Estudo escolar e virtualidade

Luiz Carlos Pais
 
As mais antigas reflexões sobre o estudo de um assunto qualquer da vida cotidiana ou de uma disciplina típica da cultura escolar destacam que a aprendizagem caracteriza-se por uma relação estabelecida pelo indivíduo com o objeto do conhecimento. Uma relação capaz de motivar mudanças na consciência singular, com possíveis mudanças nas ações praticadas de modo consciente. Mas, na grande maioria das vezes, essa relação não é uma experiência isolada ou única. A pessoa aprende e expande o conteúdo apreendido a partir da regularidade de ações individuais voltadas para o objeto estudado. O processo, mesmo tendo essa componente subjetiva, somente se amplia na medida em que forem estabelecidas relações com outras pessoas. Essa subjetividade que nasce no estudo empreendido por uma pessoa passa então por uma complexa experiência social de objetivação. Inversamente, os saberes objetivamente estabelecidos passam por uma estrita experiência de subjetivação. São movimentos complementares entre: objetivar o saber individual e vivenciar a experiência subjetiva da objetividade. Entender um teorema matemático é uma experiência de subjetivar o que está socialmente colocado pela objetividade típica das ciências exatas.

O entendimento é uma experiência subjetiva porque, a rigor, ninguém pode entender pelo outro. Pode até haver um necessário esforço na comunicação, mas a consciência individual é desafiada a entender e atribuir sentido à mensagem recebida do outro. A explicação didática funciona na direção oposta porque o ato faz sentido se explicador entende o conteúdo explicado. Entendimento, explicação, explanação, compreensão são categorias didáticas, inerentes ao processo de comunicação, cuja importância continua presente nas condições ditadas pelo atual mundo tecnológico. Porém, há uma ampliação significativa nas condições técnicas potenciais, cuja exploração está no início, para realizar esses atos integrados da docência. É através do diálogo, e agora mediado também por recursos tecnológicos, da experiência compartilhada com outras pessoas que também atuam na mesma frequência de interesse, dos encontros e desencontros, que se torna possível aproximar do objeto conhecido. A profundidade do conhecimento adquirido e sua objetivação dependem do imponderável exercício do retorno ao mesmo objeto, outras vezes, por outros caminhos e circunstâncias. Não é possível aprender história, literatura ou arte com um único encontro casual, ocorrido em momentos isolados ou singulares de uma trajetória de vida.

Esse retorno típico da atividade de estudo caracteriza-se pela mesma regularidade, que está presente nos modelos científicos. Não valeria a pena investir tantos esforços para criar uma tecnologia utilizável uma única vez. Faz-se necessário retornar ao objeto porque a aprendizagem ocorrida no primeiro encontro geralmente é superficial e revela apenas a parte exterior da objetividade. O algoritmo elementar de uma operação da aritmética pode até ser memorizado nesse tipo de encontro superficial, mas outros retornos se fazem necessários para desvelar seu funcionamento interno, compreender a lógica contida na sua formalidade e que não está revelada no calor das primeiras aproximações. Por esse motivo, ocorre um encontro cada vez mais intenso entre a percepção vivenciada pelo indivíduo com a objetividade e o significado que são condições ditadas pela cognição social. Com base nesse entendimento, somos levados a refletir a respeito das alterações resultantes da inserção das mídias digitais no processo didático mais compatível com os desafios da escola contemporânea.

Alguns autores atentos aos desafios sociais da atualidade, como Zygmunt Bauman, falam em repensar o próprio conceito de educação, no sentido de que a rapidez das mudanças ditadas pela atual sociedade tecnológica não seria mais compatível com a estabilidade das antigas ideias ou conceitos pedagógicos que foram construídos nos últimos séculos. O arrogo determinista chega a afirmar que a escola foi atingida por um golpe quase fatal pela expansão de acesso aos vários recursos tecnológicos da informação e comunicação. É preciso ter muita cautela com esse tipo de afirmação porque, na maioria das vezes, ela é fomentada por agentes dominados por interesses da volúpia da sociedade de consumo. Esses críticos dizem que a antiga escola deve ser destruída para dar lugar a outra instituição iluminada por novas telas digitais, capazes de ofuscar a primeira vista. Quase sempre esse tipo de discurso é superficial e não está disposto ou não tem condições de tratar das especificidades dos diferentes saberes disciplinares. Misturar especificidades matemáticas, artísticas, literárias ou históricas não é uma atitude plausível para criticar a escola da atualidade.

Há um aspecto que precisa ser considerado de maneira mais explícita possível e que diz respeito ao acesso social ao mundo das tecnologias digitais da informação. Um dos extremos da questão foi mencionado acima, ao dizer da volúpia inconfessável dos interesses do atual capitalismo de consumo que gostaria jogar fora a virtualidade dos saberes pedagógicos como se fosse possível implantar um chip teleguiado na cabeça das pessoas, para que elas aprendam a lição que lhes parece de maior importância: “consuma sempre e cada vez mais, jogue fora o livro clássico e a máquina comprada no ano anterior e compre outra, troque os livros de papel por pequenas telas colorida, e assim por diante. O outro extremo da questão decorre da impossibilidade de vivenciar as novas condições de aprendizagem sem o acesso ao mundo tecnológico de qualidade, com bom acesso à rede mundial de computadores e outras mídias. O discurso de ataque à escola, quase sempre, vem revestido desse tipo de interesse.

Para finalizar essa reflexão sobre o fenômeno cognitivo e suas relações com o mundo tecnológico da atualidade, cumpre registrar que as últimas décadas assistiram a uma expressiva expansão tecnológica, envolvendo uma constante produção de novos equipamentos, aprimorados em sintonia com a pesquisa científica e também com diferentes interesses econômicos e financeiros. Não há como deixar de considerar o desafio do acesso social à tecnologia e repensar o significado dessa posse. A conexão é uma condição necessária, mas de modo algum é suficiente para garantir que a pessoa conectada se aproprie dos benefícios proporcionados para virtualidade contida em cada aparelho. Em certo sentido, não é apenas a exposição de uma boa mesa que garante a celebração do alimento. Cada um consegue saborear o que lhe seduz a pele naquele momento em que está com a pequena tela de desejo nas mãos.

Por esse motivo, em termos de sistema nacional de educação, não é possível avançar sem resolver, em conjunto, os problemas sociais de acesso à saúde, transporte, lazer, cultura, trabalho, segurança, entre outros. Há um domínio educacional no qual os poderes públicos, associados aos setores econômicos mais conscientes, devem interagir para propiciar a participação das classes sociais excluídas do acesso ao mundo digital para ampliação das condições educacionais. Mas isso não se realiza de modo isolado com os demais desafios da sociedade contemporânea. Em outros termos, existe um vínculo indissociável entre a expansão das condições de acesso ao mundo tecnológico, a educação pertinente aos desafios da atualidade e a vigilância constante para os limites toleráveis do poder econômico.

Em síntese, analisar as inovações proporcionadas pelas mídias informatizadas não é uma tarefa imediata diante da diversidade dos atuais desafios sociais do país. Assim, quando se pretende avançar o debate para a educação de todas as classes sociais, além de estar atendo às imponderáveis condições políticas e sociais, é preciso recolocar uma questão fundamental no trabalho docente: quais são as alterações provocadas pela inserção dos recursos digitais no processo didático escolar, no sentido de repensar a relação entre professor e aluno, o acesso a informações para elaboração de conhecimentos e a condução da avaliação escolar? Tema para motivar outro retorno.