo ecoavam discursos contrários à valorização do ensino da matemática. Nessa direção estava o discurso do presidente Vasconcelos que se posiciona contra o estudo da matemática, ao dizer: O que ganhará o aluno ao estudar proporções aritméticas, da aritmética aplicada ao comércio, dos decimais, das frações ordinárias e dos complexos recomendados nas instruções de 16 de março de 1853. (MOACYR, 1939, p. 97). A expressão desse tipo de opinião oscila entre a formação humanista e a científica, em função das instituições cujas relações predominam em determinado contexto.
 
Primário Inferior e Superior (1870)
 
A Lei provincial paraense no 664, de 12 de outubro de 1870, estabeleceu um novo regulamento para a instrução pública. O ensino elementar ficou dividido em primário inferior e primário superior. O regulamento previa que os estudos do primário inferior eram aqueles que todo cidadão deveria saber, ao passo que o objetivo do primário superior era preparar o aluno para o ingresso no ensino secundário, o qual, por sua vez, visava preparar o aluno para o ingresso nos cursos superiores. Dessa maneira, tivemos interesse em analisar a função exercida pela matemática nesse processo de seleção social. Assim, constatamos que no primário inferior estava previsto somente o estudo das quatro operações fundamentais da aritmética e noções práticas do sistema métrico de pesos e medidas. Por outro lado, o plano de estudo do primário superior previa o estudo completo dos elementos de aritmética até proporções e a complementação pelo estudo das noções elementares de geometria. Ao comparar os conteúdos matemáticos propostos para diferenciar o primário inferior do superior, o estudo da geometria aparece com um caráter de preparatório, uma vez que os alunos do primário superior tinham por meta ingressar no ensino secundário. Por outro lado, o pragmatismo predominava nesse currículo do primário inferior, pois a parte da aritmética estava reduzida às quatro operações fundamentais. O estudo do sistema métrico decimal era uma decorrência da época, pois o mesmo havia sido decretado em 1862 e ainda persistiam, por volta de 1870, polêmicas em torno de sua implementação definitiva. (MOACYR, 1939, p. 118)
 
Presidente e Professor de Matemática (1852)
 
O primeiro presidente da Província do Amazonas foi professor e deputado paraense João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha. Uma década antes de assumir a administração da nova província ele tinha exercido o cargo de professor de Aritmética do Liceu Paraense. Apesar de sua boa intenção educacional, como mostra o primeiro regulamento da instrução pública por ele elaborado, suas idéias não foram implementadas, pois ele permaneceu no cargo poucos meses. A instalação da Província do Amazonas ocorreu no dia 1º de janeiro de 1852, quando Tenreiro Aranha foi empossado no cargo de presidente, após exercer o mandato de deputado provincial paraense, por várias legislaturas, entre 1840 e 1849.
 
A atuação política de Tenreiro Aranha na Corte, quando representou o Pará na Assembléia Geral, foi decisiva para finalizar os acordos de instalação da nova Província. Ao analisar seus dados biográficos, cumpre-nos destacar que, no início de sua carreira política, ele foi professor da cadeira de Aritmética e Escritura Mercantil no Liceu Paraense, nomeado em 11 de fevereiro de 1841. Por esse motivo, somos levados a indagar a propósito das orientações do presidente Tenreiro Aranha para conduzir o ensino da matemática na recém instalada província amazonense.
 
Ao levantar elementos de resposta a essa questão, concluímos que o primeiro presidente tinha, de fato, uma intencionalidade educacional, pois, transcorridos 68 dias da sua posse, mandou publicar o primeiro regulamento da instrução pública. (BITTENCOURT, 1981) Entretanto, em vista das dificuldades as intenções do presidente permaneceram no plano das divagações. Na prática, o texto do primeiro regulamento foi letra morta. Por esse motivo justifica-se a nossa intenção de falar apenas da transposição de discurso entre as instituições ligadas ao ensino escolar. O presidente idealizou, com base em sua experiência como professor, um ensino de matemática secundaria arrojado para a época, mas suas idéias não foram postas em prática, assim sendo não podemos falar que houve transposição de práticas entre o Lyceu Paraense e o Poder Público Educacional Amazonense.
 
Cadeira de Francês, Aritmética, Álgebra e Geometria (1850)
 
A situação do ensino secundário amazonense era precária no início da década de 1850. Conforme observa Pinheiro (2004, p. 53), sequer havia sido criada uma cadeira para o ensino da língua portuguesa e a única cadeira destinada ao ensino secundário em 1852 era a língua francesa. E a existência dessa cadeira ilustra o que estamos chamando de transposição do discurso, no sentido negativo veiculado na educação, através das reformas instituídas, e as efetivas medidas para implementá-las. Mas, não deu certa a tentativa de idealizar uma instrução secundária nos moldes europeus. A referida cadeira não foi provida com facilidade. Essa informação consta no relatório do presidente paraense, Augusto Aguiar, de 9 de dezembro de 1851, ao prestar contas da situação da região. Esse episódio, interligando o ideário educacional dos legisladores da época e a intenção de priorizar o ensino da língua francesa e das matemáticas, é um dos primeiros registros referentes ao ensino secundário nos domínios do Amazonas. As observações descritas por Miranda Leão confirmam esse entendimento por meio do seguinte destaque: “durante o período longo que esta cidade foi sede da Comarca do Alto Amazonas, pertencente à Província do Pará, nada há com relação ao ensino secundário oficial”. (MIRANDA LEÃO, 1925, p. 28)
 
Primeira cadeira do ensino secundário no Amazonas (1853)
 
A instalação da primeira cadeira do ensino secundário amazonense, prevendo o ensino de Francês, Aritmética, Álgebra e Geometria por um mesmo professor, ocorreu somente no dia 7 de janeiro de 1853, isto é, cerca de dois anos após sua aprovação. Mesmo assim, para contornar o problema da falta de professores, foi adotada uma solução provisória conforme relatório, do dia 1º de outubro de 1853, elaborado pelo presidente Herculano Ferreira Pena:
 
A Cadeira de Francês, Arithmetica, Álgebra e Geometria, criada nesta cidade, pela lei provincial do Pará de 29 de novembro de 1850, era regida quando aqui cheguei, por um professor interino, o qual ensinava só aquela língua, não percebendo, todavia o ordenado, por não estar incluído no orçamento. Tendo ele pedido demissão, nomeei para substituí-lo, também interinamente, um Bacharel em Letras e em Ciências pela Universidade de França, Eugène Japiot, cuja vinda da Corte para a Província foi auxiliada, a pedido meu, pelo Sr Ministro do Império. (FERREIRA PENA, 1853)
 
Conforme explicações do presidente Ferreira Pena, o professor de francês não dominava a língua portuguesa e esse seria o motivo pelo qual o mesmo não estava ensinando, como deveria, os conteúdos matemáticos. Para contornar essa situação, a solução encontrada foi nomear um outro professor para, em comissão com o responsável pela cadeira, ensinasse a parte referente aos domínios da Matemática. Apesar desta ter sido a explicação fornecida pelo presidente, resta-nos uma dúvida se o verdadeiro motivo para o professor francês ter sido dispensado das aulas de Matemática, seria, de fato, o domínio da língua, pois de acordo com a lei no 21, de 28 de novembro de 1853, o referido professor francês passou a ser obrigado a ensinar história e geografia. Esta lei diz o seguinte: Impõe-se ao professor público de francês a obrigação de ensinar também geografia e história e exonera-o do ensino de aritmética, álgebra e geometria e marca-lhe o ordenado de 600.000 réis. (Conforme os Anais da Assembléia Legislativa Amazonense, vol I, 1852 e 1853, p. X).
 
Ao comparar os dados do relatório presidencial com a determinação do poder legislativo, resta-nos a dúvida se o verdadeiro problema para exonerar o professor da obrigação do ensino da matemática seria a falta de domínio da língua portuguesa ou sua não familiaridade com matemática. Finalmente, pela lei no 29 de 1853, foi criada a cadeira de Filosofia racional e moral. Por esta legislação, todas as aulas do secundário deveriam funcionar nas dependências do Seminário São José. Era este o embrião de uma instituição que seria a criação do Liceu Amazonense. (MIRANDA LEÃO, 1925)
 
Primeiro professor de matemática no Amazonas (1853)
 
Ao liberar o professor da cadeira de francês do ensino da matemática, conforme descrevemos no parágrafo anterior, foi necessário criar uma cadeira específica para o ensino de Aritmética, Álgebra e Geometria. Assim, o primeiro professor a ocupar a primeira cadeira de matemática no Amazonas foi o Bacharel em Ciências Físicas e Matemática, formado pela Escola Militar, Capitão Hilário Maximiano Antunes Gurjão, um paraense cujo nome está inscrito entre os heróis da Guerra do Paraguai. Esse é um traço identificado por nós, mostrando que o ensino de matemática secundária no Amazonas iniciou pelas técnicas e métodos desse militar. As aulas ministradas por esse professor de Aritmética, Álgebra e Geometria iniciaram no dia 10 de maio de 1853, com 17 alunos inscritos, embora no próximo ano restavam apenas três. A cadeira assumida pelo professor Gurjão foi instituída pela Resolução no 22, de 28 de novembro de 1853.
 
Regulamento da Instrução Pública (1859)
 
De acordo com informações de Miranda Leão (1925) o primeiro regulamento da instrução pública foi posto em prática no Amazonas foi o de número 9, aprovado em 1859, o qual previa a existência das cadeiras de: latim, francês, retórica, geografia e história, música e aritmética, álgebra e geometria. Dessa maneira, no final da primeira década de existência da Província do Amazonas, o ensino secundário dava seus primeiros passos, no sentido de institucionalizar um plano de ensino secundário. Talvez a única exceção possa estar ligada à cadeira de matemática onde, certamente, a visão implementada também não escapava à regra geral. Embora as fontes que tivemos acesso não nos permitem fazer afirmações categóricas, o quadro que acabamos de descrever sinaliza para a existência de mais um elemento interpretado por nós como sendo uma transposição de discursos de valorização do ensino da matemática, porém, faltando ainda à devida implementação no campo das práticas escolares cultivadas na sala de aula. O saber matemático tinha ainda a finalidade exclusiva de formar o intelecto ou de servir de ginástica espiritual.
 
Criação do Liceu Amazonense (1869)
 
Pela Lei provincial no 29, de 4 de março de 1869, Francisco de Paula Belo passou a ocupar a cadeira de Gramática e Retórica do Liceu, conforme termo adotado pelo professor amazonense Agnello Bittencourt (1981), quando registra traços históricos da educação local. Porém, nesse momento a instituição existente, denominada de Liceu, não havia sido criada oficialmente, funcionava no Seminário São José, onde estavam reunidas as cadeiras do secundário. Logo em seguida, entra em vigor o Regulamento no 18, de 14 de março de 1869, por ato do presidente João Wilkens de Mattos, criando o Lyceu Provincial. Esse regulamento é aprovado pela Lei no 184, de 19 de maio de 1869. A administração desse estabelecimento estava a cargo do diretor da instrução pública e o seu primeiro plano de ensino compreendia: Francês, Aritmética, álgebra e geometria, Filosofia racional e moral, Gramática universal, Retórica, Geografia antiga e moderna e Latim. Portanto, a proposta do primeiro plano de estudo da matemática no Liceu Amazonense estava inserida, como no caso paraense, na linha clássica.
 
O presidente João Wilkens de Mattos fez um relatório, em 1869, no qual considerava satisfatório o número de alunos matriculados no primário. A intenção era justificar a criação do Liceu e tentar mostrar que a situação local não deixava a desejar em relação à França. Mas, tais afirmações nada mais eram do que estratégias baseadas em artifícios numéricos. (PINHEIRO, 2004) Esse discurso merece uma análise crítica, pois não reconhecia o estado de atraso da instrução, sobretudo, quanto ao problema da formação de professores primários, pois o mesmo presidente Wilkens de Mattos nada faz para criar a Escola Normal, o que aconteceria somente uma década após.
 
José de Miranda da Silva Reis assumiu a presidência da Província do Amazonas em 8 de junho de 1870 e poucos meses depois, no relatório de 25 de março de 1871, solicitou autorização da Assembléia Provincial para fazer uma outra reforma do ensino. Nessa ocasião, Gustavo Adolfo Ramos Ferreira, no cargo de diretor da instrução publica, apresentou projeto de reforma prevendo a criação de uma Escola Normal. Mas, essa a proposta não foi aceita e mais uma vez foi postergada a criação da primeira instituição amazonense para formação de professores primários.
 
Elementos de Síntese
 
A evolução da educação matemática no contexto amazonense no período das duas primeiras décadas que sucederam à instalação da província não diferente essencialmente das dificuldades enfrentadas pelas demais províncias quer seja em termos da falta de professores e da existência de efetivas medidas políticas para a expansão da instrução para as camadas populares. Conforme foi possível constatar, a dificuldade maior caracteriza-se pela falta de professores e de recursos específicos para implementar uma abrangência maior da educação local não somente no que diz respeito ao ensino secundário como também no ensino primário. Foi possível constatar que o início do ensino da matemática secundária no contexto amazonense do período analisado ocorreu pela atuação de práticas características da formação militar tendo em vista a atuação do Brigadeiro Hilário Gurjão como o primeiro professor de matemático oficial do ensino secundário no referido contexto.
 
A evolução do ensino da matemática na Província do Pará, nos meados do século XIX, não diferente muito das dificuldades verificadas nas demais províncias. Essas dificuldades dizem respeito aos baixos salários pagos aos professores. Por outro lado, as políticas locais implementaram nas províncias uma enorme distância entre a educação primária prevista para as classes populares e aquela destinada a preparação para o ingresso no ensino secundário e uma possível continuidade no ensino superior. Ao que tudo indica a dificuldade maior caracterizava-se pela falta de professores e de recursos para expandir a educação local. A existência de publicações locais de textos didáticos de Aritmética, tal como o de André Curcino Benjamin mostra a criação de estratégias locais para tentar minimizar o problema da falta de materiais adequados para a expansão da educação escolar.
 
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