Cultura Matemática Escolar e Didática

Luiz Carlos Pais
 
A presença da atividade matemática no currículo escolar justifica-se como produção de uma das disciplinas e culturas preservadas ao longo da história da educação. Mas, não basta acreditar na legitimidade dessa tradição sem fazer o exercício da vigilância quanto aos possíveis exageros cometidos na escola. Os professores precisam estar atentos à maneira como a cultura escolar tem sido preservada e usada como instrumento de poder de instituições estranhas à natureza essencial da escola. A partir desse pressuposto, os valores educativos da matemática recebem influência de diferentes instituições, mas sua constituição resulta da história de produção dos educadores e demais pessoas que vivenciam o cotidiano da escola. Livros didáticos, programas de ensino, provas escolares, teses, softwares, programas, parâmetros curriculares e outros objetos trazem parte dessa cultura. Assim, a atividade docente inclui o desafio da produção dessa cultura a partir de materiais vindos das ciências de referências, mas envolvendo a resolução de problemas típicos da escola.

1. Considerações iniciais

Os argumentos usados para justificar o estudo da matemática na escola são vários, mas de certa forma recaem na preservação de uma cultura cuja maneira de produção depende das instituições nas quais os professores e alunos estão inseridos. Não podemos perder de vista as diferentes instituições nas quais se estuda matemática, com objetivos próprios para a faixa etária. As duas etapas da escolaridade fundamental são diferentes, pois do 1º ao 5º ano, sendo ministrados por um único professor ou professora, traz a especificidade do antigo ensino primário, enquanto a etapa do 6º ao 9º ano ainda preserva certas características do primeiro ciclo do antigo ensino secundário. Por outro lado, o atual Ensino Médio complementa a formação do chamado ensino secundário e ainda preserva aspectos de etapa preparatória ao ingresso nos cursos superiores, mesmo que a legislação atual não garanta esse objetivo como uma exclusividade.

Finalmente, outros dois níveis diferentes do saber matemático podem ser destacados em se tratando do ensino universitário e ainda da pesquisa em Matemática Pura. Ao pensar nesses diferentes níveis de determinação do saber matemático, é preciso tratar da especificidade dos objetos culturais com os quais estão envolvidos. Há uma distância considerável entre as práticas e saberes considerados em cada um desses níveis. A superação dessa distância e um justo equilíbrio de poder em termos da transposição didática entre as instituições dependem de vários fatores, como a formação de professores, redefinição de métodos e estratégias de ensino, mas depende, sobretudo, das condições da própria instituição na qual o estudo está sendo realizado.


O interesse em estudar os objetivos associados aos saberes da educação matemática escolar nasce da constatação de sua presença ao longo de toda a escolaridade básica e também da preocupação em justificar a importância dos conteúdos ensinados. Além da presença no currículo escolar, a matemática é um conhecimento extensivamente usado como instrumento de seleção na realização de concursos. Quais são os motivos pelos quais se faz normalmente o uso do saber matemático como instrumento de seleção? Daí, a importância de pensar nas razões pelas quais o seu ensino está fortemente presente na educação escolar. Essa presença tem sido justificada, inicialmente, pela possibilidade da matemática contribuir no desenvolvimento do raciocínio lógico e na capacidade de abstração do aluno. Entretanto, essa primeira resposta deve ser aprofundada, explicitando o sentido atribuído aos diversos tipos de conteúdos e as referências a partir das quais seus valores são concebidos.

2. Práticas e saberes escolares

A educação escolar é uma prática social compartilhada por um coletivo ligado à instituição na qual ela ocorre. Não podemos perder as referências de ligação entre o projeto institucional e as práticas realizadas pelos professores e alunos. É por meio dos métodos adotados que se compreende a maneira de conduzir o trabalho no plano de cada instituição. Entretanto, como a temática da metodologia geralmente não é abordada nos cursos de formação inicial de professores é muito importante refletir sobre a maneira como os cursos de graduação são praticados.

Os efetivos resultados da prática educativa escolar dependem, entre outros fatores, da interatividade estabelecida entre professores, alunos e os demais personagens do sistema didático. Daí decorre a importância de articular, de forma integrada, estratégias, recursos, conteúdos, objetivos e as demais componentes que interferem na condução da prática de ensino da matemática. De onde decorre a necessidade de cultivar um método e zelar pela adequação dos procedimentos adotados. A valorização da educação matemática enriquece quando passamos a interpretá-la mais em termos do que existe em estado de latência do que das hipotéticas soluções propostas pela adoção de um modelo ou de uma seqüência linear de ações. A cognição não flui com a mesma linearidade com que o texto científico é publicado, pelo contrário, a aprendizagem passa pelo desafio de construir articulações diversificadas que possam aproximar, ao invés de separar, as dicotomias usuais da matemática, não dando prioridade às estratégias de dedução nem muito menos priorizar os procedimentos de indução. Particularizar e generalizar enunciados são ações que devem ser sempre relacionadas, não escolhendo uma via de direção única.

A elaboração de conhecimentos nesta linha se faz por uma dinâmica de conflitos e evoluções, através das quais são consolidadas as bases do método. É com essa visão que abordamos a aprendizagem e também a elaboração de referências teóricas e metodológicas para a prática pedagógica. Destacamos a necessidade de sempre reforçar as articulações entre conteúdos, métodos e os objetivos. Conceber esses aspectos entrelaçados uns aos outros fortalece a prática pedagógica, pois envolve uma constante reflexão-ação sobre a coerência esperada entre essas dimensões. Para se ter resultados satisfatórios é preciso harmonizar objetivos, métodos e conteúdos e projetar esses elementos na elaboração de atividades matemáticas mais significativas. A concepção integrada desses elementos amplia dos resultados do trabalho docente, além de evidenciar a importância dos objetivos. Esta maneira de entender os valores educativos valoriza a posição do professor na coordenação das atividades de ensino.

Ao adotar essas idéias, a educação matemática passa a ser interpretada a partir das articulações entre valores, métodos e conteúdos, os quais são as três dimensões mais perceptíveis do sistema didático. A adoção de uma estratégia revela uma ponta desse entrelaçamento. Na análise desta questão, uma das articulações refere-se ao vínculo estabelecido entre as finalidades do ensino da matemática e aos objetivos do projeto educacional. É a partir de uma concepção mais ampla de educação, envolvendo a defesa da cidadania que se elabora uma proposta de educação. A propósito dessa coerência cumpre-nos destacar que se trata de um processo evolutivo, cuja vitalidade depende do engajamento do professor na sua própria formação.

É preciso lembrar ainda que nenhum saber isolado tem significado por si mesmo, depende de várias condições e resultam da convergência integrada das forças de um agenciamento. De forma análoga, todo conhecimento mais localizado também resulta da superação de obstáculos que extrapolam o pano da individualidade. Daí, a importância de educar em termos das relações entre o virtual e o atual. Em particular, o significado da cultura científica escolar forma-se no contexto de uma comunidade, regida por paradigmas em seus diversos níveis, como resultado de uma trama costurada entre muitas linhas de articulação e pelo combate das linhas de fuga. Mas, não se deve isolar significado social, político, econômico ou histórico dos saberes, porque o pensamento humano não é uma instância dividida em compartimentos. Em decorrência, o significado do saber escolar exige este mesmo entendimento e esta é uma das condições para a expansão dos resultados da educação.

Tendo em vista a especificidade da educação básica é preciso que os conteúdos matemáticos não estejam isolados um dos outros. E para tratar desse desafio os parâmetros curriculares incentivam o professor a contextualizar os saberes escolares da matemática ou mais amplamente a articular tudo o que possa ser articulado para que a educação escolar não perda seu significado. De onde vem a necessidade de construir linhas de articulação entre os saberes ensinados. A articulação exige ainda uma explicitação de vínculos do saber ensinado com situações do cotidiano. Além do mais, para desenvolver o significado do saber, o professor deve levar em conta a sua contextualização. Em suma, os valores culturais da educação matemática formam uma base sobre a qual assentam-se as práticas e finalmente os saberes associados. Para analisar esse tema na educação matemática é preciso destacar relações entre seus conteúdos e os aspectos científicos, utilitários, estéticos e formativos.

3. Objetos científicos e escolares

Os objetos culturais da matemática escolar são inspirados nas fontes dos saberes científicos, mas não podem ser vistos pelos professores apenas como uma transferência ou uma passagem das instituições acadêmicas para as instituições escolares. Os saberes matemáticos e suas práticas associadas foram construídos pela convergência da produção de diversas civilizações, são criados e recriados pelos conflitos de uma longa evolução. A produção dessa pesquisa é uma das fontes de influência da transposição didática. Seus resultados fornecem as bases para o desenvolvimento de outras pesquisas e também para a produção tecnológica, através de uma rede de competências, incluindo uma diversidade de áreas e especialidades. Os valores culturais científicos justificam-se em face do apoio fornecido ao desenvolvimento de várias tecnologias. Esse entrelaçamento com a produção tecnológica fornece à matemática uma importância fundamental, juntamente com as demais áreas científicas. Quando se trata da matemática pura, seus resultados podem não ter uma aplicação imediata, mas mesmo assim tem sua importância garantida pela valorização de uma cultura científica.

Como nas demais áreas, a matemática tem uma identidade histórica, expressa por uma produção preservada pelo envolvimento da respectiva comunidade. Essa comunidade funciona como fonte de influência na transposição didática, não são somente no que diz respeito aos valores científicos que justificam a existência da disciplina escolar, mas há outros argumentos usados em defesa do ensino da matemática. Isto não significa que haja consenso entre as fontes de influência na constituição da cultura escolar, pois há um eterno ciclo de aproximações e conflitos entre as diversas tendências.

4. Objetivos utilitários

Os objetivos utilitários da cultura matemática escolar foram produzidos na esteira história da educação. São aqueles decorrentes da possibilidade de ocorrer uma utilização direta de seus conceitos e teorias, quer seja em situações do cotidiano, no contexto de uma aplicação técnica ou científica. Entretanto, atribuir um significado objetivo para a utilidade não é tarefa evidente, pois o que é útil para uma pessoa pode não o ser para outra. Essa reflexão em torno da utilidade aparece também na diferenciação entre o conhecimento e o saber científico, conforme interpretação proposta na linha da didática francesa. Para diferenciar conhecimento e saber, autores dessa linha evidenciam o aspecto da utilidade e remete a questão para a análise das situações didáticas envolvidas em cada caso. Nessa análise o saber aparece associado mais ao problema da validação, que no caso do saber matemático trata-se do raciocínio dedutivo.

O conhecimento aparece vinculado ao plano experimental, envolvendo ações com as quais a pessoa tem contato direto. Dessa forma, para dar sentido aos valores utilitários, é preciso remeter a um contexto, considerando interesses e necessidades dos envolvidos. As operações envolvidas em uma aplicação utilitária do saber matemático são realizadas sem a necessidade de justificar as fórmulas empregadas. Os valores utilitários caracterizam-se por esse uso imediato. Quando os conteúdos são aplicados para resolver tais problemas, não é preciso justificar o raciocínio implícito. São valores que dizem respeito ao cotidiano e por isso sua importância é mais perceptível, em vista os resultados imediatos. Embora haja, no senso comum, uma tendência de realçar a importância prática da matemática, a função educativa da escola não deve se resumir a essa visão pragmática. Para atender aos objetivos utilitários não podemos perder de vista o nível educacional visado, embora isso não signifique restringir o estudo escolar ao nível dos interesses individuais.

Entretanto, contemplar os valores utilitários não significa restringir a vida escolar ao plano da utilidade imediata, o que é um equívoco do mesmo porte que priorizar uma abordagem teórica e abstrata. A opção em esboçar uma concepção de ensino da matemática pela via da multiplicidade leva-nos a fazer uma interpretação articulada entre valores educativos, científicos e utilitários, além de entrelaçá-los com aspectos estéticos, informativos, formativos, lúdicos, entre outros. É a partir dessa diversidade de referências que a matemática escolar pode ter seu significado expandido em função das próprias diferenças inerentes aos educandos e aos professores. O inconveniente seria centralizar a prática educativa apenas em torno do aspecto científico, como se a aprendizagem de conceitos pudesse, por si mesmo, expressar a totalidade dos objetivos escolares.

5. Estética nas culturas escolares

Não é usual ouvir falar de valores estéticos da matemática, pelo menos nas práticas pedagógicas mais tradicionais, onde predomina a idéia de que a objetividade é incompatível com o sentido subjetivo da beleza. Mas, como toda unicidade é composta por multiplicidade de componentes, esta não parece ser uma concepção adequada para expandir o significado da educação. Os trabalhos escolares devem envolver várias competências, entre as quais a objetividade das ciências e outras formas de expressão de conhecimento. Afinal, há uma ligação entre a importância dos modelos e dos espetáculos artísticos, cada um estabelecendo sua própria linha de produção. Uma das maneiras de trabalhar com os valores estéticos da geometria é estender os laços de proximidade da matemática com a educação artística. Essa abordagem torna-se necessária para evitar a fragmentação precoce do conhecimento.

As atividades geométricas envolvendo simetria têm uma dimensão estética e o trabalho com essa noção é articulável com as próprias figuras geométricas. No plano do desenho, o eixo de simetria pode ser associado a uma reta que divide a figura em duas partes iguais. A identificação dos eixos de simetria pode ser realizada de diversas formas, passando por atividades experimentais, como o uso de dobraduras. Em um primeiro momento, a própria visualização da figura pode, por vezes, permitir o reconhecimento de eixos de uma simetria. Ainda nessa linha de valorização dos aspectos estéticos está o conceito de perspectiva, cuja finalidade é realçar a terceira dimensão de um objeto por meio de um desenho, com várias possibilidades de aplicação. Trata-se de um conhecimento organizado teoricamente a partir do período renascentista, com origem na fronteira da arte, arquitetura e matemática. Por ser uma noção importante no estudo da geometria, é preciso levar o aluno a realizar desenhos de objetos tridimensionais, bem como a interpretar informações geométricas contidas em desenhos dessa natureza, articulando leitura, produção da representação e conseqüentemente a formação de conceitos.

Os valores culturais formativos da matemática resultam da convergência não ordenada de todos os demais valores que acabamos de comentar, não esperando precedência de algum deles em relação aos outros. Como resultado de uma expressão subversiva, um aluno pode se deixar seduzir pela perspectiva e vivencia a mais autêntica motivação interna para vir a ser um arquiteto. Da mesma forma como poderão convergir também interesses pelos aspectos formais da matemática. Não há determinismo em relação aos resultados dos valores formativos da matemática, pois a cidadania não se reduz à influência de uma única disciplina.

Os valores formativos da matemática guardam uma proximidade com aqueles das demais disciplinas escolares, pois todas visam o desenvolvimento do aluno, ao mesmo tempo de apresenta sua especificidade no que se refere ao tipo de raciocínio predominante em sua lógica estrutural. Levando em consideração que esses valores justificam, em última instância, a definição dos objetivos visados pela disciplina, compete-nos realçar quais são as tendências contemporâneas quanto ao compromisso comum de todas as disciplinas. A expansão do raciocínio e outras competências associadas é aplicável em diversas situações do cotidiano, tais como o desenvolvimento da escrita e da leitura, além de contribuir na formalização do saber escolar e abrir novos horizontes de compreensão das ciências e do mundo no qual o educando está inserido. Estas são justificativas para a defesa da presença da matemática na educação. Em particular, ela contribui para desenvolver uma linguagem simbólica. O rigor característico da ciência contribui na formação de um tipo diferenciado de raciocínio na medida que permite comparações com outros tipos de conhecimento.


6. Atividade

Faça uma pesquisa nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática, para os anos finais do Ensino Secundário e identifique os principais objetivos dos seguintes domínios de estudo da disciplina de Matemática: Álgebra, Aritmética, Geometria, Medidas, Combinatória, Probabilidade e Estatística. Faça um texto descrevendo sobre esses objetivos e exemplificando através de atividades presentes em livros didáticos.

7.Referências

BOLEA, Pilar. El proceso de algebrización de organizaciones matemáticas escolares. Tese de doutorado. Universidade de Zaragosa: 2002.
CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Porto Alegre: Teoria e Educação, n. 2, p. 177-229, 1990.
CHERVEL, André. La Culture Scolaire. Paris, Editora Belin, 1990.
CHEVALLARD, Yves. Analyse des pratiques enseignantes et didactique des mathematiques: a abordagem antropologique. In Atas da Universidade de Verão ralizada na cidade Rochelle. Clermont-Ferrand: Editora do IREM, 1998.
CHEVALLARD, Yves. La Transposition Didactique. Du Savoir savant ausavoir enseigné. Paris: Pensée Souvage, 1991.
CHEVALLARD, Yves. Organiser l’étude Ecologia et Regulation, Atas da 11ª Escola de Verão de Didática da Matemática, La Pensée Sauvage: 2002.
VALENTE, Wagner Rodrigues. Uma história da matemática escolar no Brasil: 1730-1930. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007.