Aritmética no século XIX
Luiz Carlos Pais
Luiz Carlos Pais
Este artigo aborda a temática da história da educação matemática brasileira, definindo como objetivo a tarefa de pesquisar a produção e a circulação da obra didática intitulada Aritmética Elementar Ilustrada, de Antônio Bandeira Trajano, lançada em 1879. Sucessivas reimpressões dessa obra circularam pelo país por mais de oito décadas, atingindo a 140ª edição, em 1964, pela Livraria Francisco Alves. Para realizar esse objetivo foram também consultados programas de ensino, relatórios ministeriais e outros textos didáticos do mesmo período. Essas fontes foram analisadas a partir dos conceitos articulados de disciplinas e culturas escolares, propostos por André Chervel, assim como a noção apropriação, proposta por Roger Chartier, visando articular a referida obra didática com a produção de outros autores da mesma época. Foi possível constatar a existência de uma maneira metodológica particular, produzida pelo autor, inserida no vácuo de um momento de expansão inicial da educação primária escolar brasileira. As práticas sugeridas pelo autor caracterizam-se como uma das primeiras tentativas de aplicar, no contexto no ensino primário da matemática do Brasil, o método de ensino intuitivo, tema presente no debate pedagógico da época. Essa visão metodológica estava inserida em uma clara posição pragmática conduzida com certo zelo no tratamento dos conceitos matemáticos relativos aos conteúdos da aritmética elementar.
Palavras-Chave: Antonio Trajano. Ensino da Aritmética. História do livro didático. Método intuitivo.
HISTORY OF TEACHING ARITHMETIC IN THE END OF THE NINETEENTH CENTURY: ANALYSIS OF THE WORK OF ANTONIO BANDEIRA TRAJANO
ABSTRACT
This article describes the theme of the History of Brazilian Mathematics Education, aimed at defining the task of researching the production and circulation of textbook entitled Aritmética Elementar Ilustrada, of Antonio Bandeira Trajano, published in 1879, successive reprints of this work circulated around the country for more eight decades, reaching the 140th edition in 1964 by Livraria Francisco Alves. To accomplish this goal were also consulted educational programs, ministerial reports and other textbooks of the same period. These sources were analyzed from the articulated concepts of disciplines and school cultures, proposed by André Chervel, as well as the notion appropriation, proposed by Roger Chartier, aiming to articulate such textbook with the production of other authors from the same time. It was possible to observe the existence of a particular methodological way, produced by the author, inserted into the vacuum of a moment of initial expansion of Brazilian primary school education. The practices suggested by the author is characterized as one of the first attempts to apply in the context of mathematics in primary education in Brazil, the intuitive method of teaching, this time in the pedagogical debate topic. This methodological vision was inserted in a clear pragmatic position conducted with certain zeal in the treatment of mathematical concepts related to the contents of elementary arithmetic.
Keywords: Antonio Trajano. Teaching arithmetic. History textbook. Intuitive method.
Considerações iniciais
Este artigo aborda aspectos da história da educação matemática brasileira através da análise de um livro didático de aritmética cuja difusão no ensino primário levou à publicação de mais de 140 edições no transcorrer de oito décadas. Trata-se da Aritmética Elementar Ilustrada, de Antonio Bandeira Trajano, publicada em 1879. O expressivo número de edições foi destacado em trabalhos que tratam da temática do livro didático, tais como Pfromm Neto (1974), Bittencourt (1993) e Valente (1999), Correa (2006), entre outros. A histórica obra de José Ricardo Pires de Almeida, A instrução pública no Brasil (1500-1889), publicada no último ano do Império já fazia referências a esse texto didático de Trajano. Por esse motivo, sua difusão resultou da convergência de condições, interligando o cenário mais amplo da história da educação e o desafio de modernização das práticas para de atender o ensino primário popular. Em seguida, a importância histórica dessa produção insere-se na proposta de procedimentos para atender aos aspectos específicos do ensino da matemática. A intenção deste artigo é seguir essa linha de raciocínio, procurando compreender a articulação entre o domínio das especificidades da disciplina e os desafios mais amplos do movimento educacional no qual a referida obra foi produzida e difundida.
A pesquisa aqui relatada parte do pressuposto que a apropriação do autor envolve diferentes elementos das disciplinas escolares. Por esse motivo, a decisão de aplicar noções propostas por Chervel (1998) e Chartier (1991), as quais se complementam para permitir uma melhor localização da produção do texto didático no seu devido tempo e espaço. Ao defender esse princípio, entendemos que nenhuma instituição externa à vivência da escola pode determinar o cotidiano das práticas disciplinares.
Não há como avalizar a existência de uma determinação externa capaz de subjugar a prática docente. Por esse motivo, não podemos perder de vista que para cada estratégia institucional existem várias táticas do domínio da estrita produção docente. (Certeau, 2007) Com base nesse entendimento, indagamos a respeito das condições que sustentaram o sucesso editorial da obra analisada. Para levantar elementos de resposta a essas indagações, relacionamos episódios da história da educação com elementos concernentes às práticas prescritas na produção didática de Trajano.
Três décadas após o seu lançamento, foi publicada a sua 60ª edição. Um best-seller didático, desde as décadas iniciais do século XX e que ainda despertaria o interesse dos editores para comercializar outras 80 edições. Um extrato do catálogo da Livraria Francisco Alves, de 1920, anunciava a venda da 89ª edição e segundo informações de Correa (2006), a 93ª edição apareceu em 1923. Seguindo essa trajetória, a 136ª edição foi lançada em 1958, de acordo com dados revelados por Bittencourt (1993) e confirmados por Valente (1999). Uma consulta feita em sites de lojas de livros usados, realizada recentemente, revela a existência da 140ª edição, publicada em 1964. Esses números sustentam a hipótese de que essa produção está entre os didáticos brasileiros com maior número de edições. Suposição levantada por Pfromm Neto (1974, p. 17), ao afirmarem: “seguramente nenhum livro didático de matemática teve, no Brasil, vida mais longa que a Aritmética Elementar Ilustrada de Antonio Trajano.”
A pesquisa de edições de livros didáticos envolve a questão da autoria que, muitas vezes, pode não ser assumida explicitamente pela instituição patrocinadora. (Choppin, 2004) Nesse domínio, não podemos fazer conclusões apressadas porque livros didáticos tais como os produzidos pelas estratégias institucionais dos Irmãos de Instrução Cristã, conhecidos pela sigla FIC, adotados em muitas instituições educacionais católicas brasileiras, no período focalizado neste artigo, nem sempre traziam o número da edição e nem mesmo o nome do autor. Por esse motivo, ao iniciar esta pesquisa, partimos do princípio de que o fenômeno das sucessivas reedições de livros didáticos resulta da convergência de fatores que vão muito além dos aspectos internos à disciplina escolar. No caso da obra Trajano, além das suas qualidades didáticas é preciso registrar que o impulso inicial de sua difusão decorreu da premiação que lhe foi concedida pelo júri da Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro de 1883. Porém, esse histórico texto de aritmética atravessou os últimos anos do período monárquico, foi usado no período da Velha República, manteve um espaço próprio nos tempos da Escola Nova e ainda foi usada no início do Movimento da Matemática Moderna.
Entre os recursos usados na educação matemática destacam-se os livros didáticos que têm um estatuto diferenciado em função da ciência de referência. Aspectos epistemológicos influenciam a orientação das práticas didáticas, tais como a valorização da formalidade, do rigor e da objetividade. Esses elementos são adotados como instrumentos para inculcar condutas do projeto educacional em questão as quais as disciplinas estão encarregadas de transmitir no espaço da sala de aula. Ao focalizar as práticas de ensino da matemática, consideramos pertinente a concepção proposta por Julia (2001) para a cultura escolar, admitindo a existência simultânea de normas para transmitir conhecimentos e para inculcar condutas no processo educativo dos alunos.
Embora as relações estabelecidas entre conhecimentos específicos e valores subjacentes às práticas escolares nem sempre sejam perceptíveis no cotidiano da escola, no caso da educação matemática entra em cena aspectos pertinentes à dimensão epistemológica da disciplina, tais como rigor, abstração, generalidade, entre outros. Por outro lado, para compreender a natureza da produção escolar elaborada pelas disciplinas escolares, na linha proposta por Chervel (1990), é preciso ponderar que os objetos culturais, entre eles os livros didáticos, são avaliados, divulgados e usados na esteira do agenciamento institucional, do qual participa a escola, através do movimento característico que entrelaça produção, divulgação e apropriação que passa necessariamente pelo domínio da atividade docente. No que diz respeito à concepção e ao comando das práticas educativas, a escola tem uma relativa autonomia. Como acontece com toda instituição, a tensão gerada pelas relações de poder exige disponibilidade para manter um permanente estado de negociação com os demais agenciamentos atuantes no entorno da escola. Por esse motivo a autonomia da prática docente não é absoluta, nem mesmo a adoção de um livro didático é uma escolha livre de diferentes esferas de avaliação.
Trajetória do autor e sua obra
Antonio Bandeira Trajano nasceu em Portugal, na cidade de Guimarães, em 10 de agosto de 1843. Cursou o ensino primário em sua terra natal, e emigrou para o Brasil, em 1857. Trabalhou em casas comerciais de São Paulo, antes de iniciar sua trajetória de educador, autor e pastor evangélico. Faleceu em 1921, depois de exercer, por mais 15 anos, o cargo de pastor da Igreja Presbiteriana do Rio Janeiro. Desse modo, sua biografia está inserida na história dessa denominação religiosa não somente pelo fato de ter sido o primeiro pastor nacional, como também na história dos livros didáticos de matemática produzidos no Brasil. Entre os textos que produziu, estão: Aritmética Primária; Aritmética Elementar Ilustrada; Aritmética Progressiva; Chave da Aritmética Progressiva; Álgebra Elementar e Chave da Álgebra, de acordo o catálogo da Livraria Francisco Alves. Embora haja referências a títulos próximos desses, tais como Nova Chave da Aritmética Progressiva ou Nova Chave da Álgebra Elementar, resultantes de outras esferas de apropriação de suas obras, no que diz respeito aos direitos autorais terem sido objeto de transação comercial por partes das editoras.
Desde quando era aluno do Seminário, se dedicou ao magistério, revelando desde então vocação para o ensino da matemática. Seus primeiros mestres de teologia eram pastores norte-americanos, de quem teria recebido influência da visão pragmática. Em outro livro didático de sua autoria destinado ao ensino elementar de Álgebra, Antonio Trajano não economiza elogios ao que chama de modernismo do ensino praticado nos Estados Unidos. Esse gosto pelas questões práticas e imediatas do ensino foi então originado nessa fase inicial de sua formação religiosa e pedagógica. Como pastor evangélico, Trajano chegou a presidir o mais alto órgão deliberativo da instituição a qual estava vinculado. Outro aspecto relevante foi o fato da Primeira Aritmética Ilustrada ter sido produzida como resultado de mais de uma década de experiência no magistério, quando o autor tinha então 35 anos de idade.
De acordo com Mattos (2004), quando Trajano chegou ao Brasil, estava iniciando a expansão das religiões protestantes, com implicações na área da educação em vista da abertura de novas instituições confessionais, defensoras de concepções mais pragmáticas em relação às práticas escolares tradicionais naquele contexto. Enquanto realizava o curso de teologia, Trajano ministrava aulas de matemática em uma pequena escola primária anexa ao seminário. Esses foram os momentos iniciais de sua prática pedagógica. Desde essa época sentia falta de textos adequados para ministrar as aulas elementares e por motivo teria desenvolvido o hábito de produzir seus próprios textos, que resultaram de sua estrita apropriação em função do quadro de referências no qual a disciplina ministrada estava inserida. (Chervel, 1990)
É importante delinear o cenário no qual o autor estava envolvido, porque a produção da prática docente, incluindo a versão prescritiva, está em um quadro de referência no qual se constitui uma cultura escolar. Esses vínculos entre a educação da matemática e as referências institucionais da disciplina, no caso focalizado neste trabalho, estavam baseados em uma visão pragmática, além da influência das posições positivistas da matemática como ciência de referência. Esses aspectos epistemológicos e didáticos transparecem, com relativa clareza, no conjunto de exercícios priorizados pelo autor para conduzir o ensino da aritmética. Afinal, a cultura escolar está imbuída desse vertente de inculcar na consciência do aluno uma prática e um conhecimento revestidos de uma visão ideológica. (Julia, 2001).
Nesse sentido, a obra de Trajano permite perceber a ligação existente em método de ensino, conteúdos disciplinares e opção por um caminho filosófico. Por esse motivo, como expressa Chervel (1998), a disciplina escolar e as práticas associadas resultam da relação entre a produção docente e as condições ditadas pela sociedade. Assim, ao analisar as práticas sistematizadas na Aritmética Elementar Ilustrada, não podemos menosprezar o peso da visão pragmática recebida pelo autor em sua formação religiosa.
As condições acima destacadas devem ser então remetidas às últimas décadas do século XIX, em sintonia com os grandes temas educacionais da época, quando ocorreu uma convergência das relações de influência na recomendação da obra de Trajano. Quando encerrava balanço educacional do Império, no momento inicial da discussão sobre a adoção do método de ensino intuitivo como uma proposta redentora das mazelas até então acumuladas, a obra aqui analisada surge como alternativa inovadora para aquele momento, moldada pelo viés ideológico do pragmatismo na qual o autor estava inserido. Ao realizar essa leitura, o desafio é não perder de vista as condições do cenário histórico, caracterizado pelo advento das idéias republicanas, pela disputa entre liberais, monarquistas e positivistas.
O livro didático de matemática é um recurso cuja especificidade deve ser considerada para entender melhor o tripé destacado por Chervel (1990), ao conceituar disciplina escolar, destacando sua gênese, função social e efetiva funcionalidade. Por esse motivo, trata-se de um instrumento mediador entre as propostas genéricas de um projeto educacional e o plano das especificidades dos conteúdos ensinados, instância de produção quase direta do professor. Desse modo, a análise desse objeto da cultura escolar destaca a componente da formação docente e os vínculos com a política educacional, nem sempre havendo convergência dos interesses existentes em torno dele. Esse quadro de referência nos leva a indagar pelas funções potenciais atribuídas ao livro didático produzido pelo renomado pastor presbiteriano em consonância com seu tempo próprio e como contexto social por ele vivenciado.
Concebido como fonte de referência para validar o saber escolar, por alguns setores institucionais, mas, podendo ser também, para outros, um guia para conduzir as rotinas repetitivas da sala de aula ou apenas um objeto comercial. Assim, como existem diferentes instituições que lançam suas linhas de poder sobre esse objeto, devemos estar vigilantes para não incorrer na confusão instalada em decorrência dessas diferentes posições. Nessa linha de raciocínio, ao descrever a noção de cultura escolar, Chervel (1991) observa a particularidade de certas disciplinas na maneira como o texto didático é valorizado como instrumento de registro dos conteúdos. Seguindo essa proposição, na educação matemática a valorização do texto didático desempenha um papel na formalização das definições, axiomas, teoremas, problemas típicos, procedimentos preservados na esteira dos domínios de estudo transmitidos por meio das práticas cultivadas pelas instituições escolares.
A especificidade educacional da matemática leva à questão da formação de professores e o papel do livro didático na condução do trabalho docente. São duas dimensões interligadas que devem ser levadas em consideração ao analisar os diferentes tipos de livros didáticos disponíveis nas escolas brasileiras. Por esse motivo, ao usar livros didáticos como fonte de pesquisa, indagamos a propósito das características desse recurso impresso em função de sua utilização por um educador profissional capaz de assumir pelo menos parte da sistematização prevista na cultura escolar.
Nesse sentido, o livro didático concebido como fonte de dados de pesquisa, sintetiza diferentes dimensões da prática educativa. Por esse motivo, no transcorrer dos últimos anos vem crescendo o interesse por esse tipo de fonte de pesquisa educacional. Em parte, esse interesse decorre da expansão das políticas públicas para a análise, compra e distribuição de livros didáticos para a rede pública, através do Programa Nacional do Livro Didático. Um dos objetivos desse programa é oferecer informações para servir de apoio ao processo de ensino e aprendizagem. Essa avaliação vem sendo realizada há cerca de uma década e serve de referência para a aquisição e distribuição do material às escolas públicas. Avaliação esta feita em parceria com universidades públicas e conduzida por parâmetros indicados pelas áreas relacionadas às disciplinas escolares.
Chervel (1990) observa a especificidade de cada disciplina no que diz respeito ao destaque de certos aspectos particulares da cultura escolar. Nesse sentido, na educação matemática o uso do texto didático, em função da vertente pedagógica na qual o professor está inserido, pode assumir um papel de fonte de referência na formalização das características do saber matemático, objetividade, generalidade, abstração, rigor, entre outras. Assim, ao considerar a especificidade de cada área, percebemos os diferentes estatutos que o livro didático pode assumir na condução do trabalho docente.
A funcionalidade do texto didático aqui analisado estava amparada pela convergência de interesses pragmáticos, pela difusão inicial da instrução popular, pela valorização do método intuitivo e pela demanda existente no campo das instituições escolares particulares laicas ou pelo menos discordantes das estratégias até então predominantes nas escolas católicas. Trata-se de fazer articulações para visualizar as posições assumidas pelo autor em sintonia com suas posições institucionais, as quais repercutem na maneira de conceber as práticas. Ao vasculhar traços históricos de uma disciplina, é preciso fazer esse tipo de leitura para compreender a dupla via das práticas: uma de cunho didático e a outra ligada ao domínio epistemológico das ciências de referências.
A realização desse tipo de leitura é desafiante porque funciona como a montagem de um grande quebra-cabeça, mas é também gratificante por permitir desvelar tramas existentes na rede de instituições na qual a escola se faz presente. Para isso os traços coletados revelam o lugar do autor e da instituição no panorama que proporcionou sucesso editorial da obra, sobretudo, na fase inicial de seu lançamento. Entretanto, no caso da nossa pesquisa, trata-se de um autor que exerceu uma influência considerável na orientação das práticas da educação matemática, muito além do seu próprio tempo.
Método de ensino intuitivo
O ano de lançamento da Aritmética Elementar Ilustrada (1879) coincide com a assinatura do decreto assinado pelo Ministro Leôncio de Carvalho, propondo uma reforma no ensino primário e secundário no município do Rio de Janeiro. Embora houvesse essa restrição na abrangência legal da reforma, este decreto contém parágrafos cuja aplicação envolvia dados educacionais nas províncias, além de considerar a influência exercida pelas orientações da corte nas províncias. Essa legislação, em relação à Reforma Couto Ferraz (1854), avançou em alguns pontos, tal como a eliminação da proibição do acesso dos escravos e seus descendentes à escola pública, mas a maioria das propostas nela contidas não saiu do papel. De modo geral, a instrução pública do século XIX esteve voltada para a formação das elites através da preparação para o ingresso no ensino superior. Somente nas últimas décadas é que ocorrem as primeiras ideias de constituir um sistema nacional de educação.
Entre as determinações prescritas na reforma Leôncio Carvalho estava a oficialização do ensino intuitivo, considerado estratégico para modernizar as práticas então predominantes, marcadas pelo exercício da cópia, da repetição e da memorização. Para contemplar esse ideal, os didáticos deveriam conter abordagens diferentes para superar a visão instituída pelas práticas mais tradicionais. Mais precisamente, o decreto previa para o currículo primário a existência da disciplina noções de coisas, expressão usada para identificar o ensino intuitivo no caso das ciências e da matemática. Desse modo, o ideário educacional no qual a obra foi produzida estava inserido no quadro de referência defendido por Calkins (1886). Um dos princípios defendidos por este autor consistia em apresentar ao menino antes dos vocábulos as coisas, antes dos nomes as ideias. No caso do ensino da aritmética, diversos autores dessa época passaram então a recorrer à estratégia de ilustrar os livros didáticos para atender a referida abordagem.
Ao definir o currículo previsto na formação de professores primários nas escolas normais, a reforma Leôncio de Carvalho traz outra referência ao método intuitivo, prevendo a existência da disciplina Pratica de ensino intuitivo e lições de coisas. Em outras palavras, a orientação pedagógica da época de Trajano consistia em explorar a dimensão sensitiva para conduzir o ensino primário. O desafio era contemplar essa orientação em sintonia com os conteúdos previstos para o ensino da Aritmética. Implícita à defesa do método intuitivo estava o compromisso de se apropriar de uma proposta que pudesse corresponder ao ideal de modernizar o ensino. Por esse motivo, no debate educacional da última década do Império estava em pauta o desafio de buscar inovações pedagógicas para acelerar a instrução primária para as classes populares.
Associada à questão da expansão da oferta da instrução pública estava o desafio de formação de professores primários em número suficiente para atender o aumento da abertura de escolas. As escolas normais, criadas a partir de 1834, até o final do período imperial não tinham ainda conseguido consolidar esse objetivo. No ensino da aritmética esse desafio de modernização envolvia superar as velhas práticas da repetição, como ilustram livros da época, contendo milhares de exercícios desvinculados de qualquer quadro de referência social ou cultural.
Diante dessa busca por novas alternativas metodológicas, a obra de Trajano foi premiada na Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro, realizada em 1883. Esta premiação levou-nos procurar olhar, com mais pontualidade, a maneira como os princípios do método intuitivo foram apropriados pelo autor para expor sua versão didática para o ensino da Aritmética. Nesse sentido, a obra analisada sintetiza traços inovadores no sentido do uso de ilustrações, tal como era previsto para o ensino intuitivo, mas também propondo problemas mais próximos da realidade dos alunos, avalizados por uma visão mais pragmática. Ao analisar esses aspectos em outros livros da época, percebemos que a obra de Trajano diferencia por uma maior valorização da dimensão experimental e sensitiva no ensino da matemática.
Entretanto, essa maneira de conceber a educação matemática escolar, segundo nosso ponto de vista, não supera a visão instituída pela vulgata tradicional. Pelo contrário, passa a coabitar com ela no contexto mais amplo das diferentes maneiras de conceber as práticas educativas escolares. A proposta didática concebida por Antonio Trajano para orientar o ensino da aritmética tem vida longa na educação matemática brasileira. Sua obra iniciada no final da década de 1870; atravessa a reforma positivista de Benjamim Constant, continua sendo adotada na Velha República, na Era Vargas e continua sendo impressa e comercializada até meados da década de 1960.
Ao longo dessa trajetória, a criação dos Grupos Escolares nos primeiros anos da República representou um momento importante no sentido de materializar os primeiros passos rumo a uma expansão do sistema de ensino para atender um número maior de alunos. Mesmo que tenha sido usada apenas por parte da sociedade que tinha acesso à educação escolar, o sucesso da obra vai muito além do discurso veiculado nas últimas décadas do século XIX. Nesse sentido, a partir da proposta didática compartilhada por Trajano, verifica-se nesse momento da história da educação matemática a existência de alguns traços de uma nova proposta pedagógica para o ensino da aritmética, baseado no início da diversificação da linguagem, no uso de ilustrações gráficas como recurso de comunicação, com a proposição de problemas envolvendo situações mais próximas da realidade cotidiana dos alunos.
Avaliações da obra didática
Para compreender a trajetória da Aritmética escrita por Antonio Trajano indagamos até que ponto as idéias materializadas nas páginas do texto foram avalizadas pelos órgãos públicos e suas comissões encarregadas em aprovar livros didáticos e recomendá-los para as escolas públicas. Quais instituições participaram do agenciamento de influências na divulgação da obra? É preciso fazer essa indagação porque redigir um texto didático é apenas uma parte da complexa rede existente em torno da produção de um livro didático. Circe Bittencourt (2004), recorrendo às idéias de Roger Chartier, destaca esse desafio relacionado à transformação de um texto didático na produção de um livro. Com a crescente expansão da tecnologia empregada no setor editorial tornou mais evidente, nos dias atuais, a função essencial da equipe envolvida na produção o livro didático. Mas, na época da obra analisada, os desafios dessa produção também existiam com a especificidade dos recursos tecnológicos do tempo considerado. A adoção do livro passa a depender de diferentes avaliações, entre as quais estão as usadas pelo poder público para recomendar a obra para o universo maior das escolas. Um livro aprovado por órgãos vinculados ao poder público, em vista do poder da influência institucional, tende a ter uma utilização muito mais expressiva em termos nacionais.
Em primeiro lugar, quando a obra foi premiada na exposição pedagógica de 1883, é bom destacar que o ministro Carlos Leôncio de Carvalho, tal como Trajano, também era autor de um texto didático de Aritmética destinado ao ensino primário, o qual foi publicado em 1882, com o seguinte título: Breves Noções de Arithmetica para uso de crianças adaptadas ao ensino primário das classes principiantes das aulas públicas do Rio de Janeiro. Cumpre-nos destacar que este livro foi escrito pelo ministro exatamente no ano que precede à realização da exposição na qual a obra de Trajano foi premiada.
Outro episódio relacionado à avaliação da obra diz respeito à já mencionada 60ª edição, publicada em 1907, foi submetida à avaliação do então Conselho Superior de Instrução Pública da Capital Federal, conforme informações que se encontram transcritas no prefácio da 119ª edição, publicada em 1945 pela Livraria Francisco Alves, a qual usamos como fonte para realizar o estudo descrito neste artigo. Essa avaliação resultou na indicação de sua adoção nas escolas públicas do Rio de Janeiro e, certamente, impulsionar a continuidade de adoção da obra não somente nos domínios da então capital, como também em outros Estados brasileiros.
Outro registro referente à recomendação oficial da Aritmética Elementar de Trajano para o ensino primário, na primeira década do período republicano, encontra-se no trabalho de Correa (2006). Conforme informações levantadas por esse pesquisador, a referida obra figura na lista dos livros adotados nas escolas primárias do Estado do Amazonas. Outra informação obtida nessa tese trata-se da obrigatoriedade dos professores em acatar a adoção dos textos didáticos recomendados. De acordo com Decreto de 19 de novembro de 1892, que institui o Regulamento Geral da Instrução Pública do Ensino Primário do Estado do Amazonas: Aos professores públicos do ensino primário, alem dos deveres inerentes ao cargo, incumbe lecionar pelos compêndios e livros competentemente aprovados. (Correa, 2006, p. 205).
Segundo nosso ponto de vista as condições existentes nesse cenário de utilização de uma obra didática confirmam uma suposição que temos tentado comprovar, no que diz respeito a noção de cultura escolar, como o resultado da convergência de poderes exercidos por diferentes instituições que circundam as atividades inerentes ao trabalho escolar, sem desprezar a própria escola como uma das instituições que participam dessa campo de forças. No caso específico analisado neste artigo trata-se não somente da proposta do autor, bem como da força emanada do poder público, além da visão pragmática que ganhava força naquele momento de transformações políticas no Brasil.
A análise de livro didático como um dos objetos da cultura escolar de uma época, na esfera de influência de certas instituições, pode ser conduzida através do destaque de diferentes aspectos. No caso do estudo relatado nesse artigo, procuramos não perder de vista duas dimensões que consideramos entrelaçadas: o contexto histórico-educacional mais amplo, no qual o livro foi concebido, avaliado, muitas vezes avalizados pelo poder público e utilizado, e os aspectos praxeológicos mais localizados, distribuídos ao longo das páginas, nas entrelinhas das tarefas, das práticas e das teorias propostas. Quando esses dois aspectos das práticas escolares não são levados em consideração, a precedência atribuída à objetividade típica de uma disciplina pode servir de subterfúgio para camuflar relações de dominação exercidas em nome da atividade científica. A tentativa de separar essas duas dimensões ou não levar em consideração os laços existentes entre elas não contribui para a compreensão da função exercida pelo livro didático, bem como por outros dispositivos do mesmo gênero.
Para compreender os motivos que sustentaram o sucesso editorial da obra de Trajano, devemos considerar o aspecto visual do texto aritmético, procedimento até então inexistente no domínio árido e austero das ciências e das matemáticas. Um dos motivos pelos quais o autor produziu um trabalho ilustrado está relacionado ao clima da época de valorização do ensino intuitivo ou das lições de coisas. Desde o início da década de 1870, pedagogos alemães, italianos e franceses estavam reforçando a necessidade de admitir o método intuitivo para fomentar a expansão da instrução primária popular. (Buisson, 1878) Ensinar com recursos capazes de tocar os olhos do aluno, bem como os demais órgãos de sentido, favorecendo a utilidade e praticidade do estudo.
O autor se apropria do postulado pedagógico acima destacado e produz sua obra. Diferentemente da maioria dos didáticos da época, vários desenhos são estampados na obra para ilustrar situações comuns do cotidiano. Desse modo, a valorização do ensino intuitivo constitui parte do referencial de produção e difusão da obra didática que através diferentes momentos da história da educação matemática brasileira. Naquele momento, um dos desafios era mudar as práticas tradicionais da educação escolar, vencer o discurso escolástico, que nos dizeres de Buisson era pedante e totalmente inadequado à instrução popular. Para superar as antigas práticas escolares era preciso buscar inovações do domínio de todas as disciplinas escolares. Para compreender os motivos que sustentaram o expressivo número de edições dos livros didáticos de Matemática escritos por Antônio Bandeira Trajano, publicados a partir do final da década de 1870, é preciso destacar alguns aspectos do cenário educacional daquele momento. O destaque do contexto é necessário para falar em termos de educação.
Avaliação da obra
Em primeiro lugar, devemos ter certa cautela para falar em termos de sucesso editorial em se tratando de livro didático. O sucesso jamais é um conceito absoluto. No campo da educação escolar, onde diferentes interesses se entrelaçam em nome das instituições sociais, o mais adequado é indagar a respeito do lugar de quem conduz o discurso e lança as estratégias. O sucesso para alguns pode ser um profundo fracasso para outros. Em países europeus, desde os meados do século XIX, estava sendo debatidas as possibilidades de implantação de sistemas públicos de ensino para as classes populares. A legislação francesa exerceu influência considerável no ideário educacional brasileiro, principalmente, nos textos de Rui Barbosa. Entretanto, as condições para a efetiva expansão da educação popular no Brasil não estavam entre as prioridades do Império.
Para avaliar o significado do premio recebido por Trajano, lembramos que a Exposição Pedagógica foi realizada em 1883, quatro anos após o lançamento da obra, tendo Leôncio de Carvalho como secretário da comissão organizadora do evento. Dessa maneira, a conquista desse prêmio indica que a obra estava em sintonia com os princípios previstos na última reforma do ensino do período imperial. Além do mais, considerando que o próprio Ministro Leôncio de Carvalho é autor de uma obra de também de aritmética intitulada “Breves Noções de Arithmetica para uso de crianças adaptadas ao ensino primário das classes principiantes das aulas públicas do Rio de Janeiro”, publicada no ano anterior à realização da referida exposição. (Blake, 1895).
As estratégias de avaliação de um livro didático, bem como da funcionalidade da disciplina escolar, envolvem diferentes agenciamentos da rede institucional na qual a escola está inserida, mas mesmo assim esse consórcio de poderes não tem o poder de determinar, de forma absoluta, as práticas conduzidas pelo professor. Assim, um dos elementos didáticos da obra de Trajano está relacionado aos pareceres, explicações e argumentos que eram, estrategicamente, reproduzidos nas páginas iniciais do livro. Assim, por exemplo, na 60ª edição da Aritmética Elementar Ilustrada, consta que a obra havia sido ampliada e que apresentava novos exercícios, pois afinal esse elemento é um dos componentes típicos e específicos da aritmética como disciplina escolar.
Outro aspecto anunciado na referida edição diz respeito ao aperfeiçoamento metódico que a longa experiência do autor teria colocado em prática, uma produção aliada aos rumos ditados pelo movimento do ensino intuitivo e das lições de coisas. Este foi um dos motivos pelos quais a obra foi premiada pelo júri da Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro, em 1883. Ao final da segunda década do período republicano, as dezenas de edições indicavam a adoção do livro nas diversas regiões do país. Seguindo a trajetória de difusão da obra e três décadas depois do seu lançamento, o conselho superior de instrução pública da capital federal nomeou uma comissão constituída educadores para avaliá-la. (Maranhão, 2010). O resultado foi positivo no sentido de exaltar a qualidade da obra de Trajano, embasando sua indicação para as escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro. Um dos pareceristas registra o elogio feito ao livro de Antonio Trajano pelo general Benjamin Constant Botelho de Magalhães, professor de Matemática, fervoroso positivista e Ministro da Instrução Pública, no início do período republicano. Este elogio, reproduzido nas páginas de rosto da Primeira Aritmética Ilustrada, diz: Li a Aritmética Elementar do Sr Antonio Trajano e tenho o prazer em poder declarar que é ela uma das melhores, senão a melhor de todas que conheço destinadas à instrução da infância. Na mesma linha, outro parecer que destaca os aspectos qualitativos da obra didática de Trajano foi assinado pelo professor Arthur César Guimarães, Inspetor Geral da Instrução Pública de São Paulo. Seguindo a estratégia usual de sua época, o autor reproduz em uma das edições a íntegra do parecer que poderia avalizar a adoção de sua aritmética não somente em São Paulo como em várias outras partes do país.
Resolução de problemas
Para analisar as organizações didáticas prescritas por Trajano, destacamos quinze páginas da Aritmética Elementar reservadas para o estudo da resolução de problemas, um dos temas típicos da educação matemática como disciplina escolar. Fazer matemática escolar consiste, em outras coisas, resolver certos tipos de problema preservados na esteira da cultura típica da escola. Analisamos 185 problemas agrupados em 24 lições, conforme termo adotado pelo autor. Cada uma dessas lições sendo formada por sete ou oito problemas. O autor apresenta o primeiro problema de cada lição sempre resolvido. Voltamos nossa atenção para essa maneira de conduzir o ensino da aritmética, tentando compreender o modelo produzido pelo autor. A primeira impressão deixa transparecer que se trata de uma estratégia do tipo siga-modelo. Olhando mais detalhadamente, identificamos a existência de certa graduação no grau de dificuldade dos problemas e a inclusão de pequenos desafios a serem vencidos pelos alunos. Essa graduação de dificuldades na proposição dos exercícios é uma das características da vertente na qual o autor estava inserido, revelada por uma escala de excelência da disciplina. Assim, o objetivo do autor é ensinar o aluno a resolver problemas analisando os dados fornecidos e a lógica proposta no enunciado para interligar esses dados. Ao trabalhar com o método da redução à unidade, nomenclatura atribuída aos franceses, o autor se posiciona favorável a um modo mais vantajoso, chamada de análise aritmética. Transparece no discurso do autor a defesa de uma suposta superioridade na estratégia praticada por esses três povos em detrimento do método francês. Quando a essa posição, não podemos esquecer que Trajano recebeu aulas em nível secundário ministradas pelos missionários norte-americanos. Assim, as posições subjacentes as suas escolhas revelam opção em favor da visão pragmática. A posição assumida exemplifica a impossibilidade de existir imparcialidade na educação.
Considerações finais
A trajetória de circulação das obras didáticas de Antonio Trajano na educação matemática brasileira resultou de um conjunto de condições históricas avalizadas por uma rede de instituições na qual coabitam ideais de expansão da oferta de instrução primária para as classes mais populares. Entre as instituições componentes dessa rede de influências, destacamos o discurso pedagógico iniciado nas últimas décadas do século XIX em favor do método de ensino intuitivo. Diferentes autoridades da instrução pública não pouparam elogios às qualidades da obra no sentido de sua praticidade para um ensino primário popular. A visão pragmática decorrente da influência pelas idéias educacionais dos Estados Unidos transparece, com clareza, nas páginas da obra analisada, em cuja produção o autor estava ligado às orientações sinalizadas pelos defensores das lições de coisas no ensino da matemática. Do mesmo modo, o cenário de expansão do número escolas primárias para as classes sociais emergentes nos últimos anos do período imperial e início do republicano é outro fator associado ao expressivo sucesso editorial obtido pelo referido autor. Além desses fatores contextuais, seu texto didático foi concebido por um cuidadoso tratamento conceitual no que concerne à dimensão epistemológica do saber matemático no nível considerado pelo autor, tentando simplificar questões apresentadas em textos clássicos com maior grau de complexidade. Finalmente, para ressaltar a proposta de Trajano como autor de livro didático cumpre registrar que seus textos não estavam incluídos na lista dos textos indicados no Colégio Pedro II, conforme podemos verificar no levantamento feito por Ariclê e Lorenz (2004). Desse modo, não são obras avalizadas pela instituição concebida como referência, desde sua criação até meados do século XX, na preparação de alunos para o ingresso nos cursos superiores.
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Palavras-Chave: Antonio Trajano. Ensino da Aritmética. História do livro didático. Método intuitivo.
HISTORY OF TEACHING ARITHMETIC IN THE END OF THE NINETEENTH CENTURY: ANALYSIS OF THE WORK OF ANTONIO BANDEIRA TRAJANO
ABSTRACT
This article describes the theme of the History of Brazilian Mathematics Education, aimed at defining the task of researching the production and circulation of textbook entitled Aritmética Elementar Ilustrada, of Antonio Bandeira Trajano, published in 1879, successive reprints of this work circulated around the country for more eight decades, reaching the 140th edition in 1964 by Livraria Francisco Alves. To accomplish this goal were also consulted educational programs, ministerial reports and other textbooks of the same period. These sources were analyzed from the articulated concepts of disciplines and school cultures, proposed by André Chervel, as well as the notion appropriation, proposed by Roger Chartier, aiming to articulate such textbook with the production of other authors from the same time. It was possible to observe the existence of a particular methodological way, produced by the author, inserted into the vacuum of a moment of initial expansion of Brazilian primary school education. The practices suggested by the author is characterized as one of the first attempts to apply in the context of mathematics in primary education in Brazil, the intuitive method of teaching, this time in the pedagogical debate topic. This methodological vision was inserted in a clear pragmatic position conducted with certain zeal in the treatment of mathematical concepts related to the contents of elementary arithmetic.
Keywords: Antonio Trajano. Teaching arithmetic. History textbook. Intuitive method.
Considerações iniciais
Este artigo aborda aspectos da história da educação matemática brasileira através da análise de um livro didático de aritmética cuja difusão no ensino primário levou à publicação de mais de 140 edições no transcorrer de oito décadas. Trata-se da Aritmética Elementar Ilustrada, de Antonio Bandeira Trajano, publicada em 1879. O expressivo número de edições foi destacado em trabalhos que tratam da temática do livro didático, tais como Pfromm Neto (1974), Bittencourt (1993) e Valente (1999), Correa (2006), entre outros. A histórica obra de José Ricardo Pires de Almeida, A instrução pública no Brasil (1500-1889), publicada no último ano do Império já fazia referências a esse texto didático de Trajano. Por esse motivo, sua difusão resultou da convergência de condições, interligando o cenário mais amplo da história da educação e o desafio de modernização das práticas para de atender o ensino primário popular. Em seguida, a importância histórica dessa produção insere-se na proposta de procedimentos para atender aos aspectos específicos do ensino da matemática. A intenção deste artigo é seguir essa linha de raciocínio, procurando compreender a articulação entre o domínio das especificidades da disciplina e os desafios mais amplos do movimento educacional no qual a referida obra foi produzida e difundida.
A pesquisa aqui relatada parte do pressuposto que a apropriação do autor envolve diferentes elementos das disciplinas escolares. Por esse motivo, a decisão de aplicar noções propostas por Chervel (1998) e Chartier (1991), as quais se complementam para permitir uma melhor localização da produção do texto didático no seu devido tempo e espaço. Ao defender esse princípio, entendemos que nenhuma instituição externa à vivência da escola pode determinar o cotidiano das práticas disciplinares.
Não há como avalizar a existência de uma determinação externa capaz de subjugar a prática docente. Por esse motivo, não podemos perder de vista que para cada estratégia institucional existem várias táticas do domínio da estrita produção docente. (Certeau, 2007) Com base nesse entendimento, indagamos a respeito das condições que sustentaram o sucesso editorial da obra analisada. Para levantar elementos de resposta a essas indagações, relacionamos episódios da história da educação com elementos concernentes às práticas prescritas na produção didática de Trajano.
Três décadas após o seu lançamento, foi publicada a sua 60ª edição. Um best-seller didático, desde as décadas iniciais do século XX e que ainda despertaria o interesse dos editores para comercializar outras 80 edições. Um extrato do catálogo da Livraria Francisco Alves, de 1920, anunciava a venda da 89ª edição e segundo informações de Correa (2006), a 93ª edição apareceu em 1923. Seguindo essa trajetória, a 136ª edição foi lançada em 1958, de acordo com dados revelados por Bittencourt (1993) e confirmados por Valente (1999). Uma consulta feita em sites de lojas de livros usados, realizada recentemente, revela a existência da 140ª edição, publicada em 1964. Esses números sustentam a hipótese de que essa produção está entre os didáticos brasileiros com maior número de edições. Suposição levantada por Pfromm Neto (1974, p. 17), ao afirmarem: “seguramente nenhum livro didático de matemática teve, no Brasil, vida mais longa que a Aritmética Elementar Ilustrada de Antonio Trajano.”
A pesquisa de edições de livros didáticos envolve a questão da autoria que, muitas vezes, pode não ser assumida explicitamente pela instituição patrocinadora. (Choppin, 2004) Nesse domínio, não podemos fazer conclusões apressadas porque livros didáticos tais como os produzidos pelas estratégias institucionais dos Irmãos de Instrução Cristã, conhecidos pela sigla FIC, adotados em muitas instituições educacionais católicas brasileiras, no período focalizado neste artigo, nem sempre traziam o número da edição e nem mesmo o nome do autor. Por esse motivo, ao iniciar esta pesquisa, partimos do princípio de que o fenômeno das sucessivas reedições de livros didáticos resulta da convergência de fatores que vão muito além dos aspectos internos à disciplina escolar. No caso da obra Trajano, além das suas qualidades didáticas é preciso registrar que o impulso inicial de sua difusão decorreu da premiação que lhe foi concedida pelo júri da Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro de 1883. Porém, esse histórico texto de aritmética atravessou os últimos anos do período monárquico, foi usado no período da Velha República, manteve um espaço próprio nos tempos da Escola Nova e ainda foi usada no início do Movimento da Matemática Moderna.
Entre os recursos usados na educação matemática destacam-se os livros didáticos que têm um estatuto diferenciado em função da ciência de referência. Aspectos epistemológicos influenciam a orientação das práticas didáticas, tais como a valorização da formalidade, do rigor e da objetividade. Esses elementos são adotados como instrumentos para inculcar condutas do projeto educacional em questão as quais as disciplinas estão encarregadas de transmitir no espaço da sala de aula. Ao focalizar as práticas de ensino da matemática, consideramos pertinente a concepção proposta por Julia (2001) para a cultura escolar, admitindo a existência simultânea de normas para transmitir conhecimentos e para inculcar condutas no processo educativo dos alunos.
Embora as relações estabelecidas entre conhecimentos específicos e valores subjacentes às práticas escolares nem sempre sejam perceptíveis no cotidiano da escola, no caso da educação matemática entra em cena aspectos pertinentes à dimensão epistemológica da disciplina, tais como rigor, abstração, generalidade, entre outros. Por outro lado, para compreender a natureza da produção escolar elaborada pelas disciplinas escolares, na linha proposta por Chervel (1990), é preciso ponderar que os objetos culturais, entre eles os livros didáticos, são avaliados, divulgados e usados na esteira do agenciamento institucional, do qual participa a escola, através do movimento característico que entrelaça produção, divulgação e apropriação que passa necessariamente pelo domínio da atividade docente. No que diz respeito à concepção e ao comando das práticas educativas, a escola tem uma relativa autonomia. Como acontece com toda instituição, a tensão gerada pelas relações de poder exige disponibilidade para manter um permanente estado de negociação com os demais agenciamentos atuantes no entorno da escola. Por esse motivo a autonomia da prática docente não é absoluta, nem mesmo a adoção de um livro didático é uma escolha livre de diferentes esferas de avaliação.
Trajetória do autor e sua obra
Antonio Bandeira Trajano nasceu em Portugal, na cidade de Guimarães, em 10 de agosto de 1843. Cursou o ensino primário em sua terra natal, e emigrou para o Brasil, em 1857. Trabalhou em casas comerciais de São Paulo, antes de iniciar sua trajetória de educador, autor e pastor evangélico. Faleceu em 1921, depois de exercer, por mais 15 anos, o cargo de pastor da Igreja Presbiteriana do Rio Janeiro. Desse modo, sua biografia está inserida na história dessa denominação religiosa não somente pelo fato de ter sido o primeiro pastor nacional, como também na história dos livros didáticos de matemática produzidos no Brasil. Entre os textos que produziu, estão: Aritmética Primária; Aritmética Elementar Ilustrada; Aritmética Progressiva; Chave da Aritmética Progressiva; Álgebra Elementar e Chave da Álgebra, de acordo o catálogo da Livraria Francisco Alves. Embora haja referências a títulos próximos desses, tais como Nova Chave da Aritmética Progressiva ou Nova Chave da Álgebra Elementar, resultantes de outras esferas de apropriação de suas obras, no que diz respeito aos direitos autorais terem sido objeto de transação comercial por partes das editoras.
Desde quando era aluno do Seminário, se dedicou ao magistério, revelando desde então vocação para o ensino da matemática. Seus primeiros mestres de teologia eram pastores norte-americanos, de quem teria recebido influência da visão pragmática. Em outro livro didático de sua autoria destinado ao ensino elementar de Álgebra, Antonio Trajano não economiza elogios ao que chama de modernismo do ensino praticado nos Estados Unidos. Esse gosto pelas questões práticas e imediatas do ensino foi então originado nessa fase inicial de sua formação religiosa e pedagógica. Como pastor evangélico, Trajano chegou a presidir o mais alto órgão deliberativo da instituição a qual estava vinculado. Outro aspecto relevante foi o fato da Primeira Aritmética Ilustrada ter sido produzida como resultado de mais de uma década de experiência no magistério, quando o autor tinha então 35 anos de idade.
De acordo com Mattos (2004), quando Trajano chegou ao Brasil, estava iniciando a expansão das religiões protestantes, com implicações na área da educação em vista da abertura de novas instituições confessionais, defensoras de concepções mais pragmáticas em relação às práticas escolares tradicionais naquele contexto. Enquanto realizava o curso de teologia, Trajano ministrava aulas de matemática em uma pequena escola primária anexa ao seminário. Esses foram os momentos iniciais de sua prática pedagógica. Desde essa época sentia falta de textos adequados para ministrar as aulas elementares e por motivo teria desenvolvido o hábito de produzir seus próprios textos, que resultaram de sua estrita apropriação em função do quadro de referências no qual a disciplina ministrada estava inserida. (Chervel, 1990)
É importante delinear o cenário no qual o autor estava envolvido, porque a produção da prática docente, incluindo a versão prescritiva, está em um quadro de referência no qual se constitui uma cultura escolar. Esses vínculos entre a educação da matemática e as referências institucionais da disciplina, no caso focalizado neste trabalho, estavam baseados em uma visão pragmática, além da influência das posições positivistas da matemática como ciência de referência. Esses aspectos epistemológicos e didáticos transparecem, com relativa clareza, no conjunto de exercícios priorizados pelo autor para conduzir o ensino da aritmética. Afinal, a cultura escolar está imbuída desse vertente de inculcar na consciência do aluno uma prática e um conhecimento revestidos de uma visão ideológica. (Julia, 2001).
Nesse sentido, a obra de Trajano permite perceber a ligação existente em método de ensino, conteúdos disciplinares e opção por um caminho filosófico. Por esse motivo, como expressa Chervel (1998), a disciplina escolar e as práticas associadas resultam da relação entre a produção docente e as condições ditadas pela sociedade. Assim, ao analisar as práticas sistematizadas na Aritmética Elementar Ilustrada, não podemos menosprezar o peso da visão pragmática recebida pelo autor em sua formação religiosa.
As condições acima destacadas devem ser então remetidas às últimas décadas do século XIX, em sintonia com os grandes temas educacionais da época, quando ocorreu uma convergência das relações de influência na recomendação da obra de Trajano. Quando encerrava balanço educacional do Império, no momento inicial da discussão sobre a adoção do método de ensino intuitivo como uma proposta redentora das mazelas até então acumuladas, a obra aqui analisada surge como alternativa inovadora para aquele momento, moldada pelo viés ideológico do pragmatismo na qual o autor estava inserido. Ao realizar essa leitura, o desafio é não perder de vista as condições do cenário histórico, caracterizado pelo advento das idéias republicanas, pela disputa entre liberais, monarquistas e positivistas.
O livro didático de matemática é um recurso cuja especificidade deve ser considerada para entender melhor o tripé destacado por Chervel (1990), ao conceituar disciplina escolar, destacando sua gênese, função social e efetiva funcionalidade. Por esse motivo, trata-se de um instrumento mediador entre as propostas genéricas de um projeto educacional e o plano das especificidades dos conteúdos ensinados, instância de produção quase direta do professor. Desse modo, a análise desse objeto da cultura escolar destaca a componente da formação docente e os vínculos com a política educacional, nem sempre havendo convergência dos interesses existentes em torno dele. Esse quadro de referência nos leva a indagar pelas funções potenciais atribuídas ao livro didático produzido pelo renomado pastor presbiteriano em consonância com seu tempo próprio e como contexto social por ele vivenciado.
Concebido como fonte de referência para validar o saber escolar, por alguns setores institucionais, mas, podendo ser também, para outros, um guia para conduzir as rotinas repetitivas da sala de aula ou apenas um objeto comercial. Assim, como existem diferentes instituições que lançam suas linhas de poder sobre esse objeto, devemos estar vigilantes para não incorrer na confusão instalada em decorrência dessas diferentes posições. Nessa linha de raciocínio, ao descrever a noção de cultura escolar, Chervel (1991) observa a particularidade de certas disciplinas na maneira como o texto didático é valorizado como instrumento de registro dos conteúdos. Seguindo essa proposição, na educação matemática a valorização do texto didático desempenha um papel na formalização das definições, axiomas, teoremas, problemas típicos, procedimentos preservados na esteira dos domínios de estudo transmitidos por meio das práticas cultivadas pelas instituições escolares.
A especificidade educacional da matemática leva à questão da formação de professores e o papel do livro didático na condução do trabalho docente. São duas dimensões interligadas que devem ser levadas em consideração ao analisar os diferentes tipos de livros didáticos disponíveis nas escolas brasileiras. Por esse motivo, ao usar livros didáticos como fonte de pesquisa, indagamos a propósito das características desse recurso impresso em função de sua utilização por um educador profissional capaz de assumir pelo menos parte da sistematização prevista na cultura escolar.
Nesse sentido, o livro didático concebido como fonte de dados de pesquisa, sintetiza diferentes dimensões da prática educativa. Por esse motivo, no transcorrer dos últimos anos vem crescendo o interesse por esse tipo de fonte de pesquisa educacional. Em parte, esse interesse decorre da expansão das políticas públicas para a análise, compra e distribuição de livros didáticos para a rede pública, através do Programa Nacional do Livro Didático. Um dos objetivos desse programa é oferecer informações para servir de apoio ao processo de ensino e aprendizagem. Essa avaliação vem sendo realizada há cerca de uma década e serve de referência para a aquisição e distribuição do material às escolas públicas. Avaliação esta feita em parceria com universidades públicas e conduzida por parâmetros indicados pelas áreas relacionadas às disciplinas escolares.
Chervel (1990) observa a especificidade de cada disciplina no que diz respeito ao destaque de certos aspectos particulares da cultura escolar. Nesse sentido, na educação matemática o uso do texto didático, em função da vertente pedagógica na qual o professor está inserido, pode assumir um papel de fonte de referência na formalização das características do saber matemático, objetividade, generalidade, abstração, rigor, entre outras. Assim, ao considerar a especificidade de cada área, percebemos os diferentes estatutos que o livro didático pode assumir na condução do trabalho docente.
A funcionalidade do texto didático aqui analisado estava amparada pela convergência de interesses pragmáticos, pela difusão inicial da instrução popular, pela valorização do método intuitivo e pela demanda existente no campo das instituições escolares particulares laicas ou pelo menos discordantes das estratégias até então predominantes nas escolas católicas. Trata-se de fazer articulações para visualizar as posições assumidas pelo autor em sintonia com suas posições institucionais, as quais repercutem na maneira de conceber as práticas. Ao vasculhar traços históricos de uma disciplina, é preciso fazer esse tipo de leitura para compreender a dupla via das práticas: uma de cunho didático e a outra ligada ao domínio epistemológico das ciências de referências.
A realização desse tipo de leitura é desafiante porque funciona como a montagem de um grande quebra-cabeça, mas é também gratificante por permitir desvelar tramas existentes na rede de instituições na qual a escola se faz presente. Para isso os traços coletados revelam o lugar do autor e da instituição no panorama que proporcionou sucesso editorial da obra, sobretudo, na fase inicial de seu lançamento. Entretanto, no caso da nossa pesquisa, trata-se de um autor que exerceu uma influência considerável na orientação das práticas da educação matemática, muito além do seu próprio tempo.
Método de ensino intuitivo
O ano de lançamento da Aritmética Elementar Ilustrada (1879) coincide com a assinatura do decreto assinado pelo Ministro Leôncio de Carvalho, propondo uma reforma no ensino primário e secundário no município do Rio de Janeiro. Embora houvesse essa restrição na abrangência legal da reforma, este decreto contém parágrafos cuja aplicação envolvia dados educacionais nas províncias, além de considerar a influência exercida pelas orientações da corte nas províncias. Essa legislação, em relação à Reforma Couto Ferraz (1854), avançou em alguns pontos, tal como a eliminação da proibição do acesso dos escravos e seus descendentes à escola pública, mas a maioria das propostas nela contidas não saiu do papel. De modo geral, a instrução pública do século XIX esteve voltada para a formação das elites através da preparação para o ingresso no ensino superior. Somente nas últimas décadas é que ocorrem as primeiras ideias de constituir um sistema nacional de educação.
Entre as determinações prescritas na reforma Leôncio Carvalho estava a oficialização do ensino intuitivo, considerado estratégico para modernizar as práticas então predominantes, marcadas pelo exercício da cópia, da repetição e da memorização. Para contemplar esse ideal, os didáticos deveriam conter abordagens diferentes para superar a visão instituída pelas práticas mais tradicionais. Mais precisamente, o decreto previa para o currículo primário a existência da disciplina noções de coisas, expressão usada para identificar o ensino intuitivo no caso das ciências e da matemática. Desse modo, o ideário educacional no qual a obra foi produzida estava inserido no quadro de referência defendido por Calkins (1886). Um dos princípios defendidos por este autor consistia em apresentar ao menino antes dos vocábulos as coisas, antes dos nomes as ideias. No caso do ensino da aritmética, diversos autores dessa época passaram então a recorrer à estratégia de ilustrar os livros didáticos para atender a referida abordagem.
Ao definir o currículo previsto na formação de professores primários nas escolas normais, a reforma Leôncio de Carvalho traz outra referência ao método intuitivo, prevendo a existência da disciplina Pratica de ensino intuitivo e lições de coisas. Em outras palavras, a orientação pedagógica da época de Trajano consistia em explorar a dimensão sensitiva para conduzir o ensino primário. O desafio era contemplar essa orientação em sintonia com os conteúdos previstos para o ensino da Aritmética. Implícita à defesa do método intuitivo estava o compromisso de se apropriar de uma proposta que pudesse corresponder ao ideal de modernizar o ensino. Por esse motivo, no debate educacional da última década do Império estava em pauta o desafio de buscar inovações pedagógicas para acelerar a instrução primária para as classes populares.
Associada à questão da expansão da oferta da instrução pública estava o desafio de formação de professores primários em número suficiente para atender o aumento da abertura de escolas. As escolas normais, criadas a partir de 1834, até o final do período imperial não tinham ainda conseguido consolidar esse objetivo. No ensino da aritmética esse desafio de modernização envolvia superar as velhas práticas da repetição, como ilustram livros da época, contendo milhares de exercícios desvinculados de qualquer quadro de referência social ou cultural.
Diante dessa busca por novas alternativas metodológicas, a obra de Trajano foi premiada na Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro, realizada em 1883. Esta premiação levou-nos procurar olhar, com mais pontualidade, a maneira como os princípios do método intuitivo foram apropriados pelo autor para expor sua versão didática para o ensino da Aritmética. Nesse sentido, a obra analisada sintetiza traços inovadores no sentido do uso de ilustrações, tal como era previsto para o ensino intuitivo, mas também propondo problemas mais próximos da realidade dos alunos, avalizados por uma visão mais pragmática. Ao analisar esses aspectos em outros livros da época, percebemos que a obra de Trajano diferencia por uma maior valorização da dimensão experimental e sensitiva no ensino da matemática.
Entretanto, essa maneira de conceber a educação matemática escolar, segundo nosso ponto de vista, não supera a visão instituída pela vulgata tradicional. Pelo contrário, passa a coabitar com ela no contexto mais amplo das diferentes maneiras de conceber as práticas educativas escolares. A proposta didática concebida por Antonio Trajano para orientar o ensino da aritmética tem vida longa na educação matemática brasileira. Sua obra iniciada no final da década de 1870; atravessa a reforma positivista de Benjamim Constant, continua sendo adotada na Velha República, na Era Vargas e continua sendo impressa e comercializada até meados da década de 1960.
Ao longo dessa trajetória, a criação dos Grupos Escolares nos primeiros anos da República representou um momento importante no sentido de materializar os primeiros passos rumo a uma expansão do sistema de ensino para atender um número maior de alunos. Mesmo que tenha sido usada apenas por parte da sociedade que tinha acesso à educação escolar, o sucesso da obra vai muito além do discurso veiculado nas últimas décadas do século XIX. Nesse sentido, a partir da proposta didática compartilhada por Trajano, verifica-se nesse momento da história da educação matemática a existência de alguns traços de uma nova proposta pedagógica para o ensino da aritmética, baseado no início da diversificação da linguagem, no uso de ilustrações gráficas como recurso de comunicação, com a proposição de problemas envolvendo situações mais próximas da realidade cotidiana dos alunos.
Avaliações da obra didática
Para compreender a trajetória da Aritmética escrita por Antonio Trajano indagamos até que ponto as idéias materializadas nas páginas do texto foram avalizadas pelos órgãos públicos e suas comissões encarregadas em aprovar livros didáticos e recomendá-los para as escolas públicas. Quais instituições participaram do agenciamento de influências na divulgação da obra? É preciso fazer essa indagação porque redigir um texto didático é apenas uma parte da complexa rede existente em torno da produção de um livro didático. Circe Bittencourt (2004), recorrendo às idéias de Roger Chartier, destaca esse desafio relacionado à transformação de um texto didático na produção de um livro. Com a crescente expansão da tecnologia empregada no setor editorial tornou mais evidente, nos dias atuais, a função essencial da equipe envolvida na produção o livro didático. Mas, na época da obra analisada, os desafios dessa produção também existiam com a especificidade dos recursos tecnológicos do tempo considerado. A adoção do livro passa a depender de diferentes avaliações, entre as quais estão as usadas pelo poder público para recomendar a obra para o universo maior das escolas. Um livro aprovado por órgãos vinculados ao poder público, em vista do poder da influência institucional, tende a ter uma utilização muito mais expressiva em termos nacionais.
Em primeiro lugar, quando a obra foi premiada na exposição pedagógica de 1883, é bom destacar que o ministro Carlos Leôncio de Carvalho, tal como Trajano, também era autor de um texto didático de Aritmética destinado ao ensino primário, o qual foi publicado em 1882, com o seguinte título: Breves Noções de Arithmetica para uso de crianças adaptadas ao ensino primário das classes principiantes das aulas públicas do Rio de Janeiro. Cumpre-nos destacar que este livro foi escrito pelo ministro exatamente no ano que precede à realização da exposição na qual a obra de Trajano foi premiada.
Outro episódio relacionado à avaliação da obra diz respeito à já mencionada 60ª edição, publicada em 1907, foi submetida à avaliação do então Conselho Superior de Instrução Pública da Capital Federal, conforme informações que se encontram transcritas no prefácio da 119ª edição, publicada em 1945 pela Livraria Francisco Alves, a qual usamos como fonte para realizar o estudo descrito neste artigo. Essa avaliação resultou na indicação de sua adoção nas escolas públicas do Rio de Janeiro e, certamente, impulsionar a continuidade de adoção da obra não somente nos domínios da então capital, como também em outros Estados brasileiros.
Outro registro referente à recomendação oficial da Aritmética Elementar de Trajano para o ensino primário, na primeira década do período republicano, encontra-se no trabalho de Correa (2006). Conforme informações levantadas por esse pesquisador, a referida obra figura na lista dos livros adotados nas escolas primárias do Estado do Amazonas. Outra informação obtida nessa tese trata-se da obrigatoriedade dos professores em acatar a adoção dos textos didáticos recomendados. De acordo com Decreto de 19 de novembro de 1892, que institui o Regulamento Geral da Instrução Pública do Ensino Primário do Estado do Amazonas: Aos professores públicos do ensino primário, alem dos deveres inerentes ao cargo, incumbe lecionar pelos compêndios e livros competentemente aprovados. (Correa, 2006, p. 205).
Segundo nosso ponto de vista as condições existentes nesse cenário de utilização de uma obra didática confirmam uma suposição que temos tentado comprovar, no que diz respeito a noção de cultura escolar, como o resultado da convergência de poderes exercidos por diferentes instituições que circundam as atividades inerentes ao trabalho escolar, sem desprezar a própria escola como uma das instituições que participam dessa campo de forças. No caso específico analisado neste artigo trata-se não somente da proposta do autor, bem como da força emanada do poder público, além da visão pragmática que ganhava força naquele momento de transformações políticas no Brasil.
A análise de livro didático como um dos objetos da cultura escolar de uma época, na esfera de influência de certas instituições, pode ser conduzida através do destaque de diferentes aspectos. No caso do estudo relatado nesse artigo, procuramos não perder de vista duas dimensões que consideramos entrelaçadas: o contexto histórico-educacional mais amplo, no qual o livro foi concebido, avaliado, muitas vezes avalizados pelo poder público e utilizado, e os aspectos praxeológicos mais localizados, distribuídos ao longo das páginas, nas entrelinhas das tarefas, das práticas e das teorias propostas. Quando esses dois aspectos das práticas escolares não são levados em consideração, a precedência atribuída à objetividade típica de uma disciplina pode servir de subterfúgio para camuflar relações de dominação exercidas em nome da atividade científica. A tentativa de separar essas duas dimensões ou não levar em consideração os laços existentes entre elas não contribui para a compreensão da função exercida pelo livro didático, bem como por outros dispositivos do mesmo gênero.
Para compreender os motivos que sustentaram o sucesso editorial da obra de Trajano, devemos considerar o aspecto visual do texto aritmético, procedimento até então inexistente no domínio árido e austero das ciências e das matemáticas. Um dos motivos pelos quais o autor produziu um trabalho ilustrado está relacionado ao clima da época de valorização do ensino intuitivo ou das lições de coisas. Desde o início da década de 1870, pedagogos alemães, italianos e franceses estavam reforçando a necessidade de admitir o método intuitivo para fomentar a expansão da instrução primária popular. (Buisson, 1878) Ensinar com recursos capazes de tocar os olhos do aluno, bem como os demais órgãos de sentido, favorecendo a utilidade e praticidade do estudo.
O autor se apropria do postulado pedagógico acima destacado e produz sua obra. Diferentemente da maioria dos didáticos da época, vários desenhos são estampados na obra para ilustrar situações comuns do cotidiano. Desse modo, a valorização do ensino intuitivo constitui parte do referencial de produção e difusão da obra didática que através diferentes momentos da história da educação matemática brasileira. Naquele momento, um dos desafios era mudar as práticas tradicionais da educação escolar, vencer o discurso escolástico, que nos dizeres de Buisson era pedante e totalmente inadequado à instrução popular. Para superar as antigas práticas escolares era preciso buscar inovações do domínio de todas as disciplinas escolares. Para compreender os motivos que sustentaram o expressivo número de edições dos livros didáticos de Matemática escritos por Antônio Bandeira Trajano, publicados a partir do final da década de 1870, é preciso destacar alguns aspectos do cenário educacional daquele momento. O destaque do contexto é necessário para falar em termos de educação.
Avaliação da obra
Em primeiro lugar, devemos ter certa cautela para falar em termos de sucesso editorial em se tratando de livro didático. O sucesso jamais é um conceito absoluto. No campo da educação escolar, onde diferentes interesses se entrelaçam em nome das instituições sociais, o mais adequado é indagar a respeito do lugar de quem conduz o discurso e lança as estratégias. O sucesso para alguns pode ser um profundo fracasso para outros. Em países europeus, desde os meados do século XIX, estava sendo debatidas as possibilidades de implantação de sistemas públicos de ensino para as classes populares. A legislação francesa exerceu influência considerável no ideário educacional brasileiro, principalmente, nos textos de Rui Barbosa. Entretanto, as condições para a efetiva expansão da educação popular no Brasil não estavam entre as prioridades do Império.
Para avaliar o significado do premio recebido por Trajano, lembramos que a Exposição Pedagógica foi realizada em 1883, quatro anos após o lançamento da obra, tendo Leôncio de Carvalho como secretário da comissão organizadora do evento. Dessa maneira, a conquista desse prêmio indica que a obra estava em sintonia com os princípios previstos na última reforma do ensino do período imperial. Além do mais, considerando que o próprio Ministro Leôncio de Carvalho é autor de uma obra de também de aritmética intitulada “Breves Noções de Arithmetica para uso de crianças adaptadas ao ensino primário das classes principiantes das aulas públicas do Rio de Janeiro”, publicada no ano anterior à realização da referida exposição. (Blake, 1895).
As estratégias de avaliação de um livro didático, bem como da funcionalidade da disciplina escolar, envolvem diferentes agenciamentos da rede institucional na qual a escola está inserida, mas mesmo assim esse consórcio de poderes não tem o poder de determinar, de forma absoluta, as práticas conduzidas pelo professor. Assim, um dos elementos didáticos da obra de Trajano está relacionado aos pareceres, explicações e argumentos que eram, estrategicamente, reproduzidos nas páginas iniciais do livro. Assim, por exemplo, na 60ª edição da Aritmética Elementar Ilustrada, consta que a obra havia sido ampliada e que apresentava novos exercícios, pois afinal esse elemento é um dos componentes típicos e específicos da aritmética como disciplina escolar.
Outro aspecto anunciado na referida edição diz respeito ao aperfeiçoamento metódico que a longa experiência do autor teria colocado em prática, uma produção aliada aos rumos ditados pelo movimento do ensino intuitivo e das lições de coisas. Este foi um dos motivos pelos quais a obra foi premiada pelo júri da Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro, em 1883. Ao final da segunda década do período republicano, as dezenas de edições indicavam a adoção do livro nas diversas regiões do país. Seguindo a trajetória de difusão da obra e três décadas depois do seu lançamento, o conselho superior de instrução pública da capital federal nomeou uma comissão constituída educadores para avaliá-la. (Maranhão, 2010). O resultado foi positivo no sentido de exaltar a qualidade da obra de Trajano, embasando sua indicação para as escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro. Um dos pareceristas registra o elogio feito ao livro de Antonio Trajano pelo general Benjamin Constant Botelho de Magalhães, professor de Matemática, fervoroso positivista e Ministro da Instrução Pública, no início do período republicano. Este elogio, reproduzido nas páginas de rosto da Primeira Aritmética Ilustrada, diz: Li a Aritmética Elementar do Sr Antonio Trajano e tenho o prazer em poder declarar que é ela uma das melhores, senão a melhor de todas que conheço destinadas à instrução da infância. Na mesma linha, outro parecer que destaca os aspectos qualitativos da obra didática de Trajano foi assinado pelo professor Arthur César Guimarães, Inspetor Geral da Instrução Pública de São Paulo. Seguindo a estratégia usual de sua época, o autor reproduz em uma das edições a íntegra do parecer que poderia avalizar a adoção de sua aritmética não somente em São Paulo como em várias outras partes do país.
Resolução de problemas
Para analisar as organizações didáticas prescritas por Trajano, destacamos quinze páginas da Aritmética Elementar reservadas para o estudo da resolução de problemas, um dos temas típicos da educação matemática como disciplina escolar. Fazer matemática escolar consiste, em outras coisas, resolver certos tipos de problema preservados na esteira da cultura típica da escola. Analisamos 185 problemas agrupados em 24 lições, conforme termo adotado pelo autor. Cada uma dessas lições sendo formada por sete ou oito problemas. O autor apresenta o primeiro problema de cada lição sempre resolvido. Voltamos nossa atenção para essa maneira de conduzir o ensino da aritmética, tentando compreender o modelo produzido pelo autor. A primeira impressão deixa transparecer que se trata de uma estratégia do tipo siga-modelo. Olhando mais detalhadamente, identificamos a existência de certa graduação no grau de dificuldade dos problemas e a inclusão de pequenos desafios a serem vencidos pelos alunos. Essa graduação de dificuldades na proposição dos exercícios é uma das características da vertente na qual o autor estava inserido, revelada por uma escala de excelência da disciplina. Assim, o objetivo do autor é ensinar o aluno a resolver problemas analisando os dados fornecidos e a lógica proposta no enunciado para interligar esses dados. Ao trabalhar com o método da redução à unidade, nomenclatura atribuída aos franceses, o autor se posiciona favorável a um modo mais vantajoso, chamada de análise aritmética. Transparece no discurso do autor a defesa de uma suposta superioridade na estratégia praticada por esses três povos em detrimento do método francês. Quando a essa posição, não podemos esquecer que Trajano recebeu aulas em nível secundário ministradas pelos missionários norte-americanos. Assim, as posições subjacentes as suas escolhas revelam opção em favor da visão pragmática. A posição assumida exemplifica a impossibilidade de existir imparcialidade na educação.
Considerações finais
A trajetória de circulação das obras didáticas de Antonio Trajano na educação matemática brasileira resultou de um conjunto de condições históricas avalizadas por uma rede de instituições na qual coabitam ideais de expansão da oferta de instrução primária para as classes mais populares. Entre as instituições componentes dessa rede de influências, destacamos o discurso pedagógico iniciado nas últimas décadas do século XIX em favor do método de ensino intuitivo. Diferentes autoridades da instrução pública não pouparam elogios às qualidades da obra no sentido de sua praticidade para um ensino primário popular. A visão pragmática decorrente da influência pelas idéias educacionais dos Estados Unidos transparece, com clareza, nas páginas da obra analisada, em cuja produção o autor estava ligado às orientações sinalizadas pelos defensores das lições de coisas no ensino da matemática. Do mesmo modo, o cenário de expansão do número escolas primárias para as classes sociais emergentes nos últimos anos do período imperial e início do republicano é outro fator associado ao expressivo sucesso editorial obtido pelo referido autor. Além desses fatores contextuais, seu texto didático foi concebido por um cuidadoso tratamento conceitual no que concerne à dimensão epistemológica do saber matemático no nível considerado pelo autor, tentando simplificar questões apresentadas em textos clássicos com maior grau de complexidade. Finalmente, para ressaltar a proposta de Trajano como autor de livro didático cumpre registrar que seus textos não estavam incluídos na lista dos textos indicados no Colégio Pedro II, conforme podemos verificar no levantamento feito por Ariclê e Lorenz (2004). Desse modo, não são obras avalizadas pela instituição concebida como referência, desde sua criação até meados do século XX, na preparação de alunos para o ingresso nos cursos superiores.
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