Aritmética no século XIX
Luiz Carlos Pais
Luiz Carlos Pais
Este artigo descreve aspectos históricos do ensino da Aritmética elementar no Brasil, tomando como fonte de dados livros didáticos, planos de estudo, programas de ensino e regimentos instituídos para escolas primárias, na última década do século XIX. É analisado o regulamento da instrução primária e secundária do Rio de Janeiro, de 1890, instituído pela Reforma Benjamim Constant, que foram confrontados com orientações do regimento da instrução primária do Amazonas de 1892. O objetivo é compreender como a instrução pública amazonense apropriou-se do movimento de modernização do ensino escolar, quando o Estado vivenciava a fase áurea do ciclo da borracha. O referencial foi conduzido com base nos conceitos de cultura e disciplina escolares, na linha proposta por André Chervel. São também usados os conceitos de estratégias e táticas propostos por Michel de Certeau e de apropriação, no sentido definido por Roger Chartier. Os desafios da educação matemática, no período de transição do Império para a República, estão associados à tentativa de modernização das práticas de ensino, através do método intuitivo, articulando conteúdos tradicionais com a valorização de aspectos experimentais, através do uso de materiais didáticos e objetos mais próximos da vivência dos alunos. A prioridade da instrução primária foi, no século XIX, preparar os alunos para ingressar no ensino secundário, caminho inicial para obter um diploma de curso superior. Porém, com a proclamação da República surgem os primeiros discursos em favor de uma instrução primária para formar os cidadãos de modo geral. O estudo indicou ainda que os primeiros sinais da expansão da educação escolar coincidem com a difusão do método intuitivo, dando origem a um discurso inovador em relação às práticas tradicionais. No campo da educação matemática as novas propostas foram acompanhadas da indicação do uso de objetos ou aparelhos de ensino concebidos para o ensino da disciplina. A compreensão desse momento da educação matemática revela a importância da temática da cultura material da escola, abrangendo as fases da concepção, difusão e apropriação desses recursos didáticos do passado.
Considerações iniciais
Um ano após a proclamação da República, após assentar as bases mais urgentes das instituições militares, econômicas e fazendárias, foi aprovado um novo regulamento para a instrução primária e secundária do Distrito Federal, pelo decreto no 981, de 8 de novembro de 1890. O objetivo era regular o funcionamento das escolas do município do Rio de Janeiro, em consonância com as idéias defendidas pelos líderes do movimento republicano. Mesmo que essa reforma não tivesse o poder de determinar os rumos da educação nacional, continuou existindo, de certa forma, a mesma estratégia usada no período imperial que consistia em legislar para o centro do poder político com a intenção de influenciar as demais províncias do país.
Nesse sentido, se justifica a opção de recorrer às idéias de Michel de Certeau, quando este autor diz que para cada estratégia criada por uma instituição, visando preservar o seu domínio de atuação, surge um verdadeiro rastilho incontrolável de táticas que, geralmente, escapam ao controle do poder central. (Certeau, 2007) É nesse campo de conflitos resultantes das relações institucionais que pretendemos contar uma história do ensino primário da aritmética na última década do século XIX, articulando programas de ensino, métodos de ensino, livros didáticos e apropriações resultantes das relações de influência do Rio de Janeiro sobre outros Estados da federação.
O panorama mais amplo dessa história da educação matemática que pretendemos contar neste texto é formado pelas concepções forjadas pela visão positivista, sob a liderança do general Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836 - 1891). Engenheiro militar, professor de matemática de escolas militares e da Escola Normal da Corte; fervoroso defensor do pensamento positivista e participante do movimento republicano. Seu amplo envolvimento no movimento militar que levou à queda da monarquia lhe garantiu, de início, o posto de ministro da Guerra e, posteriormente, o de ministro da Instrução Pública, Correio e Telégrafos. No curto tempo que ocupou esse último ministério, em decorrência de seu falecimento com apenas 58 anos, propôs uma reforma na instrução pública primária e secundária; a qual exerceu considerável influência inicial no país, em decorrência da reprodução das idéias que foram difundidas pelos militares nomeados nos diferentes Estados para impor a nova ordem política. As idéias da reforma estavam banhadas por uma visão positivista e cientificista e foram baixadas como atos determinantes do poder militar.
As idéias básicas da reforma chegaram aos diferentes estados da federação e foram apropriadas de diferentes maneiras, transformadas em textos oficiais da instrução local, às vezes, com alterações significativas em função das realidades locais. Dessa maneira, no quadro inicial da República, esboça-se uma questão de relevância histórica que consiste em compreender como ocorreu esse movimento de apropriação dos discursos pedagógicos e das práticas características das disciplinas escolares. Não se trata somente de uma relação bipolar entre o centro do poder e os demais estados, pois a questão envolve pólos mais distantes de influência que eram os países que lideravam o movimento de modernização da educação escolar.
O desenvolvimento tecnológico iniciado na Europa e nos Estados Unidos nas últimas décadas do século XIX passou a exigir uma expansão significativa do oferecimento de instrução primária e secundária para as diferentes classes populares. No Brasil, o balanço educacional do século XIX foi extremamente reduzido em termos de constituir as bases para um sistema educacional mais consistente e amplo em termos sociais. (Saviani et al, 2006) Os lideres do movimento republicano tinha então o desafio político de superar esse prejuízo histórico. Em paralelo, no cenário mundial, o mesmo período registrou a necessidade de reformas educacionais que proporcionassem a preparação de jovens para o ingresso nos cursos de engenharia. Para isso, era necessária a inclusão de novos conteúdos científicos no ensino secundário e, para tanto, os planos de estudo primários deveriam também ser adequados. O matemático Félix Kline havia iniciado a liderança de um amplo movimento de modernização do ensino da matemática que se consolidou na primeira década do século XX. (Schubring, 2003). Nesse momento, fica evidente a necessidade de consolidar um sistema educacional nacional para articular os diferentes níveis de ensino, do primário ao superior, passando pelo ensino secundário, pela formação de professores primários e pelo ensino técnico.
Como aconteceu em outros momentos da história da educação, a matemática foi novamente reconhecida como uma disciplina capaz de exercer um papel fundamental na superação dos desafios educacionais descortinados pelo século XX. Começa-se a descortinar a possibilidade de superar a velha posição humanista que havia dominado, de forma quase absoluta, até então, o ensino secundário. Cresce a consciência coletiva quanto à necessidade de ampliar o espaço das disciplinas científicas.
No quadro delineado acima, o estudo relatado neste texto foi realizado a partir da seguinte questão motivadora: quais foram as características do ensino primário da aritmética na primeira década da Republica, quando comparamos orientações prescritas para o então centro político do país e o cenário mais amplo de outras unidades da federação? Tendo em vista a amplitude da questão, optamos por destacar aspectos mais associados aos métodos de ensino, programas e livros didáticos; inserindo estes últimos entre os objetos típicos da cultura material da educação matemática escolar.
Posições teóricas e metodológicas
A história da educação matemática pode ser escrita com base na abordagem proposta por Chervel (1990 e 1988) e compartilhada por outros autores que atuam no campo da história das disciplinas escolares. Um dos pressupostos defendidos pelos pesquisadores vinculados a nesse programa de pesquisa, de acordo com a nossa leitura e apropriação, consiste em admitir a existência de uma complexa rede de relações entre os conteúdos de ensino, as disciplinas escolares e as culturas produzidas na interface da escola com outras instituições que participam na constituição do sistema educacional. Entendemos que uma das tendências recentes desse programa de pesquisa histórica da educação consiste em conceber as culturas escolares como o resultado do espaço de atuação direta dos professores, mas sem a possibilidade de pensar em termos de determinação ou de imposição. Mesmo em vista das tradições curriculares, a cultura escolar está em permanente processo de efervescência e são cunhados a partir das relações mantidas com as instituições que circulam no entorno da vida escolar (Julia, 2001).
Ao aplicar esse pressuposto nos redutos mais específicos da educação matemática, ficam bem mais evidentes as relações de influência, construídas pelos elementos constituintes da disciplina, efetivadas pelas práticas e saberes escolares, interligando orientações curriculares, métodos e recursos de ensino, livros didáticos, exercícios específicos e os aparatos de avaliação e de tentativa de controle institucional. A todos esses elementos se contrapõe a efetiva produção docente.
Trata-se de influências relacionadas às práticas produzidas por um grupo de instituições com as quais a escola disputa relações de produção. Nesse sentido, torna-se necessário destacar a existência de uma complexa rede de trocas de produção no campo educacional das práticas escolares e mais particularmente no ensino da Matemática. Para cada proposição discursiva de práticas anunciadas com a intenção de direcionar as ações docentes, muitas vezes com o tom autoritário da determinação, é possível esperar diferentes formas de apropriação e novas produções que acontecem na sala de aula. Para abordar esse conflito entre as prescrições oficiais e as produções docentes, neste trabalho, optamos por destacar o problema das relações que emergem no contexto escolar e se revelam na produção de práticas e saberes relacionados ao estudo da aritmética. Enquanto os formuladores de planos de ensino prescrevem saberes típicos da educação escolar e autores de livros didáticos se consorciam para apresentar exercícios e técnicas compatíveis com os conteúdos propostos, os professores produzem suas efetivas ações para elaborar o saber escolar.
Ao postular essa posição crítica na escrita da história da educação matemática é conveniente conceber a dimensão pedagógica em sintonia com a dimensão conceitual da disciplina de referência. Qualquer tentativa de separar esses dois aspectos interligados reduz a virtualidade contida no ato educativo. Ao considerar o nível mais refinado das práticas escolares pertinentes à educação matemática, encontramos a presença dos espíritos meticulosos usados pelo aparelho docimológico pelo qual se tenta exercer o controle das atividades escolares. (Chervel, 1998) Em particular, o entrelaçamento entre os aspectos epistemológicos da educação matemática e as finalidades do projeto associado fornece a base para inculcar uma parte específica da cultura escolar (Julia, 2001).
As orientações propostas pelas instituições educacionais mais influentes recebem, quase sempre, o respaldo de um consórcio de outras instituições associadas ao sistema. Mesmo que não haja concordância plena entre todas as propostas, sobretudo, quanto aos conteúdos de ensino, em certo momento, predomina a convergência de um discurso mais hegemônico, caracterizado por Chervel (1990) como sendo o fenômeno da vulgata. Um conjunto constituído por conteúdos, exercícios, métodos e outros recursos que constituem a parte mais nuclear da disciplina escolar. As práticas e os saberes adotados para resolver certos tipos de exercícios estão ancorados e defendidos com base em posições compartilhadas pelos professores como sujeitos de uma instituição efetivamente produtora e não apenas dominada por outras instituições.
Dessa maneira, eventos históricos podem ser esboçados a partir de fragmentos contidos em discursos e práticas prescritas por instituições participantes do fluxo de relações estabelecidas no entorno da escola. Ao fazer essa leitura, é preciso visualizar os lugares dos quais os discursos são enunciados e a história é escrita. Estratégias e táticas são ações singulares, cada qual está enraizada numa particularidade da qual resulta a escrita da história, como ensina Michel De Certeau (2002 e 2007). Durante muito tempo predominou, de forma quase absoluta, a falsa idéia de que a educação matemática estaria isenta de vínculos políticos e ideológicos. Essa linha de entendimento confunde a objetividade da disciplina com a subjetividade inerente aos sujeitos da educação. Mas, essa visão é extremamente redutora, quer seja do ponto de vista educacional, político ou social, porque não contempla o imponderável vínculo com as realidades locais.
Tendo em vista o nosso interesse de fazer uma leitura história com base nessas idéias, cumpre-nos reconhecer, no campo da educação matemática, a existência de um entrelaçamento entre as dimensões históricas e didáticas. Nesse sentido, ao descrever o estudo relatado neste texto, nossa intenção é identificar raízes das culturas didáticas e matemáticas que sustentaram as práticas escolares na época considerada. Ao persistir com essa intenção, optamos por pesquisar aspectos históricos do ensino primário da aritmética a partir da legislação educacional instituída, em 1890, pela chamada reforma Benjamim Constant, para o município do Rio de Janeiro e confrontar essas indicações com orientações propostas para o Estado do Amazonas, quando esta unidade da federação atravessava a fase áurea da riqueza proporcionada pela exploração da borracha. Para entender o sentido atribuído à cultura da matemática escolar e as ligações com diferentes regiões do país, optamos pela aplicação do conceito de apropriação, no sentido proposto por Roger Chartier, conforme detalhamos a seguir.
O conceito de apropriação é um instrumento teórico para a análise de práticas e saberes escolares e, mais amplamente, de produções oriundas do domínio de atuação dos professores, inseridos em seus tempos e lugares. Nas palavras de Roger Chartier: “A apropriação visa uma história social dos usos e das interpretações, referidas às suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas específicas que as produzem.” (Chartier, 1991, p. 180) A pertinência desse conceito se torna mais expressiva, quando é conectado às estratégias criadas na rede de instituições atrelada ao sistema educacional e às táticas produzidas na sala de aula. Lançamos mão desse pressuposto para interpretar as orientações propostas para o ensino da aritmética no Amazonas, pasra confrontá-las com orientações difundidas no Rio de Janeiro. Ao usar este conceito, estamos compartilhando da opção de pesquisadores que atuam no campo da história da educação matemática, tais como Zuin (2007), Valente (2009), entre outros.
Ao comparar cenas educacionais do Amazonas e do Rio de Janeiro, ressaltamos que se tratam de apropriações discursivas registradas em documentos da instrução pública, orientações dirigidas aos professores ou ainda em livros didáticos. Um outro importante patamar de apropriações diz respeito ao contexto da sala de aula, do qual não tratamos neste trabalho em função da natureza fontes acessadas. Em ambos os casos as apropriações estão inseridas num complexo jogo de relações institucionais, interligando o espaço da sala de aula a níveis mais abrangentes do sistema educacional. São ações mediadas por posições hierárquicas vinculadas às práticas escolares, gerando tensões, conflitos e disputas.
Toda produção discursiva tem sua validade ancorada numa rede de instituições consorciadas a uma instituição principal. Este é um postulado que temos procurado defender diante do desafio de compreender o trânsito de influências estabelecidas no entorno das práticas e dos saberes escolares. Assim sendo, as práticas decorrentes dos discursos pedagógicos são validadas por um fluxo de concordância ou condenadas por um coro simultâneo de críticas e reprovações. No caso da questão tratada neste texto, envolvendo o discurso orientador das práticas de ensino primário, não devemos perder de vista a influência exercida pelas instituições militares e positivistas às quais Benjamin Constant estava vinculado. Os presidentes militares nomeados para governar os diferentes Estados da federação, em decorrência da proclamação da República, estavam vinculados ao mesmo grupo oriundo das instituições militares do Rio de Janeiro e muitos deles compartilhavam das posições defendidas pelo ministro idealizador da reforma educacional de 1890.
Reforma Benjamin Constant
As orientações gerais previstas pela Reforma Benjamin Constant, instituída pelo decreto de 8 de novembro de 1890, visavam ditar novos rumos para a instrução primária e secundária do Distrito Federal. Para tentar recuperar o prejuízo histórico deixado pela política educacional dos tempos imperais, conforme atesta Saviani (2006), o redator da reforma previu a existência de dois tipos de escolas primárias que foram denominadas escolas primárias do primeiro grau, com seis anos de estudos e escolas primárias do segundo grau, com três anos de estudos. Seguindo a longa tradição deixada pela época do Império, o ensino secundário custeado pelos cofres públicos continuou sendo de sete anos e oferecido somente pelo Ginásio Nacional que, posteriormente, voltou a ser chamado de Colégio Pedro II. As escolas primárias do primeiro grau foram estruturadas em três cursos de dois anos cada: o elementar, para os alunos de 7 a 9 anos, o médio, para alunos de 9 a 11 anos e o superior, para alunos de 11 aos 13 anos. Após completar esses seis anos da escola primária, o aluno recebia um certificado que lhe dava o direito ingressar no ensino secundário ou normal, sem necessariamente cursar os três anos das escolas do 2º grau, pois o objetivo destas era a preparação para o trabalho.
No período de seis anos após a publicação do decreto, estava previsto que toda pessoa interessada em concorrer a um emprego público deveria ser portadora de um certificado de conclusão da escola primária do primeiro grau. Mas, para conseguir um emprego público essa legislação determinava que o certificado da escola do segundo grau seria mais vantajoso do que o certificado da escola do primeiro grau.
A reforma estipulou que o professor deveria nos seis anos da escola do primeiro grau, empregar constantemente o método intuitivo e que o livro escolar seria apenas um recurso auxiliar. Essas duas orientações pretendiam acompanhar, por meio de uma determinação legal, o movimento internacional de modernização pedagógica da época, visando superar as antigas práticas do século XIX, concebidas com excessiva ênfase na memorização, na repetição e na retórica. Mas, os professores, em sua grande maioria, desconheciam o método intuitivo e predominavam ainda livros didáticos escritos em sintonia com as práticas até então predominantes.
No caso dos livros de aritmética, por certo tempo, é possível identificar sinais da coabitação de duas vulgatas que, por certo tempo, conviveram juntas até por volta da década de 1930. Uma delas ainda voltadas para a antiga maneira de ensinar os números e as operações, com grande número de exercícios concebidos fortemente em práticas automatizadas e bem distante do universo de vivência dos alunos. A outra vertente consistiu no surgimento de alguns traços de mudança no ensino da aritmética através da inserção de ilustrações nos livros didáticos e de algumas que procuravam valorizar mais as ações dos alunos.
O idealizador da reforma de 1890 também determinou que os trabalhos escolares deveriam ser conduzidos em estrita sintonia com os programas de ensino, os quais estavam detalhados no próprio regulamento instituído pelo decreto. A crença de que os programas de ensino minuciosamente detalhados deveriam ser seguidos nas atividades escolares revela o tom autoritário nas determinações das ordens a serem acatadas pelos professores. Em outras palavras, nesse momento, estabelece-se, com clareza, uma tentativa de atribuir maior importância aos programas prescritos pelo governo e de minimizar o papel dos livros didáticos na atividade docente.
A opção de atribuir maior importância aos programas de ensino coloca em cena outro elemento enraizado na cultura escolar de outrora que são os planos de estudo: uma espécie de síntese dos conteúdos da disciplina escolar prevista num determinado projeto educacional. As atuais matrizes de referência ditadas para a educação escolar têm certo parentesco com os planos de estudo, sobretudo, por revelarem estratégias pelas quais se tenta exercer o controle sobre as ações docentes, em termos de práticas e de saberes.
Mas, se por um lado, o plano de estudo é elaborado pelos postos superiores do sistema educacional, por outro, a consequente elaboração do programa de ensino pertence à esfera direta de competência profissional do professor. Por esse motivo, as estratégias oficiais nem sempre produzem os resultados esperados pela rede de instituições que tentam controlar a escola, pois o efetivo trabalho escolar depende das táticas e dos instrumentos produzidos pela coletividade dos professores.
O plano de estudo de Matemática previsto pela Reforma Benjamin Constant para as escolas primárias do primeiro grau era o seguinte: contar e calcular, aritmética prática até regra de três, mediante o emprego, primeiro dos processos espontâneos, e depois dos processos sistemáticos, sistema métrico precedido do estudo da geometria pratica. (art. 3º do decreto de 8 de novembro de 1890) Ao destacar os aspectos práticos no ensino dos números e da Geometria e a precedência dos processos espontâneos em relação aos formais, o plano proposto visava inculcar uma cultura escolar de natureza mais pragmática do que aquela que predominava nas práticas anteriores.
Entretanto, o sentido atribuído ao plano de estudo está embasado nas finalidades previstas para a educação escolar, a qual, por sua vez, estava em sintonia com o projeto apoiado pelas instituições mais expressivas daquele momento. Por um lado, na época da reforma predominava o interesse de preparar uma pequena parcela da sociedade para ingressar no ensino secundário e assim ter condições de conquistar uma vaga no ensino superior e, por outro lado, como segunda opção, ingressar no reduzido mercado de trabalho, na época representado pela obtenção de um emprego público. Nesse aspecto, Chervel (1998) reforça que as finalidades concebidas para a escola estão associadas aos objetivos definidos para as disciplinas.
Após concluir o ensino secundário, se o aluno não conseguisse ingressar num curso superior, o certificado da escola primária do primeiro grau já lhe possibilitava o direito de ingressar na escola normal. A cultura escolar decorrente dessa concepção de instrução primária, em termos de preparação para o exercício de uma atividade profissional, estava vinculada a três possibilidades: obter um diploma de curso superior, ser funcionário público ou optar pela carreira do magistério primário. Três direções bem diferentes em termos das classes sociais cujas fronteiras eram bem delimitadas. Ao fazer este tipo de leitura, visualizamos, com mais clareza, a dimensão política das práticas da educação matemática, envolvendo aí seus métodos e conteúdos, os quais estão em estreita sintonia com os valores avalizados pela rede de instituições vinculadas à escola.
O certificado de conclusão da escola do segundo grau proporcionava ao portador uma vantagem a mais em relação ao certificado concedido pela escola do primeiro grau, pois aumentava as chances de conseguir um emprego público. Ao terminar a escola do segundo grau, o aluno estava isento, por força da legislação, da exigência de prestar exames de Português, Geografia e Matemática, em concursos públicos para os órgãos do governo, desde que o cargo pretendido não fosse de natureza técnica. Em outras palavras, para conseguir um emprego público, o certificado da escola do segundo grau era bem mais vantajoso. Portanto, as orientações dadas às práticas das escolas primárias do segundo grau, nos primeiros anos da fase republicana, coincidem com as finalidades previstas desde os tempos da legislação francesa conhecida como Lei Guizot, de 1833, por ocasião das medidas tomadas para expandir a educação escolar para as classes mais populares. Para que houvesse essa expansão era preciso, naquele momento, prever uma formação inicial para o trabalho, ao contrário, dos alunos do ensino secundário cuja finalidade era ter acesso ao ensino superior.
Para se ter uma idéia das orientações desse início de proposta republicana para a educação escolar, em sintonia com a visão positivista, cumpre-nos ressaltar outros aspectos tais como a questão de gênero. A tradição até aquele momento era indicar um plano de estudo de Matemática mais reduzido para as meninas. Seguindo a tendência do século XIX, as aulas nas escolas para meninas eram ministradas por professoras e nas escolas para meninos, por professores. Porém, a proposta republicana inova nesse sentido, prevendo que as escolas para meninos seriam dirigidas, preferencialmente, por professoras. Mas, essa flexibilização estava prevista somente para o curso elementar, isto é, para alunos de 7 a 9 anos, enquanto que as aulas para os alunos mais velhos continuaram sendo ministradas por professores. Para as escolas de meninas, em todos os três cursos, eram admitidas somente professoras.
A década de 1890 foi o momento de criação dos primeiros grupos escolares, no Estado de São Paulo, e uma das características desses estabelecimentos eram os prédios que foram idealizados, suntuosos em relação às casas dos mestres que ainda usavam o espaço de sua própria residência para ministrar as aulas públicas. (Souza, 2006) Os prédios dos primeiros grupos escolares foram então concebidos como sendo mais apropriados para dignificar a nova idéia de agrupar as escolas isoladas. Porém, quanto ao problema do espaço físico para as escolas públicas, a reforma prevista para o Distrito Federal era mais modesta, pois continuava prevalecendo a idéia de manter um professor para cada escola. O artigo 8 do decreto previa a construção de casas de acordo com “os mais severos preceitos da higiene escolar e com habitações anexas destinadas ao professor”, portanto, continuava a idéia do professor morar na própria escola.
As orientações contidas na Reforma Benjamin Constant previam uma expansão do uso de recursos didáticos, objetos materiais ou aparelhos de ensino pelos professores das escolas primárias do primeiro grau. Uma indicação de ordem metodológica que visava acompanhar o movimento de modernização das práticas de ensino. Na mesma linha discursiva estava a intenção de dotar cada escola com uma biblioteca especial, além de um museu com materiais pedagógicos para o ensino das diferentes matérias o qual deveria ter coleções de peças de mineralogia, botânica e zoologia e tudo quanto fosse indispensável para o ensino concreto. Dessa maneira, o texto incorpora no discurso educacional a influência do método de ensino intuitivo ou lições de coisas, cuja história é analisada em detalhes por Valdemarin (2004).
No que se refere ainda ao material de apoio para realizar as atividades escolares, o artigo 9 do decreto previa a construção de um ginásio de esportes, no espaço físico de cada escola, onde os alunos pudessem fazer exercícios físicos e militares, além de um pátio de jogos e recreações e um jardim preparado segundo preceitos pedagógicos. Toda essa estrutura física fora idealizada para proporcionar o uso de modernos materiais didáticos, aparelhos de ensino e mais os programas de ensino minuciosos de cada matéria, bem como os livros escolares adotados. Todo esse material deveria ser indicado e avaliado pelo Conselho Diretor da Instrução Pública, com a devida aprovação do governo. É nesse quadro de referência cultural e política que a reforma prescreveu o plano geral de estudos para os seis anos das escolas primárias do primeiro grau, o qual era composto pelas seguintes matérias:
Leitura e Escrita. Ensino prático da língua portuguesa. Contar e calcular. Aritmética prática até regra de três, mediante o emprego, primeiro dos processos espontâneos e depois dos processos sistematizados. Sistema métrico precedido do estudo da geometria prática. Elementos de geografia e história, especialmente a do Brasil. Lições de coisas e noções concretas de ciências físicas e história natural. Instrução moral e cívica. Desenho. Elementos de música; Ginástica e exercícios militares; Trabalhos manuais para os meninos. Trabalhos de agulha para as meninas. Noções práticas de agronomia. (Ortografia atualizada. Regulamento de 8 de novembro de 1890)
As orientações metodológicas contidas no regulamento aparecem, com clareza, na parte do ensino da aritmética, ao destacar a prioridade que deveria ser dada pelo professor aos processos espontâneos de contagem e operações. Essa orientação visava colocar em prática um dos princípios do método intuitivo, no sentido de aproximar a realidade física dos conteúdos escolares. Somente após essa valorização dos aspectos mais intuitivos e experimentais é que o professor deveria iniciar a formalização do saber escolar através da linguagem tradicional. Este é um pressuposto que difere das antigas práticas de ensino da aritmética; as quais consistiam em apresentar, primeiramente, os símbolos aritméticos, falados ou escritos, antes de levar o aluno a compreender o sentido atribuído aos mesmos ou reconhecer as quantidades associadas.
Mesmo que essa proposta de modernização do ensino da aritmética fosse uma nova visão metodológica naquele momento, por outro lado, encontramos no documento a intenção de preservar a valorização da sistematização do saber matemático através da nomenclatura clássica. Nesse sentido, nos primeiros momentos da fase republicana, há um discurso em favor da diversificação dos recursos experimentais para o ensino dos números, porém sem abrir mão da sistematização através das linguagens usuais da matemática. São cenas da transição entre duas vulgatas que iniciavam um longo período de coabitação, naquele momento.
Como destacamos acima, o decreto determinava que somente após trabalhar com os processos espontâneos é que o professor deveria iniciar a sistematização da linguagem usual da matemática. Esse princípio estava em consonância com a valorização do enfoque prático e concreto, permeando não somente o ensino da matemática como também das demais matérias. Com base nessa orientação, o ensino do sistema métrico decimal foi visto como matéria ideal para incrementar o aspecto concreto do estudo dos números e das operações fundamentais. Em particular, o estudo das frações decimais passou a ser relacionado com os múltiplos e submúltiplos das unidades de medida, sendo este um dos sinais de como os princípios do método intuitivo foram apropriados pelos propositores da reforma.
Quanto à valorização dos aspectos práticos e concretos no ensino da aritmética, sendo uma outra orientação defendida com base nos pressupostos do método intuitivo, ao que tudo indica, alguns autores de livros escolares se apropriaram dessa indicação com o entendimento de que, para atendê-la, seria necessário o aluno fazer um grande de número de exercícios. Quanto ao ensino de geometria, esse entendimento pode ser ilustrado com o livro Geometria Prática, de Olavo Freire, editado em 1893. Para o ensino da aritmética, também continuava existindo, na época, livros com a proposição de um grande número de exercício, como os da coleção FIC, sigla usada para identificar os religiosos católicos ou Irmãos de Instrução Cristã. A transcrição abaixo mostra a íntegra dos programas de ensino de aritmética para os seis anos das escolas primárias do primeiro grau:
Programas de Aritmética para os seis anos da escola primária do 1º grau
1ª classe do curso elementar: Contar, primeiramente pelos processos espontâneos, empregando os dedos, riscas, pedrinhas (cálculos), grãos, contas, etc., e depois os rosários, o contador mecânico, o crivo numeral e os ábacos, usando, entretanto, a terminologia própria da nomenclatura sistemática. Conhecimento prático das unidades fracionárias: metade, terça parte, quarta parte, etc., e comparação dessas unidades entre si. Escrever os algarismos. Exercícios práticos de somar, diminuir e multiplicar os números simples. Exercício mental de problemas fáceis. Conhecimento prático do metro, e sua divisão em décimos e centésimos. Ler e escrever qualquer numero de três algarismos. Conhecimento prático da moeda-papel até notas de 100$000.
2ª classe do curso elementar: Ler e escrever números compostos até seis algarismos, empregando os processos primitivos e o sistemático. Idéia clara da unidade, dezena e centena de milhar. Valor das letras maiúsculas usadas como algarismos romanos. Exercícios das quatro operações, sempre sob o ponto de vista concreto. Cálculo mental. Termos da fração e sua significação. Ler e escrever fiações decimais até cinco algarismos. Da semana; do mês; do ano; do dia em horas e minutos. Conhecimento prático das moedas nacionais. Medidas métricas.
1ª classe do curso médio: Revisão do programa anterior. Ler e escrever números compostos de mais de seis algarismos. Sistema de numeração romana. Conhecimento do quadrado, cubo, raiz quadrada e raiz cúbica. Sistema métrico completo. Conhecimento prático das principais moedas estrangeiras. Problemas concretos. Cálculo mental.
2ª classe do curso médio: Revisão do programa anterior. Propriedades das frações ordinárias e decimais. Problemas. Cálculo mental.
1ª classe do curso primário superior: Revisão da matéria estudada; operações sobre as frações ordinárias e decimais. Números primos; crivo de Erastóstenes. Principais caracteres [critérios] da divisibilidade dos números escritos no sistema decimal. Princípios da decomposição dos números em seus fatores primos. Máximo comum divisor, empregando em primeiro lugar as linhas retas. Problemas. Cálculo mental.
2ª classe do curso primário superior: Noções sobre os números complexos e suas operações. Regra de três e suas aplicações, pelo método de redução à unidade. Revisão geral. Problemas. Cálculo mental. Noções de escrituração mercantil.
Ao indicar que o estudo da contagem deveria ser iniciado pelo uso de objetos materiais do cotidiano da criança, explorando os chamados processos espontâneos, os redatores deixam transparecer a indicação dos princípios do método intuitivo, para num segundo momento, defender a utilização de objetos mais específicos para o ensino da aritmética, como ábaco, grãos, contas, crivo numérico e o contador mecânico, também chamado de aritmômetro. Para entender a intenção de modernização do ensino, prevendo o uso dos aparelhos no ensino escolar, cumpre destacar que se trata de uma calculadora manual de funcionamento mecânico projetada em 1820 por Charles-Xavier Thomas (1785-1870), as quais tiveram uma longa trajetória na história da informática.
Da mesma maneira como acontece nas orientações prescritas para o ensino de outros conteúdos da aritmética, no estudo das frações encontramos uma ênfase no sentido de valorizar os conhecimentos práticos, indicando uma orientação pragmática até então não assumida com tanta clareza pelos regulamentos concebidos na época do Império. Desse modo, nas orientações para o estudo das quatro operações fundamentais da aritmética também aparece a valorização de exercícios práticos, reforçando a visão pragmática da reforma concebida por Benjamim Constant para as escolas primárias.
A inserção do sistema métrico decimal na aritmética escolar, naquele momento, representava a consolidação de uma indicação iniciada a partir da década de 1870, momento em que o Brasil regulamentou o uso definitivo do referido sistema, indicando um novo conteúdo incorporado na cultura escolar a partir das circunstâncias avalizadas pelas instituições associadas às práticas escolares. (Zuin, 2007) Quanto ao ensino do sistema métrico, encontramos nas orientações do programa prescrito pelo Reforma Benjamin Constant uma ênfase, como destacamos acima, no viés do que os redatores chamaram de conhecimentos práticos do metro e suas divisões em décimos e centésimos, bem como no caso do sistema monetário adotado naquele momento.
No caso do cálculo mental, as indicações da referida reforma são claras no sentido de indicar sua prática, com regularidade, a partir da segunda classe do curso elementar, aparecendo explicitamente em todas as classes do curso médio e do curso superior. No primeiro ano do curso elementar não estava previsto o cálculo mental, mas sim o exercício mental. Ao que tudo indica, essa indicação é uma tentativa de minimizar a memorização e valorizar mias as práticas do raciocínio. Dessa maneira, têm longas raízes históricas a atual indicação, tal como consta nos Parâmetros Curriculares Nacionais, de exploração desse tipo de exercício no estudo dos números e operações.
Outro recurso pedagógico que aparece no programa é a indicação para que o professor fizesse uma revisão dos conteúdos estudados no ano anterior, toda vez que iniciasse os trabalhos com uma nova classe. Essa retomada de conteúdos anteriores estava prevista também para as outras matérias, mas no caso da matemática entendemos ser uma característica tradicional, de cunho epistemológico e didático, tendo em vista a forte hierarquia conceitual com as vulgatas são organizadas. Desde a obra de Lacroix, no início do século XIX, a aritmética escolar passou a ser estudada com base numa sequência quase imutável, passando pelos números, operações, frações, decimais, proporção, regra de três e aplicações. A cultura instituída pelas práticas tradicionais faz com que o domínio de conteúdos anteriores seja imprescindível para a continuidade dos estudos. Em outros termos, a ordem instituída na condução dos estudos escolares se constitui num dos elementos característicos da vulgata de uma determinada época.
Na lista dos conteúdos prescritos para a última classe do primário do primeiro grau, encontramos no programa de 1890 uma rápida relação com as noções de escrituração mercantil. Entretanto, a finalidade maior dessa categoria de escola não era proporcionar uma preparação para o trabalho, como era o caso do primário de segundo grau. Por outro lado, o estudo da proporcionalidade na forma dos problemas de regra de três e de outras aplicações sinalizava para a possibilidade do aluno continuar os estudos no nível secundário, visando a sua preparação para o ingresso no curso superior.
A orientação no sentido de valorizar procedimentos mais espontâneos no ensino dos números e das operações, como ressaltamos, indicava uma opção metodológica bem diferente em relação às práticas predominantes até o final do século XIX e início do século XX. Comprovamos essa mudança ao analisar a natureza dos primeiros exercícios propostos em livros escolares tradicionais usados na época considerada. De forma quase constante, ao ingressarem na escola primária, os alunos eram levados a iniciar o estudo da aritmética com a memorização dos símbolos numéricos escritos ou falados. Essa opção metodológica consiste em aprender símbolos para os quais o aluno desconhece o significado. Essa visão foi combatida pelo método intuitivo cujos pioneiros passaram a defender que os objetos acessíveis pela intuição deveriam ser explorados previamente para depois levar o aluno a compreender a linguagem formal.
Tendo em vista essa mudança metodológica, fomos levados a identificar que a numeração falada se constituía num dos primeiros conteúdos prescritos os programas de ensino mais antigos bem como em livros escolares da época, tais como a Aritmética Elementar Ilustrada, de Antonio Trajano e a Primeira Aritmética para Meninos, de José Theodoro de Souza Lobo. Além dessas duas obras que tiveram um grande número de edição até meados do século XX, o Explicador de Aritmética, de Eduardo Sá Pereira de Castro, cuja 7ª edição foi lançada em 1885, prioriza o início do ensino da aritmética com os exercícios da linguagem falada.
Para entender o sentido atribuído ao ensino da leitura dos números, destacamos que o primeiro capítulo do Explicador de Aritmética, intitulado princípios elementares, entra pelos caminhos de uma definição de Aritmética, diferenciação entre quantidades contínuas e descontínuas, definição de unidade, número, número inteiro, quebrado, misto, número abstrato e número concreto. Porem, esse tipo de enfoque deixa de ser priorizado com a proposta do programa instituído pela Reforma Benjamin Constant. Os primeiros sinais de valorização do método de ensino intuitivo indicam a importância de tornar o estudo dos números menos abstrato e com uso excessivo da memorização.
Dos três autores acima mencionados, Trajano é o primeiro a implementar alguns aspectos iniciais de uma abordagem de natureza intuitiva na condução do estudo da aritmética. Essa inovação consistiu na inserção do uso de ilustração de objetos do cotidiano no ensino dos números e das operações fundamentais. Nesse sentido, a obra desse autor apresenta algumas dezenas de desenhos para ilustrar atividades matemáticas da cultura escolar da época. Por mais simples que possa parecer, à primeira vista, a maneira como o referido autor propõe o estudo elementar dos números representa uma tentativa, até certo ponto audaciosa, de alterar uma sólida e resistente tradição .
Como consequência dessa inovação sua obra foi premiada pelo júri da Primeira Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro, de 1883, presidida por Leôncio de Carvalho, que havia ocupado o cargo de Ministro dos Negócios do Império e conduzido a reforma instituída pelo decreto no 7247, de 19 de abril de 1879. Contrastando com a maneira como Trajano se apropriou do discurso pedagógico veiculado naquele momento, quanto ao uso do método intuitivo no ensino elementar dos números, Eduardo Sá Pereira de Castro, nas páginas do seu Explicador de Aritmética não traz nenhuma ilustração ou desenho com indicava os defensores do método de ensino intuitivo.
Regimento proposto para o Amazonas
O regimento das escolas primárias do Estado do Amazonas, instituído pelo decreto no 13 de 31 de dezembro de 1892, propunha uma diferenciação entre o ensino da aritmética e do Sistema métrico decimal. Em outras palavras, esses dois conteúdos eram considerados no referido documento como sendo matérias ou disciplinas distintas vinculadas à Matemática. Esta foi uma estratégia oficial para determinar a importância do professor inculcar a cultura relativa ao sistema métrico, tratando este conteúdo como sendo uma matéria independente e não apenas um capítulo da aritmética.
De início, a partir da obrigatoriedade de uso definitivo do novo sistema de medidas, livros didáticos específicos sobre o tema foram escritos e adotados separados do estudo dos números. Além do mais, de acordo com o regimento, as escolas primárias tinham a finalidade de proporcionar aos alunos conhecimentos para que os mesmos pudessem cumprir seus deveres e obrigações como cidadãos e o novo conteúdo passou a ser visto como capaz de contribuir no atendimento dessa meta. Entretanto, quer seja no ensino das operações ou do sistema métrico, o documento mencionado focaliza o aspecto da materialidade de objetos que deveriam ser usados pelos professores primários.
Por esse motivo somos levados a afirmar que o período analisado indica traços de uma cultura material específica da educação matemática. Da mesma forma como consta na Reforma Benjamin Constant, os responsáveis pela instrução púbica no Amazonas tentam efetivar um texto prescritivo no sentido de valorizar princípios que estavam sendo defendidos no contexto internacional de difusão do método intuitivo. Como deixa transparecer Valente (2009), o tema da materialidade dos objetos culturais da escola situa-se na confluência das estratégias usadas na produção dos mesmos e das táticas com as quais os mesmos são apropriados em determinado contexto .
Do ponto de vista teórico, somos motivados a recorrer a conceitos propostos por Michel de Certeau e Roger Chartier para poder compreender a concepção, difusão e circulação dos objetos materiais concebidos para o ensino de uma determina matéria escolar. Quanto a esse tema, é oportuno lembrar a necessidade do próprio professor confrontar a efetiva qualidade dos aparelhos tecnológicos destinados ao ensino escolar do discurso prescritivo assumido em diferentes textos institucionais. No conjunto das relações de produção estabelecidas entre as instituições surgem diferentes maneiras de se apropriar dos objetos materiais concebidos para o uso escolar, sejam eles softwares nos dias atuais ou aritmômetros nos tempos passados.
No estudo descrito neste texto a intenção é compreender o sentido atribuído ao uso de objetos da cultura escolar do ensino primário da Matemática, nos últimos anos do século XIX, comparando programas prescritos para as escolas do Rio de Janeiro e para o Estado do Amazonas. A escolha dessa unidade da federação justifica-se em face do momento de euforia na arrecadação de impostos resultantes do período áureo da exportação da borracha e de uma consequente reforma educacional empreendida nos primeiros anos da República. Diante dessa finalidade, é preciso então compreender como as disciplinas prescritas e as condições oferecidas se efetivaram nas novas orientações contidas no contexto daquele Estado.
Quanto à valorização do ensino da aritmética e do sistema métrico decimal, o regimento amazonense de 1892 acompanhava, de forma geral, as indicações prescritas para o Rio de Janeiro, na reforma de 1890. O governador Eduardo Gonçalves Ribeiro, formado no grupo de militares que participou do movimento de proclamação da República e que recebeu influência dos ideais positivistas, foi nomeado governador do Estado. Após permanecer pouco tempo na condição de governador nomeado, passou pelo crivo eleitoral das urnas e fora eleito para governar no período de 1892 a 1896.
Com a intenção de valorizar um plano de estudo mais científico para a instrução primária e secundária, como previa o pensamento positivista dos líderes do movimento republicano, o documento amazonense estipulava o compromisso de adquirir objetos específicos para incrementar o ensino da aritmética e do sistema métrico decimal. De certa forma, o ensino da matemática passou a ter uma importância mais destacada no conjunto das disciplinas e, como aconteceu no Rio de Janeiro, passou a ser reconhecida a necessidade de modernizar as práticas tradicionais. Por esse motivo, um dos desafios da pesquisa histórica das disciplinas escolares consiste em desvelar sinais que possam indicar a maneira como ocorreram, no contexto local, as apropriações das idéias mais amplas que circulavam no cenário pedagógico nacional e internacional.
O regimento das escolas primárias do Amazonas de 1892 tal como a acontecia no Rio de Janeiro em função da reforma de 1890 previa a existência de um aritmômetro para cada escola do Estado. O argumento usado para justificar a aquisição dos aparelhos consistia numa suposta possibilidade de tornar os cálculos aritméticos mais precisos e rápidos, tal como exigia a modernidade anunciada pela proximidade do século XX. Em função das fontes que nos foi possível acessar, podemos apenas afirmar que a legislação educacional da referida unidade da federação menciona a utilização dessas máquinas manuais de fazer cálculos nas escolas da capital e do interior. Resta-nos compreender como esses aparelhos foram efetivamente apropriados, no contexto da sala de aula.
As boas condições financeiras do Estado levaram os responsáveis pela instrução pública a determinar o uso do referido recurso tecnológico, mas a grande maioria dos professores primários ainda não tinha a formação na Escola Normal do Amazonas, instalada em 1880. A pesquisa feita por Souza (2010) descreve esses traços do uso dos aritmômetros no ensino primário na década de 1890. Informações dessa natureza indicam a necessidade da expansão dos estudos relativos ao tema para uma melhor compreensão histórica da cultura escolar material relacionada ao ensino da Matemática, sobretudo, no momento de difusão do método intuitivo.
A indicação do uso de objetos materiais para o ensino da Matemática aparecia desde da década de 1870, no quadro da Escola Normal da Província do Rio de Janeiro, quando se pretendia expandir o caráter profissional da formação de professores, conforme Villela (2003). Uma análise do ensino de Matemática na referida instituição nos permitiu localizar a solicitação da compra de vários objetos para o ensino da aritmética, sistema métrico, geometria ou desenho. O texto original é o seguinte:
Para auxiliar o ensino das disciplinas desta cadeira lembro a Vossa Excelência a conveniência de comprar as obras essencialmente práticas de F. Delille, de Villequet e de Dumont, o necessário de Carpentier, os quadros de Deleschamps, de Linares, de Magin e Tarnier. A escala métrica de Demkés, a Caixa de Bonet e o aparelho de Level. As figuras de Strosser para o aprendizado de perspectiva, a coleção inteira de sólidos de Saigey e os cadernos de Adler para os primeiros exercícios de desenho linear sem instrumentos. (Relatório do diretor da Escola Normal da Província do Rio de Janeiro, José Carlos de Alambary Luz, de 9 de agosto de 1872)
A cadeira mencionada pelo diretor diz respeito às matemáticas elementares e abrangia o estudo das matérias de aritmética, álgebra, geometria e desenho linear e, naquele momento. O seu titular era o professor e engenheiro químico, formado pela Escola Central de Paris, Pedro Alcântara Lisboa, quem elaborou a lista dos objetos indicados para o ensino das matemáticas para a formação dos professores primários. Essa lista apenas serve de referência para ilustrar o contexto histórico de valorização das dimensões intuitivas e experimentais da disciplina de Matemática.
O regimento amazonense de 1892 relaciona outros objetos materiais para serem usados no estudo do sistema métrico decimal. Mais especificamente, previa o uso de aparelhos métricos e de uma coleção de quadros sinóticos do sistema métrico. Estes quadros reproduziam diversas tabelas de conversão das unidades de medida, detalhando seus múltiplos e submúltiplos, os quais eram consultados diretamente para facilitar a resolução de problemas. No plano das orientações prescritas os redatores da legislação amazonenses estavam em sintonia com os rumos pedagógicos indicados na Escola Normal de Niterói, em cujos relatórios aparecem a indicação do uso dos mesmos objetos materiais destinados ao ensino das matemáticas elementares. No contexto dessa instituição estava em curso um projeto para modernizar a formação de professores primários, diante dos desafios descortinados pelo desenvolvimento tecnológico da época e pelo novo século que se anunciava. Assim, as condições financeiras favoráveis dos cofres públicos amazonenses proporcionaram esse discurso pedagógico local justificado em nome da modernização da educação matemática.
Considerando o livro didático um objeto cultural diferenciado é nosso interesse comparar o contexto amazonense com as orientações prescritas pelo centro político do país. Nesse sentido, constamos que o regimento de 1892 previa que os livros destinados ao ensino primário fossem avaliados pelo Conselho da Instrução Pública e somente os aprovados poderiam ser adotados pelos professores. Além do mais, a legislação previa que os professores tinham responsabilidade direta de indenizar os cofres públicos caso algum objeto material ou livro escolar fosse extraviado.
As orientações prescritas no regimento das escolas primárias do Amazonas, na parte referente ao ensino da aritmética eram, de forma geral, praticamente as mesmas da legislação propostas para o distrito federal. Entretanto, é possível identificar a existência de pequenas sutilezas na maneira de se apropriar do discurso pedagógico, quando se prevê para os alunos amazonenses um enfoque mais pragmático no estudo dos números e das operações fundamentais da aritmética. Essa orientação pode ser comprovada com a presença de expressões do tipo exercícios práticos, conhecimentos práticos, ensino concreto, entre outras. Essa valorização acentuada dos aspectos práticos aparece, em particular, na parte referente às orientações prescritas para o ensino das frações de maneira articulada com o estudo das unidades de medidas do sistema métrico. Mas, de forma geral, os conteúdos são os mesmos, sendo possível identificar várias frases exatamente idênticas ao documento proposto para a cidade do Rio de Janeiro.
O regimento amazonense, em seu artigo 36, seguindo as orientações na reforma idealizada para o Rio de Janeiro, previa que em todas as classes das escolas primárias o professor deveria, constantemente, empregar o método intuitivo e que o livro didático deveria ser admitido apenas um recurso auxiliar. Esta última orientação visava combater a excessiva centralidade atribuída, muitas vezes, aos livros escolares como referência na condução das práticas e dos saberes escolares, tal como teoriza Choppin (2004).
Na parte referente ao ensino da aritmética, seguindo as indicações do método intuitivo e quase a integridade do texto proposto para a reforma no Rio de Janeiro, os professores amazonenses foram orientados a iniciar o estudo da contagem e das primeiras operações, priorizando os processos espontâneos e usando recursos como os dedos, riscos, contas, botões, caroços e outros objetos. Mas, essa abordagem intuitiva e experimental deveria ser priorizada apenas na fase inicial do ensino e logo em seguida o professor deveria trabalhar com a linguagem sistemática. De um lado, a orientação sinaliza para a direção indicada pelo método intuitivo e, por outro, procura conservar a linguagem usual da matemática. Nesse sentido, a orientação prescreve uma alteração no método tradicional, mas preserva um dos elementos característicos da vulgata que é a nomenclatura específica da matéria, no sentido proposto por Chervel (1990).
Quanto ao estudo das quatro operações fundamentais, o documento amazonense se insere numa linha metodológica bem mais conservadora no sentido de reforçar que nenhum aluno deveria iniciar a aprendizagem dos números maiores de dez, sem antes dominar na prática e na teoria as operações com os números menores. Uma prática bem tradicional, de longínquas raízes históricas, que consiste em fixar uma rígida separação não somente entre o estudo da quatro operações fundamentais da aritmética, bem como o estudo inicial dos dez algarismos indo-arábicos e somente depois iniciar o estudo dos números de 11 a 20 e assim por diante. Esse entendimento revela uma confusão entre a ordem na qual o saber encontra-se registrado nos textos usuais da escola e os sinuosos caminhos pelos quais o mesmo saber pode ser elaborado. Assim, a recomendação encontrada na fonte amazonense reforçava a importância de garantir o domínio da tabuada com números menor de dez, antes de estudar os números maiores. Iniciar o estudo da aritmética pela contagem e pela apresentação dos primeiros números era uma prática comum na época, como ilustra a Aritmética Elementar Ilustrada, de Antonio Trajano, lançada em 1879 e que adotada oficialmente no Amazonas, entre 1893 a 1899, conforme pesquisa de Souza (2010).
Outro livro escolar que ilustra essa maneira tradicional de iniciar o estudo das operações numéricas é a Segunda Aritmética para Meninos, do autor gaúcho José Theodoro do Souza Lobo, lançada em 1870. Entretanto, ao comprar esta Aritmética com a de Trajano, é possível perceber que este autor se apropriou de indicações do método intuitivo, procurando entrar em sintonia com o discurso do momento. Sua produção foi reconhecida com um prêmio concedido pelo júri da Primeira Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro de 1883, fato este que impulsionou a difusão da obra em diferentes regiões do país. Quanto às estratégias usadas para difundir as obras escolares, cumpre-nos mencionar o parecer elaborado pelo ministro Benjamin Constant que não poupa elogias à obra de Trajano: Li a Aritmética Elementar do Sr. Antônio Trajano, e tenho prazer em declarar que é ela uma das melhores se não a melhor de todas as que conheço destinada a instrução da infância. Essas poucas palavras do ministro foram suficientes para reforçar as qualidades do livro reimpresso até na década de 1960 com a impressionante cifra de 140 edições. Um verdadeiro fenômeno editorial.
Outra orientação registrada no regimento amazonense diz respeito à defesa do ensino do cálculo mental para os alunos da escola primária, a qual encontra-se descrita pelas seguintes palavras: “Convém que o professor exercite diariamente os alunos no cálculo mental subindo dos números simples aos compostos.” A partir das operações mais elementares, realizadas mentalmente, com números menores de dez, os professores eram orientados a explorar o mesmo tipo de cálculo com números maiores, formados por mais de um algarismo. Essa orientação era complementada com o esclarecimento de que o objetivo do ensino do cálculo mental deveria ser aplicado na resolução de problemas simples, explorando quantidades concretas para o aluno, lembrando que os números poderia estar inseridos em pequenas questões da vida comum e da vida doméstica, idéia próxima à noção de contextualização dos conteúdos escolares tal como indicam os atuais parâmetros nacionais para o ensino da matemática.
Elementos de síntese
O final do século XIX marcou o início da difusão do método de ensino intuitivo, nos Estados Unidos, em países da Europa e no Brasil. Ao estudar as implicações desse método no ensino da aritmética elementar, constatamos que um dos maiores desafios da época foi a tentativa de minimizar a persistente presença da memorização inexpressiva no estudo das operações fundamentais e reforçar a importância de uma exploração mais intensa de aspectos intuitivos e experimentais nas práticas e saberes escolares. Assim, o desafio enfrentado pelos professores primários envolvia a superação das velhas práticas cultivada ao longo de quase todo o século XIX. Nas vertentes mais tradicionais das práticas escolares, a memorização resultou numa espécie de sedimentação como uma tática de estudo da matemática. Antes de iniciar o movimento de difusão do método de ensino intuitivo, o então chamado método mnemônico eram indicado nos regulamentos de ensino como caminho pertinente para o estudo das matemáticas escolares, tal como comprova os registros históricos de Primitivo Moacyr (1939).
Para superar as velhas práticas de memorização no estudo da matemática, de acordo com as orientações difundidas pelas reformas da década de 1890, o professor deveria evitar que os alunos decorassem as regras sem compreendê-las. Naquele tempo, a orientação avalizada no discurso oficial para superar a memorização era de que o professor deveria obrigar o aluno a explicar, com suas próprias palavras, o mecanismo das operações, como ilustra o regimento amazonense de 1892. Porém, o tom imperativo dessa determinação era amenizado, dizendo que a orientação deveria ser posta em prática quando os alunos já estivessem práticos. Essa ponderação deixa em aberto a possibilidade dessa prática ser adquirida com o exercício do treino e da repetição.
Um dos documentos anexos ao regimento amazonense de 1892 é um quadro das matérias previstas para as cinco classes do ensino primário. No distrito federal o ensino primário do primeiro grau era previsto com a estrutura de seis classes, distribuídas em três cursos de dois anos cada (elementar, médio e superior). De forma análoga, o ensino primário amazonense estava dividido em três cursos. Entretanto, com a seguinte alteração as três primeiras classes formavam o curso elementar, a quarta classe, o curso médio enquanto que a quinta, o curso superior. No Amazonas, ao contrário do que previa a legislação do Rio de Janeiro, na primeira classe não estava previsto o ensino da aritmética. Em síntese, ao se apropriar do discurso veiculado no centro político do país, os responsáveis pela instrução amazonense fizeram uma simplificação da estrutura concebida para os planos de estudo e uma redução nos conteúdos previstos para o ensino da aritmética.
Ao analisar documentos referentes à educação matemática escolar do Amazonas e no Rio de Janeiro do final do século XIX, foi possível constatar uma valorização diferenciada para a sistematização da linguagem característica dos conteúdos clássicos. De forma articulada com o uso de recursos didáticos materiais, explorando o sentido intuitivo relacionado aos conteúdos matemáticos, as fontes analisadas indicam que os professores, mesmo inserindo objetos materiais manipuláveis no estudo da aritmética, deveriam valorizar a nomenclatura sistemática da disciplina. Ao mesmo tempo em que as orientações indicavam o uso de recursos espontâneos para expandir o sentido dos conteúdos escolares, valoriza-se o ensino da linguagem matemática, um dos elementos da vulgata de uma época.
Outra orientação referente ao ensino da aritmética que aparece no regimento amazonense de 1892 diz respeito ao cálculo mental, a qual estava registrada pelas seguintes palavras: “Convém que o professor exercite diariamente os alunos no cálculo mental subindo dos números simples aos compostos.” As orientações prescritas aos professores consistiam em indicar que os mesmos deveriam partir de operações mais simples, realizadas mentalmente, com número de apenas um algarismo, e passar a explorar o mesmo tipo de cálculo com números formados por mais de um algarismo. Essa orientação pedagógica era complementada, esclarecendo que o cálculo mental versaria ainda sobre a resolução de problemas simples, procurando explorar quantidades concretas para o aluno, lembrando que os números poderiam estar inseridos em pequenas questões da vida doméstica, concepção que, hoje, estaria próxima da noção de contextualização tal como indicam os atuais parâmetros nacionais para o ensino da matemática. Finalmente, cumpre-nos destacar que nas orientações previstas pela reforma Benjamin Constant, a valorização do cálculo mental aparece nas seis classes do ensino primário do 1º grau, com a particularidade de que na 1ª classe do curso elementar figura somente a expressão exercício mental ao invés de cálculo mental.
A comparação entre as orientações prescritas para o ensino da aritmética no Amazonas e no município do Rio de Janeiro, nos primeiros anos da fase republicana, sinaliza a importância de prosseguir os estudos sobre a importância pedagógica atribuída a objetos materiais que permearam a cultura escolar da educação matemática. Em particular, estamos desafiados a melhor compreender, do ponto de vista histórico como o uso do aritmômetro foi defendido no plano prescritivo das orientações públicas para a instrução escolar do final do século XIX. A recomendação do uso desses aparelhos no ensino das operações numéricas aparece nos relatórios da Escola Normal de Niterói, no regimento interno das escolas primárias do distrito federal e ainda no regimento das escolas primárias do Estado do Amazonas. Este aparelho foi usado no ensino escolar de outros países? Quais foram as práticas prescritas para a sua utilização? Mas estas são questões para um outro trabalho concernente à história da educação matemática escolar, possivelmente enriquecida por um estudo histórico comparativo.
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Considerações iniciais
Um ano após a proclamação da República, após assentar as bases mais urgentes das instituições militares, econômicas e fazendárias, foi aprovado um novo regulamento para a instrução primária e secundária do Distrito Federal, pelo decreto no 981, de 8 de novembro de 1890. O objetivo era regular o funcionamento das escolas do município do Rio de Janeiro, em consonância com as idéias defendidas pelos líderes do movimento republicano. Mesmo que essa reforma não tivesse o poder de determinar os rumos da educação nacional, continuou existindo, de certa forma, a mesma estratégia usada no período imperial que consistia em legislar para o centro do poder político com a intenção de influenciar as demais províncias do país.
Nesse sentido, se justifica a opção de recorrer às idéias de Michel de Certeau, quando este autor diz que para cada estratégia criada por uma instituição, visando preservar o seu domínio de atuação, surge um verdadeiro rastilho incontrolável de táticas que, geralmente, escapam ao controle do poder central. (Certeau, 2007) É nesse campo de conflitos resultantes das relações institucionais que pretendemos contar uma história do ensino primário da aritmética na última década do século XIX, articulando programas de ensino, métodos de ensino, livros didáticos e apropriações resultantes das relações de influência do Rio de Janeiro sobre outros Estados da federação.
O panorama mais amplo dessa história da educação matemática que pretendemos contar neste texto é formado pelas concepções forjadas pela visão positivista, sob a liderança do general Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836 - 1891). Engenheiro militar, professor de matemática de escolas militares e da Escola Normal da Corte; fervoroso defensor do pensamento positivista e participante do movimento republicano. Seu amplo envolvimento no movimento militar que levou à queda da monarquia lhe garantiu, de início, o posto de ministro da Guerra e, posteriormente, o de ministro da Instrução Pública, Correio e Telégrafos. No curto tempo que ocupou esse último ministério, em decorrência de seu falecimento com apenas 58 anos, propôs uma reforma na instrução pública primária e secundária; a qual exerceu considerável influência inicial no país, em decorrência da reprodução das idéias que foram difundidas pelos militares nomeados nos diferentes Estados para impor a nova ordem política. As idéias da reforma estavam banhadas por uma visão positivista e cientificista e foram baixadas como atos determinantes do poder militar.
As idéias básicas da reforma chegaram aos diferentes estados da federação e foram apropriadas de diferentes maneiras, transformadas em textos oficiais da instrução local, às vezes, com alterações significativas em função das realidades locais. Dessa maneira, no quadro inicial da República, esboça-se uma questão de relevância histórica que consiste em compreender como ocorreu esse movimento de apropriação dos discursos pedagógicos e das práticas características das disciplinas escolares. Não se trata somente de uma relação bipolar entre o centro do poder e os demais estados, pois a questão envolve pólos mais distantes de influência que eram os países que lideravam o movimento de modernização da educação escolar.
O desenvolvimento tecnológico iniciado na Europa e nos Estados Unidos nas últimas décadas do século XIX passou a exigir uma expansão significativa do oferecimento de instrução primária e secundária para as diferentes classes populares. No Brasil, o balanço educacional do século XIX foi extremamente reduzido em termos de constituir as bases para um sistema educacional mais consistente e amplo em termos sociais. (Saviani et al, 2006) Os lideres do movimento republicano tinha então o desafio político de superar esse prejuízo histórico. Em paralelo, no cenário mundial, o mesmo período registrou a necessidade de reformas educacionais que proporcionassem a preparação de jovens para o ingresso nos cursos de engenharia. Para isso, era necessária a inclusão de novos conteúdos científicos no ensino secundário e, para tanto, os planos de estudo primários deveriam também ser adequados. O matemático Félix Kline havia iniciado a liderança de um amplo movimento de modernização do ensino da matemática que se consolidou na primeira década do século XX. (Schubring, 2003). Nesse momento, fica evidente a necessidade de consolidar um sistema educacional nacional para articular os diferentes níveis de ensino, do primário ao superior, passando pelo ensino secundário, pela formação de professores primários e pelo ensino técnico.
Como aconteceu em outros momentos da história da educação, a matemática foi novamente reconhecida como uma disciplina capaz de exercer um papel fundamental na superação dos desafios educacionais descortinados pelo século XX. Começa-se a descortinar a possibilidade de superar a velha posição humanista que havia dominado, de forma quase absoluta, até então, o ensino secundário. Cresce a consciência coletiva quanto à necessidade de ampliar o espaço das disciplinas científicas.
No quadro delineado acima, o estudo relatado neste texto foi realizado a partir da seguinte questão motivadora: quais foram as características do ensino primário da aritmética na primeira década da Republica, quando comparamos orientações prescritas para o então centro político do país e o cenário mais amplo de outras unidades da federação? Tendo em vista a amplitude da questão, optamos por destacar aspectos mais associados aos métodos de ensino, programas e livros didáticos; inserindo estes últimos entre os objetos típicos da cultura material da educação matemática escolar.
Posições teóricas e metodológicas
A história da educação matemática pode ser escrita com base na abordagem proposta por Chervel (1990 e 1988) e compartilhada por outros autores que atuam no campo da história das disciplinas escolares. Um dos pressupostos defendidos pelos pesquisadores vinculados a nesse programa de pesquisa, de acordo com a nossa leitura e apropriação, consiste em admitir a existência de uma complexa rede de relações entre os conteúdos de ensino, as disciplinas escolares e as culturas produzidas na interface da escola com outras instituições que participam na constituição do sistema educacional. Entendemos que uma das tendências recentes desse programa de pesquisa histórica da educação consiste em conceber as culturas escolares como o resultado do espaço de atuação direta dos professores, mas sem a possibilidade de pensar em termos de determinação ou de imposição. Mesmo em vista das tradições curriculares, a cultura escolar está em permanente processo de efervescência e são cunhados a partir das relações mantidas com as instituições que circulam no entorno da vida escolar (Julia, 2001).
Ao aplicar esse pressuposto nos redutos mais específicos da educação matemática, ficam bem mais evidentes as relações de influência, construídas pelos elementos constituintes da disciplina, efetivadas pelas práticas e saberes escolares, interligando orientações curriculares, métodos e recursos de ensino, livros didáticos, exercícios específicos e os aparatos de avaliação e de tentativa de controle institucional. A todos esses elementos se contrapõe a efetiva produção docente.
Trata-se de influências relacionadas às práticas produzidas por um grupo de instituições com as quais a escola disputa relações de produção. Nesse sentido, torna-se necessário destacar a existência de uma complexa rede de trocas de produção no campo educacional das práticas escolares e mais particularmente no ensino da Matemática. Para cada proposição discursiva de práticas anunciadas com a intenção de direcionar as ações docentes, muitas vezes com o tom autoritário da determinação, é possível esperar diferentes formas de apropriação e novas produções que acontecem na sala de aula. Para abordar esse conflito entre as prescrições oficiais e as produções docentes, neste trabalho, optamos por destacar o problema das relações que emergem no contexto escolar e se revelam na produção de práticas e saberes relacionados ao estudo da aritmética. Enquanto os formuladores de planos de ensino prescrevem saberes típicos da educação escolar e autores de livros didáticos se consorciam para apresentar exercícios e técnicas compatíveis com os conteúdos propostos, os professores produzem suas efetivas ações para elaborar o saber escolar.
Ao postular essa posição crítica na escrita da história da educação matemática é conveniente conceber a dimensão pedagógica em sintonia com a dimensão conceitual da disciplina de referência. Qualquer tentativa de separar esses dois aspectos interligados reduz a virtualidade contida no ato educativo. Ao considerar o nível mais refinado das práticas escolares pertinentes à educação matemática, encontramos a presença dos espíritos meticulosos usados pelo aparelho docimológico pelo qual se tenta exercer o controle das atividades escolares. (Chervel, 1998) Em particular, o entrelaçamento entre os aspectos epistemológicos da educação matemática e as finalidades do projeto associado fornece a base para inculcar uma parte específica da cultura escolar (Julia, 2001).
As orientações propostas pelas instituições educacionais mais influentes recebem, quase sempre, o respaldo de um consórcio de outras instituições associadas ao sistema. Mesmo que não haja concordância plena entre todas as propostas, sobretudo, quanto aos conteúdos de ensino, em certo momento, predomina a convergência de um discurso mais hegemônico, caracterizado por Chervel (1990) como sendo o fenômeno da vulgata. Um conjunto constituído por conteúdos, exercícios, métodos e outros recursos que constituem a parte mais nuclear da disciplina escolar. As práticas e os saberes adotados para resolver certos tipos de exercícios estão ancorados e defendidos com base em posições compartilhadas pelos professores como sujeitos de uma instituição efetivamente produtora e não apenas dominada por outras instituições.
Dessa maneira, eventos históricos podem ser esboçados a partir de fragmentos contidos em discursos e práticas prescritas por instituições participantes do fluxo de relações estabelecidas no entorno da escola. Ao fazer essa leitura, é preciso visualizar os lugares dos quais os discursos são enunciados e a história é escrita. Estratégias e táticas são ações singulares, cada qual está enraizada numa particularidade da qual resulta a escrita da história, como ensina Michel De Certeau (2002 e 2007). Durante muito tempo predominou, de forma quase absoluta, a falsa idéia de que a educação matemática estaria isenta de vínculos políticos e ideológicos. Essa linha de entendimento confunde a objetividade da disciplina com a subjetividade inerente aos sujeitos da educação. Mas, essa visão é extremamente redutora, quer seja do ponto de vista educacional, político ou social, porque não contempla o imponderável vínculo com as realidades locais.
Tendo em vista o nosso interesse de fazer uma leitura história com base nessas idéias, cumpre-nos reconhecer, no campo da educação matemática, a existência de um entrelaçamento entre as dimensões históricas e didáticas. Nesse sentido, ao descrever o estudo relatado neste texto, nossa intenção é identificar raízes das culturas didáticas e matemáticas que sustentaram as práticas escolares na época considerada. Ao persistir com essa intenção, optamos por pesquisar aspectos históricos do ensino primário da aritmética a partir da legislação educacional instituída, em 1890, pela chamada reforma Benjamim Constant, para o município do Rio de Janeiro e confrontar essas indicações com orientações propostas para o Estado do Amazonas, quando esta unidade da federação atravessava a fase áurea da riqueza proporcionada pela exploração da borracha. Para entender o sentido atribuído à cultura da matemática escolar e as ligações com diferentes regiões do país, optamos pela aplicação do conceito de apropriação, no sentido proposto por Roger Chartier, conforme detalhamos a seguir.
O conceito de apropriação é um instrumento teórico para a análise de práticas e saberes escolares e, mais amplamente, de produções oriundas do domínio de atuação dos professores, inseridos em seus tempos e lugares. Nas palavras de Roger Chartier: “A apropriação visa uma história social dos usos e das interpretações, referidas às suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas específicas que as produzem.” (Chartier, 1991, p. 180) A pertinência desse conceito se torna mais expressiva, quando é conectado às estratégias criadas na rede de instituições atrelada ao sistema educacional e às táticas produzidas na sala de aula. Lançamos mão desse pressuposto para interpretar as orientações propostas para o ensino da aritmética no Amazonas, pasra confrontá-las com orientações difundidas no Rio de Janeiro. Ao usar este conceito, estamos compartilhando da opção de pesquisadores que atuam no campo da história da educação matemática, tais como Zuin (2007), Valente (2009), entre outros.
Ao comparar cenas educacionais do Amazonas e do Rio de Janeiro, ressaltamos que se tratam de apropriações discursivas registradas em documentos da instrução pública, orientações dirigidas aos professores ou ainda em livros didáticos. Um outro importante patamar de apropriações diz respeito ao contexto da sala de aula, do qual não tratamos neste trabalho em função da natureza fontes acessadas. Em ambos os casos as apropriações estão inseridas num complexo jogo de relações institucionais, interligando o espaço da sala de aula a níveis mais abrangentes do sistema educacional. São ações mediadas por posições hierárquicas vinculadas às práticas escolares, gerando tensões, conflitos e disputas.
Toda produção discursiva tem sua validade ancorada numa rede de instituições consorciadas a uma instituição principal. Este é um postulado que temos procurado defender diante do desafio de compreender o trânsito de influências estabelecidas no entorno das práticas e dos saberes escolares. Assim sendo, as práticas decorrentes dos discursos pedagógicos são validadas por um fluxo de concordância ou condenadas por um coro simultâneo de críticas e reprovações. No caso da questão tratada neste texto, envolvendo o discurso orientador das práticas de ensino primário, não devemos perder de vista a influência exercida pelas instituições militares e positivistas às quais Benjamin Constant estava vinculado. Os presidentes militares nomeados para governar os diferentes Estados da federação, em decorrência da proclamação da República, estavam vinculados ao mesmo grupo oriundo das instituições militares do Rio de Janeiro e muitos deles compartilhavam das posições defendidas pelo ministro idealizador da reforma educacional de 1890.
Reforma Benjamin Constant
As orientações gerais previstas pela Reforma Benjamin Constant, instituída pelo decreto de 8 de novembro de 1890, visavam ditar novos rumos para a instrução primária e secundária do Distrito Federal. Para tentar recuperar o prejuízo histórico deixado pela política educacional dos tempos imperais, conforme atesta Saviani (2006), o redator da reforma previu a existência de dois tipos de escolas primárias que foram denominadas escolas primárias do primeiro grau, com seis anos de estudos e escolas primárias do segundo grau, com três anos de estudos. Seguindo a longa tradição deixada pela época do Império, o ensino secundário custeado pelos cofres públicos continuou sendo de sete anos e oferecido somente pelo Ginásio Nacional que, posteriormente, voltou a ser chamado de Colégio Pedro II. As escolas primárias do primeiro grau foram estruturadas em três cursos de dois anos cada: o elementar, para os alunos de 7 a 9 anos, o médio, para alunos de 9 a 11 anos e o superior, para alunos de 11 aos 13 anos. Após completar esses seis anos da escola primária, o aluno recebia um certificado que lhe dava o direito ingressar no ensino secundário ou normal, sem necessariamente cursar os três anos das escolas do 2º grau, pois o objetivo destas era a preparação para o trabalho.
No período de seis anos após a publicação do decreto, estava previsto que toda pessoa interessada em concorrer a um emprego público deveria ser portadora de um certificado de conclusão da escola primária do primeiro grau. Mas, para conseguir um emprego público essa legislação determinava que o certificado da escola do segundo grau seria mais vantajoso do que o certificado da escola do primeiro grau.
A reforma estipulou que o professor deveria nos seis anos da escola do primeiro grau, empregar constantemente o método intuitivo e que o livro escolar seria apenas um recurso auxiliar. Essas duas orientações pretendiam acompanhar, por meio de uma determinação legal, o movimento internacional de modernização pedagógica da época, visando superar as antigas práticas do século XIX, concebidas com excessiva ênfase na memorização, na repetição e na retórica. Mas, os professores, em sua grande maioria, desconheciam o método intuitivo e predominavam ainda livros didáticos escritos em sintonia com as práticas até então predominantes.
No caso dos livros de aritmética, por certo tempo, é possível identificar sinais da coabitação de duas vulgatas que, por certo tempo, conviveram juntas até por volta da década de 1930. Uma delas ainda voltadas para a antiga maneira de ensinar os números e as operações, com grande número de exercícios concebidos fortemente em práticas automatizadas e bem distante do universo de vivência dos alunos. A outra vertente consistiu no surgimento de alguns traços de mudança no ensino da aritmética através da inserção de ilustrações nos livros didáticos e de algumas que procuravam valorizar mais as ações dos alunos.
O idealizador da reforma de 1890 também determinou que os trabalhos escolares deveriam ser conduzidos em estrita sintonia com os programas de ensino, os quais estavam detalhados no próprio regulamento instituído pelo decreto. A crença de que os programas de ensino minuciosamente detalhados deveriam ser seguidos nas atividades escolares revela o tom autoritário nas determinações das ordens a serem acatadas pelos professores. Em outras palavras, nesse momento, estabelece-se, com clareza, uma tentativa de atribuir maior importância aos programas prescritos pelo governo e de minimizar o papel dos livros didáticos na atividade docente.
A opção de atribuir maior importância aos programas de ensino coloca em cena outro elemento enraizado na cultura escolar de outrora que são os planos de estudo: uma espécie de síntese dos conteúdos da disciplina escolar prevista num determinado projeto educacional. As atuais matrizes de referência ditadas para a educação escolar têm certo parentesco com os planos de estudo, sobretudo, por revelarem estratégias pelas quais se tenta exercer o controle sobre as ações docentes, em termos de práticas e de saberes.
Mas, se por um lado, o plano de estudo é elaborado pelos postos superiores do sistema educacional, por outro, a consequente elaboração do programa de ensino pertence à esfera direta de competência profissional do professor. Por esse motivo, as estratégias oficiais nem sempre produzem os resultados esperados pela rede de instituições que tentam controlar a escola, pois o efetivo trabalho escolar depende das táticas e dos instrumentos produzidos pela coletividade dos professores.
O plano de estudo de Matemática previsto pela Reforma Benjamin Constant para as escolas primárias do primeiro grau era o seguinte: contar e calcular, aritmética prática até regra de três, mediante o emprego, primeiro dos processos espontâneos, e depois dos processos sistemáticos, sistema métrico precedido do estudo da geometria pratica. (art. 3º do decreto de 8 de novembro de 1890) Ao destacar os aspectos práticos no ensino dos números e da Geometria e a precedência dos processos espontâneos em relação aos formais, o plano proposto visava inculcar uma cultura escolar de natureza mais pragmática do que aquela que predominava nas práticas anteriores.
Entretanto, o sentido atribuído ao plano de estudo está embasado nas finalidades previstas para a educação escolar, a qual, por sua vez, estava em sintonia com o projeto apoiado pelas instituições mais expressivas daquele momento. Por um lado, na época da reforma predominava o interesse de preparar uma pequena parcela da sociedade para ingressar no ensino secundário e assim ter condições de conquistar uma vaga no ensino superior e, por outro lado, como segunda opção, ingressar no reduzido mercado de trabalho, na época representado pela obtenção de um emprego público. Nesse aspecto, Chervel (1998) reforça que as finalidades concebidas para a escola estão associadas aos objetivos definidos para as disciplinas.
Após concluir o ensino secundário, se o aluno não conseguisse ingressar num curso superior, o certificado da escola primária do primeiro grau já lhe possibilitava o direito de ingressar na escola normal. A cultura escolar decorrente dessa concepção de instrução primária, em termos de preparação para o exercício de uma atividade profissional, estava vinculada a três possibilidades: obter um diploma de curso superior, ser funcionário público ou optar pela carreira do magistério primário. Três direções bem diferentes em termos das classes sociais cujas fronteiras eram bem delimitadas. Ao fazer este tipo de leitura, visualizamos, com mais clareza, a dimensão política das práticas da educação matemática, envolvendo aí seus métodos e conteúdos, os quais estão em estreita sintonia com os valores avalizados pela rede de instituições vinculadas à escola.
O certificado de conclusão da escola do segundo grau proporcionava ao portador uma vantagem a mais em relação ao certificado concedido pela escola do primeiro grau, pois aumentava as chances de conseguir um emprego público. Ao terminar a escola do segundo grau, o aluno estava isento, por força da legislação, da exigência de prestar exames de Português, Geografia e Matemática, em concursos públicos para os órgãos do governo, desde que o cargo pretendido não fosse de natureza técnica. Em outras palavras, para conseguir um emprego público, o certificado da escola do segundo grau era bem mais vantajoso. Portanto, as orientações dadas às práticas das escolas primárias do segundo grau, nos primeiros anos da fase republicana, coincidem com as finalidades previstas desde os tempos da legislação francesa conhecida como Lei Guizot, de 1833, por ocasião das medidas tomadas para expandir a educação escolar para as classes mais populares. Para que houvesse essa expansão era preciso, naquele momento, prever uma formação inicial para o trabalho, ao contrário, dos alunos do ensino secundário cuja finalidade era ter acesso ao ensino superior.
Para se ter uma idéia das orientações desse início de proposta republicana para a educação escolar, em sintonia com a visão positivista, cumpre-nos ressaltar outros aspectos tais como a questão de gênero. A tradição até aquele momento era indicar um plano de estudo de Matemática mais reduzido para as meninas. Seguindo a tendência do século XIX, as aulas nas escolas para meninas eram ministradas por professoras e nas escolas para meninos, por professores. Porém, a proposta republicana inova nesse sentido, prevendo que as escolas para meninos seriam dirigidas, preferencialmente, por professoras. Mas, essa flexibilização estava prevista somente para o curso elementar, isto é, para alunos de 7 a 9 anos, enquanto que as aulas para os alunos mais velhos continuaram sendo ministradas por professores. Para as escolas de meninas, em todos os três cursos, eram admitidas somente professoras.
A década de 1890 foi o momento de criação dos primeiros grupos escolares, no Estado de São Paulo, e uma das características desses estabelecimentos eram os prédios que foram idealizados, suntuosos em relação às casas dos mestres que ainda usavam o espaço de sua própria residência para ministrar as aulas públicas. (Souza, 2006) Os prédios dos primeiros grupos escolares foram então concebidos como sendo mais apropriados para dignificar a nova idéia de agrupar as escolas isoladas. Porém, quanto ao problema do espaço físico para as escolas públicas, a reforma prevista para o Distrito Federal era mais modesta, pois continuava prevalecendo a idéia de manter um professor para cada escola. O artigo 8 do decreto previa a construção de casas de acordo com “os mais severos preceitos da higiene escolar e com habitações anexas destinadas ao professor”, portanto, continuava a idéia do professor morar na própria escola.
As orientações contidas na Reforma Benjamin Constant previam uma expansão do uso de recursos didáticos, objetos materiais ou aparelhos de ensino pelos professores das escolas primárias do primeiro grau. Uma indicação de ordem metodológica que visava acompanhar o movimento de modernização das práticas de ensino. Na mesma linha discursiva estava a intenção de dotar cada escola com uma biblioteca especial, além de um museu com materiais pedagógicos para o ensino das diferentes matérias o qual deveria ter coleções de peças de mineralogia, botânica e zoologia e tudo quanto fosse indispensável para o ensino concreto. Dessa maneira, o texto incorpora no discurso educacional a influência do método de ensino intuitivo ou lições de coisas, cuja história é analisada em detalhes por Valdemarin (2004).
No que se refere ainda ao material de apoio para realizar as atividades escolares, o artigo 9 do decreto previa a construção de um ginásio de esportes, no espaço físico de cada escola, onde os alunos pudessem fazer exercícios físicos e militares, além de um pátio de jogos e recreações e um jardim preparado segundo preceitos pedagógicos. Toda essa estrutura física fora idealizada para proporcionar o uso de modernos materiais didáticos, aparelhos de ensino e mais os programas de ensino minuciosos de cada matéria, bem como os livros escolares adotados. Todo esse material deveria ser indicado e avaliado pelo Conselho Diretor da Instrução Pública, com a devida aprovação do governo. É nesse quadro de referência cultural e política que a reforma prescreveu o plano geral de estudos para os seis anos das escolas primárias do primeiro grau, o qual era composto pelas seguintes matérias:
Leitura e Escrita. Ensino prático da língua portuguesa. Contar e calcular. Aritmética prática até regra de três, mediante o emprego, primeiro dos processos espontâneos e depois dos processos sistematizados. Sistema métrico precedido do estudo da geometria prática. Elementos de geografia e história, especialmente a do Brasil. Lições de coisas e noções concretas de ciências físicas e história natural. Instrução moral e cívica. Desenho. Elementos de música; Ginástica e exercícios militares; Trabalhos manuais para os meninos. Trabalhos de agulha para as meninas. Noções práticas de agronomia. (Ortografia atualizada. Regulamento de 8 de novembro de 1890)
As orientações metodológicas contidas no regulamento aparecem, com clareza, na parte do ensino da aritmética, ao destacar a prioridade que deveria ser dada pelo professor aos processos espontâneos de contagem e operações. Essa orientação visava colocar em prática um dos princípios do método intuitivo, no sentido de aproximar a realidade física dos conteúdos escolares. Somente após essa valorização dos aspectos mais intuitivos e experimentais é que o professor deveria iniciar a formalização do saber escolar através da linguagem tradicional. Este é um pressuposto que difere das antigas práticas de ensino da aritmética; as quais consistiam em apresentar, primeiramente, os símbolos aritméticos, falados ou escritos, antes de levar o aluno a compreender o sentido atribuído aos mesmos ou reconhecer as quantidades associadas.
Mesmo que essa proposta de modernização do ensino da aritmética fosse uma nova visão metodológica naquele momento, por outro lado, encontramos no documento a intenção de preservar a valorização da sistematização do saber matemático através da nomenclatura clássica. Nesse sentido, nos primeiros momentos da fase republicana, há um discurso em favor da diversificação dos recursos experimentais para o ensino dos números, porém sem abrir mão da sistematização através das linguagens usuais da matemática. São cenas da transição entre duas vulgatas que iniciavam um longo período de coabitação, naquele momento.
Como destacamos acima, o decreto determinava que somente após trabalhar com os processos espontâneos é que o professor deveria iniciar a sistematização da linguagem usual da matemática. Esse princípio estava em consonância com a valorização do enfoque prático e concreto, permeando não somente o ensino da matemática como também das demais matérias. Com base nessa orientação, o ensino do sistema métrico decimal foi visto como matéria ideal para incrementar o aspecto concreto do estudo dos números e das operações fundamentais. Em particular, o estudo das frações decimais passou a ser relacionado com os múltiplos e submúltiplos das unidades de medida, sendo este um dos sinais de como os princípios do método intuitivo foram apropriados pelos propositores da reforma.
Quanto à valorização dos aspectos práticos e concretos no ensino da aritmética, sendo uma outra orientação defendida com base nos pressupostos do método intuitivo, ao que tudo indica, alguns autores de livros escolares se apropriaram dessa indicação com o entendimento de que, para atendê-la, seria necessário o aluno fazer um grande de número de exercícios. Quanto ao ensino de geometria, esse entendimento pode ser ilustrado com o livro Geometria Prática, de Olavo Freire, editado em 1893. Para o ensino da aritmética, também continuava existindo, na época, livros com a proposição de um grande número de exercício, como os da coleção FIC, sigla usada para identificar os religiosos católicos ou Irmãos de Instrução Cristã. A transcrição abaixo mostra a íntegra dos programas de ensino de aritmética para os seis anos das escolas primárias do primeiro grau:
Programas de Aritmética para os seis anos da escola primária do 1º grau
1ª classe do curso elementar: Contar, primeiramente pelos processos espontâneos, empregando os dedos, riscas, pedrinhas (cálculos), grãos, contas, etc., e depois os rosários, o contador mecânico, o crivo numeral e os ábacos, usando, entretanto, a terminologia própria da nomenclatura sistemática. Conhecimento prático das unidades fracionárias: metade, terça parte, quarta parte, etc., e comparação dessas unidades entre si. Escrever os algarismos. Exercícios práticos de somar, diminuir e multiplicar os números simples. Exercício mental de problemas fáceis. Conhecimento prático do metro, e sua divisão em décimos e centésimos. Ler e escrever qualquer numero de três algarismos. Conhecimento prático da moeda-papel até notas de 100$000.
2ª classe do curso elementar: Ler e escrever números compostos até seis algarismos, empregando os processos primitivos e o sistemático. Idéia clara da unidade, dezena e centena de milhar. Valor das letras maiúsculas usadas como algarismos romanos. Exercícios das quatro operações, sempre sob o ponto de vista concreto. Cálculo mental. Termos da fração e sua significação. Ler e escrever fiações decimais até cinco algarismos. Da semana; do mês; do ano; do dia em horas e minutos. Conhecimento prático das moedas nacionais. Medidas métricas.
1ª classe do curso médio: Revisão do programa anterior. Ler e escrever números compostos de mais de seis algarismos. Sistema de numeração romana. Conhecimento do quadrado, cubo, raiz quadrada e raiz cúbica. Sistema métrico completo. Conhecimento prático das principais moedas estrangeiras. Problemas concretos. Cálculo mental.
2ª classe do curso médio: Revisão do programa anterior. Propriedades das frações ordinárias e decimais. Problemas. Cálculo mental.
1ª classe do curso primário superior: Revisão da matéria estudada; operações sobre as frações ordinárias e decimais. Números primos; crivo de Erastóstenes. Principais caracteres [critérios] da divisibilidade dos números escritos no sistema decimal. Princípios da decomposição dos números em seus fatores primos. Máximo comum divisor, empregando em primeiro lugar as linhas retas. Problemas. Cálculo mental.
2ª classe do curso primário superior: Noções sobre os números complexos e suas operações. Regra de três e suas aplicações, pelo método de redução à unidade. Revisão geral. Problemas. Cálculo mental. Noções de escrituração mercantil.
Ao indicar que o estudo da contagem deveria ser iniciado pelo uso de objetos materiais do cotidiano da criança, explorando os chamados processos espontâneos, os redatores deixam transparecer a indicação dos princípios do método intuitivo, para num segundo momento, defender a utilização de objetos mais específicos para o ensino da aritmética, como ábaco, grãos, contas, crivo numérico e o contador mecânico, também chamado de aritmômetro. Para entender a intenção de modernização do ensino, prevendo o uso dos aparelhos no ensino escolar, cumpre destacar que se trata de uma calculadora manual de funcionamento mecânico projetada em 1820 por Charles-Xavier Thomas (1785-1870), as quais tiveram uma longa trajetória na história da informática.
Da mesma maneira como acontece nas orientações prescritas para o ensino de outros conteúdos da aritmética, no estudo das frações encontramos uma ênfase no sentido de valorizar os conhecimentos práticos, indicando uma orientação pragmática até então não assumida com tanta clareza pelos regulamentos concebidos na época do Império. Desse modo, nas orientações para o estudo das quatro operações fundamentais da aritmética também aparece a valorização de exercícios práticos, reforçando a visão pragmática da reforma concebida por Benjamim Constant para as escolas primárias.
A inserção do sistema métrico decimal na aritmética escolar, naquele momento, representava a consolidação de uma indicação iniciada a partir da década de 1870, momento em que o Brasil regulamentou o uso definitivo do referido sistema, indicando um novo conteúdo incorporado na cultura escolar a partir das circunstâncias avalizadas pelas instituições associadas às práticas escolares. (Zuin, 2007) Quanto ao ensino do sistema métrico, encontramos nas orientações do programa prescrito pelo Reforma Benjamin Constant uma ênfase, como destacamos acima, no viés do que os redatores chamaram de conhecimentos práticos do metro e suas divisões em décimos e centésimos, bem como no caso do sistema monetário adotado naquele momento.
No caso do cálculo mental, as indicações da referida reforma são claras no sentido de indicar sua prática, com regularidade, a partir da segunda classe do curso elementar, aparecendo explicitamente em todas as classes do curso médio e do curso superior. No primeiro ano do curso elementar não estava previsto o cálculo mental, mas sim o exercício mental. Ao que tudo indica, essa indicação é uma tentativa de minimizar a memorização e valorizar mias as práticas do raciocínio. Dessa maneira, têm longas raízes históricas a atual indicação, tal como consta nos Parâmetros Curriculares Nacionais, de exploração desse tipo de exercício no estudo dos números e operações.
Outro recurso pedagógico que aparece no programa é a indicação para que o professor fizesse uma revisão dos conteúdos estudados no ano anterior, toda vez que iniciasse os trabalhos com uma nova classe. Essa retomada de conteúdos anteriores estava prevista também para as outras matérias, mas no caso da matemática entendemos ser uma característica tradicional, de cunho epistemológico e didático, tendo em vista a forte hierarquia conceitual com as vulgatas são organizadas. Desde a obra de Lacroix, no início do século XIX, a aritmética escolar passou a ser estudada com base numa sequência quase imutável, passando pelos números, operações, frações, decimais, proporção, regra de três e aplicações. A cultura instituída pelas práticas tradicionais faz com que o domínio de conteúdos anteriores seja imprescindível para a continuidade dos estudos. Em outros termos, a ordem instituída na condução dos estudos escolares se constitui num dos elementos característicos da vulgata de uma determinada época.
Na lista dos conteúdos prescritos para a última classe do primário do primeiro grau, encontramos no programa de 1890 uma rápida relação com as noções de escrituração mercantil. Entretanto, a finalidade maior dessa categoria de escola não era proporcionar uma preparação para o trabalho, como era o caso do primário de segundo grau. Por outro lado, o estudo da proporcionalidade na forma dos problemas de regra de três e de outras aplicações sinalizava para a possibilidade do aluno continuar os estudos no nível secundário, visando a sua preparação para o ingresso no curso superior.
A orientação no sentido de valorizar procedimentos mais espontâneos no ensino dos números e das operações, como ressaltamos, indicava uma opção metodológica bem diferente em relação às práticas predominantes até o final do século XIX e início do século XX. Comprovamos essa mudança ao analisar a natureza dos primeiros exercícios propostos em livros escolares tradicionais usados na época considerada. De forma quase constante, ao ingressarem na escola primária, os alunos eram levados a iniciar o estudo da aritmética com a memorização dos símbolos numéricos escritos ou falados. Essa opção metodológica consiste em aprender símbolos para os quais o aluno desconhece o significado. Essa visão foi combatida pelo método intuitivo cujos pioneiros passaram a defender que os objetos acessíveis pela intuição deveriam ser explorados previamente para depois levar o aluno a compreender a linguagem formal.
Tendo em vista essa mudança metodológica, fomos levados a identificar que a numeração falada se constituía num dos primeiros conteúdos prescritos os programas de ensino mais antigos bem como em livros escolares da época, tais como a Aritmética Elementar Ilustrada, de Antonio Trajano e a Primeira Aritmética para Meninos, de José Theodoro de Souza Lobo. Além dessas duas obras que tiveram um grande número de edição até meados do século XX, o Explicador de Aritmética, de Eduardo Sá Pereira de Castro, cuja 7ª edição foi lançada em 1885, prioriza o início do ensino da aritmética com os exercícios da linguagem falada.
Para entender o sentido atribuído ao ensino da leitura dos números, destacamos que o primeiro capítulo do Explicador de Aritmética, intitulado princípios elementares, entra pelos caminhos de uma definição de Aritmética, diferenciação entre quantidades contínuas e descontínuas, definição de unidade, número, número inteiro, quebrado, misto, número abstrato e número concreto. Porem, esse tipo de enfoque deixa de ser priorizado com a proposta do programa instituído pela Reforma Benjamin Constant. Os primeiros sinais de valorização do método de ensino intuitivo indicam a importância de tornar o estudo dos números menos abstrato e com uso excessivo da memorização.
Dos três autores acima mencionados, Trajano é o primeiro a implementar alguns aspectos iniciais de uma abordagem de natureza intuitiva na condução do estudo da aritmética. Essa inovação consistiu na inserção do uso de ilustração de objetos do cotidiano no ensino dos números e das operações fundamentais. Nesse sentido, a obra desse autor apresenta algumas dezenas de desenhos para ilustrar atividades matemáticas da cultura escolar da época. Por mais simples que possa parecer, à primeira vista, a maneira como o referido autor propõe o estudo elementar dos números representa uma tentativa, até certo ponto audaciosa, de alterar uma sólida e resistente tradição .
Como consequência dessa inovação sua obra foi premiada pelo júri da Primeira Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro, de 1883, presidida por Leôncio de Carvalho, que havia ocupado o cargo de Ministro dos Negócios do Império e conduzido a reforma instituída pelo decreto no 7247, de 19 de abril de 1879. Contrastando com a maneira como Trajano se apropriou do discurso pedagógico veiculado naquele momento, quanto ao uso do método intuitivo no ensino elementar dos números, Eduardo Sá Pereira de Castro, nas páginas do seu Explicador de Aritmética não traz nenhuma ilustração ou desenho com indicava os defensores do método de ensino intuitivo.
Regimento proposto para o Amazonas
O regimento das escolas primárias do Estado do Amazonas, instituído pelo decreto no 13 de 31 de dezembro de 1892, propunha uma diferenciação entre o ensino da aritmética e do Sistema métrico decimal. Em outras palavras, esses dois conteúdos eram considerados no referido documento como sendo matérias ou disciplinas distintas vinculadas à Matemática. Esta foi uma estratégia oficial para determinar a importância do professor inculcar a cultura relativa ao sistema métrico, tratando este conteúdo como sendo uma matéria independente e não apenas um capítulo da aritmética.
De início, a partir da obrigatoriedade de uso definitivo do novo sistema de medidas, livros didáticos específicos sobre o tema foram escritos e adotados separados do estudo dos números. Além do mais, de acordo com o regimento, as escolas primárias tinham a finalidade de proporcionar aos alunos conhecimentos para que os mesmos pudessem cumprir seus deveres e obrigações como cidadãos e o novo conteúdo passou a ser visto como capaz de contribuir no atendimento dessa meta. Entretanto, quer seja no ensino das operações ou do sistema métrico, o documento mencionado focaliza o aspecto da materialidade de objetos que deveriam ser usados pelos professores primários.
Por esse motivo somos levados a afirmar que o período analisado indica traços de uma cultura material específica da educação matemática. Da mesma forma como consta na Reforma Benjamin Constant, os responsáveis pela instrução púbica no Amazonas tentam efetivar um texto prescritivo no sentido de valorizar princípios que estavam sendo defendidos no contexto internacional de difusão do método intuitivo. Como deixa transparecer Valente (2009), o tema da materialidade dos objetos culturais da escola situa-se na confluência das estratégias usadas na produção dos mesmos e das táticas com as quais os mesmos são apropriados em determinado contexto .
Do ponto de vista teórico, somos motivados a recorrer a conceitos propostos por Michel de Certeau e Roger Chartier para poder compreender a concepção, difusão e circulação dos objetos materiais concebidos para o ensino de uma determina matéria escolar. Quanto a esse tema, é oportuno lembrar a necessidade do próprio professor confrontar a efetiva qualidade dos aparelhos tecnológicos destinados ao ensino escolar do discurso prescritivo assumido em diferentes textos institucionais. No conjunto das relações de produção estabelecidas entre as instituições surgem diferentes maneiras de se apropriar dos objetos materiais concebidos para o uso escolar, sejam eles softwares nos dias atuais ou aritmômetros nos tempos passados.
No estudo descrito neste texto a intenção é compreender o sentido atribuído ao uso de objetos da cultura escolar do ensino primário da Matemática, nos últimos anos do século XIX, comparando programas prescritos para as escolas do Rio de Janeiro e para o Estado do Amazonas. A escolha dessa unidade da federação justifica-se em face do momento de euforia na arrecadação de impostos resultantes do período áureo da exportação da borracha e de uma consequente reforma educacional empreendida nos primeiros anos da República. Diante dessa finalidade, é preciso então compreender como as disciplinas prescritas e as condições oferecidas se efetivaram nas novas orientações contidas no contexto daquele Estado.
Quanto à valorização do ensino da aritmética e do sistema métrico decimal, o regimento amazonense de 1892 acompanhava, de forma geral, as indicações prescritas para o Rio de Janeiro, na reforma de 1890. O governador Eduardo Gonçalves Ribeiro, formado no grupo de militares que participou do movimento de proclamação da República e que recebeu influência dos ideais positivistas, foi nomeado governador do Estado. Após permanecer pouco tempo na condição de governador nomeado, passou pelo crivo eleitoral das urnas e fora eleito para governar no período de 1892 a 1896.
Com a intenção de valorizar um plano de estudo mais científico para a instrução primária e secundária, como previa o pensamento positivista dos líderes do movimento republicano, o documento amazonense estipulava o compromisso de adquirir objetos específicos para incrementar o ensino da aritmética e do sistema métrico decimal. De certa forma, o ensino da matemática passou a ter uma importância mais destacada no conjunto das disciplinas e, como aconteceu no Rio de Janeiro, passou a ser reconhecida a necessidade de modernizar as práticas tradicionais. Por esse motivo, um dos desafios da pesquisa histórica das disciplinas escolares consiste em desvelar sinais que possam indicar a maneira como ocorreram, no contexto local, as apropriações das idéias mais amplas que circulavam no cenário pedagógico nacional e internacional.
O regimento das escolas primárias do Amazonas de 1892 tal como a acontecia no Rio de Janeiro em função da reforma de 1890 previa a existência de um aritmômetro para cada escola do Estado. O argumento usado para justificar a aquisição dos aparelhos consistia numa suposta possibilidade de tornar os cálculos aritméticos mais precisos e rápidos, tal como exigia a modernidade anunciada pela proximidade do século XX. Em função das fontes que nos foi possível acessar, podemos apenas afirmar que a legislação educacional da referida unidade da federação menciona a utilização dessas máquinas manuais de fazer cálculos nas escolas da capital e do interior. Resta-nos compreender como esses aparelhos foram efetivamente apropriados, no contexto da sala de aula.
As boas condições financeiras do Estado levaram os responsáveis pela instrução pública a determinar o uso do referido recurso tecnológico, mas a grande maioria dos professores primários ainda não tinha a formação na Escola Normal do Amazonas, instalada em 1880. A pesquisa feita por Souza (2010) descreve esses traços do uso dos aritmômetros no ensino primário na década de 1890. Informações dessa natureza indicam a necessidade da expansão dos estudos relativos ao tema para uma melhor compreensão histórica da cultura escolar material relacionada ao ensino da Matemática, sobretudo, no momento de difusão do método intuitivo.
A indicação do uso de objetos materiais para o ensino da Matemática aparecia desde da década de 1870, no quadro da Escola Normal da Província do Rio de Janeiro, quando se pretendia expandir o caráter profissional da formação de professores, conforme Villela (2003). Uma análise do ensino de Matemática na referida instituição nos permitiu localizar a solicitação da compra de vários objetos para o ensino da aritmética, sistema métrico, geometria ou desenho. O texto original é o seguinte:
Para auxiliar o ensino das disciplinas desta cadeira lembro a Vossa Excelência a conveniência de comprar as obras essencialmente práticas de F. Delille, de Villequet e de Dumont, o necessário de Carpentier, os quadros de Deleschamps, de Linares, de Magin e Tarnier. A escala métrica de Demkés, a Caixa de Bonet e o aparelho de Level. As figuras de Strosser para o aprendizado de perspectiva, a coleção inteira de sólidos de Saigey e os cadernos de Adler para os primeiros exercícios de desenho linear sem instrumentos. (Relatório do diretor da Escola Normal da Província do Rio de Janeiro, José Carlos de Alambary Luz, de 9 de agosto de 1872)
A cadeira mencionada pelo diretor diz respeito às matemáticas elementares e abrangia o estudo das matérias de aritmética, álgebra, geometria e desenho linear e, naquele momento. O seu titular era o professor e engenheiro químico, formado pela Escola Central de Paris, Pedro Alcântara Lisboa, quem elaborou a lista dos objetos indicados para o ensino das matemáticas para a formação dos professores primários. Essa lista apenas serve de referência para ilustrar o contexto histórico de valorização das dimensões intuitivas e experimentais da disciplina de Matemática.
O regimento amazonense de 1892 relaciona outros objetos materiais para serem usados no estudo do sistema métrico decimal. Mais especificamente, previa o uso de aparelhos métricos e de uma coleção de quadros sinóticos do sistema métrico. Estes quadros reproduziam diversas tabelas de conversão das unidades de medida, detalhando seus múltiplos e submúltiplos, os quais eram consultados diretamente para facilitar a resolução de problemas. No plano das orientações prescritas os redatores da legislação amazonenses estavam em sintonia com os rumos pedagógicos indicados na Escola Normal de Niterói, em cujos relatórios aparecem a indicação do uso dos mesmos objetos materiais destinados ao ensino das matemáticas elementares. No contexto dessa instituição estava em curso um projeto para modernizar a formação de professores primários, diante dos desafios descortinados pelo desenvolvimento tecnológico da época e pelo novo século que se anunciava. Assim, as condições financeiras favoráveis dos cofres públicos amazonenses proporcionaram esse discurso pedagógico local justificado em nome da modernização da educação matemática.
Considerando o livro didático um objeto cultural diferenciado é nosso interesse comparar o contexto amazonense com as orientações prescritas pelo centro político do país. Nesse sentido, constamos que o regimento de 1892 previa que os livros destinados ao ensino primário fossem avaliados pelo Conselho da Instrução Pública e somente os aprovados poderiam ser adotados pelos professores. Além do mais, a legislação previa que os professores tinham responsabilidade direta de indenizar os cofres públicos caso algum objeto material ou livro escolar fosse extraviado.
As orientações prescritas no regimento das escolas primárias do Amazonas, na parte referente ao ensino da aritmética eram, de forma geral, praticamente as mesmas da legislação propostas para o distrito federal. Entretanto, é possível identificar a existência de pequenas sutilezas na maneira de se apropriar do discurso pedagógico, quando se prevê para os alunos amazonenses um enfoque mais pragmático no estudo dos números e das operações fundamentais da aritmética. Essa orientação pode ser comprovada com a presença de expressões do tipo exercícios práticos, conhecimentos práticos, ensino concreto, entre outras. Essa valorização acentuada dos aspectos práticos aparece, em particular, na parte referente às orientações prescritas para o ensino das frações de maneira articulada com o estudo das unidades de medidas do sistema métrico. Mas, de forma geral, os conteúdos são os mesmos, sendo possível identificar várias frases exatamente idênticas ao documento proposto para a cidade do Rio de Janeiro.
O regimento amazonense, em seu artigo 36, seguindo as orientações na reforma idealizada para o Rio de Janeiro, previa que em todas as classes das escolas primárias o professor deveria, constantemente, empregar o método intuitivo e que o livro didático deveria ser admitido apenas um recurso auxiliar. Esta última orientação visava combater a excessiva centralidade atribuída, muitas vezes, aos livros escolares como referência na condução das práticas e dos saberes escolares, tal como teoriza Choppin (2004).
Na parte referente ao ensino da aritmética, seguindo as indicações do método intuitivo e quase a integridade do texto proposto para a reforma no Rio de Janeiro, os professores amazonenses foram orientados a iniciar o estudo da contagem e das primeiras operações, priorizando os processos espontâneos e usando recursos como os dedos, riscos, contas, botões, caroços e outros objetos. Mas, essa abordagem intuitiva e experimental deveria ser priorizada apenas na fase inicial do ensino e logo em seguida o professor deveria trabalhar com a linguagem sistemática. De um lado, a orientação sinaliza para a direção indicada pelo método intuitivo e, por outro, procura conservar a linguagem usual da matemática. Nesse sentido, a orientação prescreve uma alteração no método tradicional, mas preserva um dos elementos característicos da vulgata que é a nomenclatura específica da matéria, no sentido proposto por Chervel (1990).
Quanto ao estudo das quatro operações fundamentais, o documento amazonense se insere numa linha metodológica bem mais conservadora no sentido de reforçar que nenhum aluno deveria iniciar a aprendizagem dos números maiores de dez, sem antes dominar na prática e na teoria as operações com os números menores. Uma prática bem tradicional, de longínquas raízes históricas, que consiste em fixar uma rígida separação não somente entre o estudo da quatro operações fundamentais da aritmética, bem como o estudo inicial dos dez algarismos indo-arábicos e somente depois iniciar o estudo dos números de 11 a 20 e assim por diante. Esse entendimento revela uma confusão entre a ordem na qual o saber encontra-se registrado nos textos usuais da escola e os sinuosos caminhos pelos quais o mesmo saber pode ser elaborado. Assim, a recomendação encontrada na fonte amazonense reforçava a importância de garantir o domínio da tabuada com números menor de dez, antes de estudar os números maiores. Iniciar o estudo da aritmética pela contagem e pela apresentação dos primeiros números era uma prática comum na época, como ilustra a Aritmética Elementar Ilustrada, de Antonio Trajano, lançada em 1879 e que adotada oficialmente no Amazonas, entre 1893 a 1899, conforme pesquisa de Souza (2010).
Outro livro escolar que ilustra essa maneira tradicional de iniciar o estudo das operações numéricas é a Segunda Aritmética para Meninos, do autor gaúcho José Theodoro do Souza Lobo, lançada em 1870. Entretanto, ao comprar esta Aritmética com a de Trajano, é possível perceber que este autor se apropriou de indicações do método intuitivo, procurando entrar em sintonia com o discurso do momento. Sua produção foi reconhecida com um prêmio concedido pelo júri da Primeira Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro de 1883, fato este que impulsionou a difusão da obra em diferentes regiões do país. Quanto às estratégias usadas para difundir as obras escolares, cumpre-nos mencionar o parecer elaborado pelo ministro Benjamin Constant que não poupa elogias à obra de Trajano: Li a Aritmética Elementar do Sr. Antônio Trajano, e tenho prazer em declarar que é ela uma das melhores se não a melhor de todas as que conheço destinada a instrução da infância. Essas poucas palavras do ministro foram suficientes para reforçar as qualidades do livro reimpresso até na década de 1960 com a impressionante cifra de 140 edições. Um verdadeiro fenômeno editorial.
Outra orientação registrada no regimento amazonense diz respeito à defesa do ensino do cálculo mental para os alunos da escola primária, a qual encontra-se descrita pelas seguintes palavras: “Convém que o professor exercite diariamente os alunos no cálculo mental subindo dos números simples aos compostos.” A partir das operações mais elementares, realizadas mentalmente, com números menores de dez, os professores eram orientados a explorar o mesmo tipo de cálculo com números maiores, formados por mais de um algarismo. Essa orientação era complementada com o esclarecimento de que o objetivo do ensino do cálculo mental deveria ser aplicado na resolução de problemas simples, explorando quantidades concretas para o aluno, lembrando que os números poderia estar inseridos em pequenas questões da vida comum e da vida doméstica, idéia próxima à noção de contextualização dos conteúdos escolares tal como indicam os atuais parâmetros nacionais para o ensino da matemática.
Elementos de síntese
O final do século XIX marcou o início da difusão do método de ensino intuitivo, nos Estados Unidos, em países da Europa e no Brasil. Ao estudar as implicações desse método no ensino da aritmética elementar, constatamos que um dos maiores desafios da época foi a tentativa de minimizar a persistente presença da memorização inexpressiva no estudo das operações fundamentais e reforçar a importância de uma exploração mais intensa de aspectos intuitivos e experimentais nas práticas e saberes escolares. Assim, o desafio enfrentado pelos professores primários envolvia a superação das velhas práticas cultivada ao longo de quase todo o século XIX. Nas vertentes mais tradicionais das práticas escolares, a memorização resultou numa espécie de sedimentação como uma tática de estudo da matemática. Antes de iniciar o movimento de difusão do método de ensino intuitivo, o então chamado método mnemônico eram indicado nos regulamentos de ensino como caminho pertinente para o estudo das matemáticas escolares, tal como comprova os registros históricos de Primitivo Moacyr (1939).
Para superar as velhas práticas de memorização no estudo da matemática, de acordo com as orientações difundidas pelas reformas da década de 1890, o professor deveria evitar que os alunos decorassem as regras sem compreendê-las. Naquele tempo, a orientação avalizada no discurso oficial para superar a memorização era de que o professor deveria obrigar o aluno a explicar, com suas próprias palavras, o mecanismo das operações, como ilustra o regimento amazonense de 1892. Porém, o tom imperativo dessa determinação era amenizado, dizendo que a orientação deveria ser posta em prática quando os alunos já estivessem práticos. Essa ponderação deixa em aberto a possibilidade dessa prática ser adquirida com o exercício do treino e da repetição.
Um dos documentos anexos ao regimento amazonense de 1892 é um quadro das matérias previstas para as cinco classes do ensino primário. No distrito federal o ensino primário do primeiro grau era previsto com a estrutura de seis classes, distribuídas em três cursos de dois anos cada (elementar, médio e superior). De forma análoga, o ensino primário amazonense estava dividido em três cursos. Entretanto, com a seguinte alteração as três primeiras classes formavam o curso elementar, a quarta classe, o curso médio enquanto que a quinta, o curso superior. No Amazonas, ao contrário do que previa a legislação do Rio de Janeiro, na primeira classe não estava previsto o ensino da aritmética. Em síntese, ao se apropriar do discurso veiculado no centro político do país, os responsáveis pela instrução amazonense fizeram uma simplificação da estrutura concebida para os planos de estudo e uma redução nos conteúdos previstos para o ensino da aritmética.
Ao analisar documentos referentes à educação matemática escolar do Amazonas e no Rio de Janeiro do final do século XIX, foi possível constatar uma valorização diferenciada para a sistematização da linguagem característica dos conteúdos clássicos. De forma articulada com o uso de recursos didáticos materiais, explorando o sentido intuitivo relacionado aos conteúdos matemáticos, as fontes analisadas indicam que os professores, mesmo inserindo objetos materiais manipuláveis no estudo da aritmética, deveriam valorizar a nomenclatura sistemática da disciplina. Ao mesmo tempo em que as orientações indicavam o uso de recursos espontâneos para expandir o sentido dos conteúdos escolares, valoriza-se o ensino da linguagem matemática, um dos elementos da vulgata de uma época.
Outra orientação referente ao ensino da aritmética que aparece no regimento amazonense de 1892 diz respeito ao cálculo mental, a qual estava registrada pelas seguintes palavras: “Convém que o professor exercite diariamente os alunos no cálculo mental subindo dos números simples aos compostos.” As orientações prescritas aos professores consistiam em indicar que os mesmos deveriam partir de operações mais simples, realizadas mentalmente, com número de apenas um algarismo, e passar a explorar o mesmo tipo de cálculo com números formados por mais de um algarismo. Essa orientação pedagógica era complementada, esclarecendo que o cálculo mental versaria ainda sobre a resolução de problemas simples, procurando explorar quantidades concretas para o aluno, lembrando que os números poderiam estar inseridos em pequenas questões da vida doméstica, concepção que, hoje, estaria próxima da noção de contextualização tal como indicam os atuais parâmetros nacionais para o ensino da matemática. Finalmente, cumpre-nos destacar que nas orientações previstas pela reforma Benjamin Constant, a valorização do cálculo mental aparece nas seis classes do ensino primário do 1º grau, com a particularidade de que na 1ª classe do curso elementar figura somente a expressão exercício mental ao invés de cálculo mental.
A comparação entre as orientações prescritas para o ensino da aritmética no Amazonas e no município do Rio de Janeiro, nos primeiros anos da fase republicana, sinaliza a importância de prosseguir os estudos sobre a importância pedagógica atribuída a objetos materiais que permearam a cultura escolar da educação matemática. Em particular, estamos desafiados a melhor compreender, do ponto de vista histórico como o uso do aritmômetro foi defendido no plano prescritivo das orientações públicas para a instrução escolar do final do século XIX. A recomendação do uso desses aparelhos no ensino das operações numéricas aparece nos relatórios da Escola Normal de Niterói, no regimento interno das escolas primárias do distrito federal e ainda no regimento das escolas primárias do Estado do Amazonas. Este aparelho foi usado no ensino escolar de outros países? Quais foram as práticas prescritas para a sua utilização? Mas estas são questões para um outro trabalho concernente à história da educação matemática escolar, possivelmente enriquecida por um estudo histórico comparativo.
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