História dos Aritmômetros
LUIZ CARLOS PAIS
LUIZ CARLOS PAIS
RESUMO: Este artigo registra aspectos históricos da produção e difusão de materiais didáticos da educação matemática, no contexto brasileiro das últimas décadas do século XIX e início do século XX. São focalizados os aritmômetros, usados no quadro de valorização do método intuitivo, reunindo ábacos e outros recursos para o ensino as operações elementares da aritmética e do sistema métrico decimal. As fontes usadas foram relatórios ministeriais, bem como de diretores da instrução pública do município da Corte, regimentos escolares; manuais pedagógicos e livros escolares. O referencial adotado envolve os conceitos de cultura e disciplina escolares, propostos por André Chervel. Foram também usados os conceitos de estratégias e táticas propostos por Michel de Certeau e de apropriação, no sentido definido por Roger Chartier. A pesquisa permitiu constatar que entre os desafios da modernização do ensino da matemática estava o postulado de recorrer a procedimentos intuitivos e experimentais, reduzindo as práticas da memorização. Essa orientação incluía o uso de diversos objetos para ensinar o sistema de numeração, as operações e o sistema métrico. O estudo permitiu compreender que a fase inicial da expansão da educação primária coincide com maior valorização de aspectos práticos e úteis do ensino da matemática, originando um novo discurso em relação às práticas tradicionais.
Palavras-chave: Materiais didáticos da Matemática. Método intuitivo. Cultura Material da Escola. Recursos didáticos. Didática da Matemática.
Considerações iniciais
O tema tratado neste artigo está inserido na história dos materiais didáticos usados no ensino primário da matemática, no contexto educacional brasileiro das últimas décadas do século XIX e início do século XX. O objetivo principal consiste em registrar aspectos históricos da produção, difusão e apropriação dos chamados de aritmômetros, cujos modelos difundidos no Brasil eram formados por ábacos, bastões para ensinar os princípios do sistema de numeração decimal, instrumentos para o ensino do sistema métrico decimal, quadros sinóticos para ensinar a conversão de unidades, pequenos quadros para escrever, réguas e outros dispositivos destinados à exploração das formas geométricas.
A produção desses recursos para o ensino da matemática e para outras disciplinas foi intensificada a partir da década de 1870, quando fatores políticos e econômicos levaram à expansão da instrução primária popular. Nesse contexto histórico, os aritmômetros aqui focalizados não devem ser confundidos com os aparelhos mecânicos precursores das primeiras máquinas de calcular. A necessidade dessa diferenciação consta no dicionário pedagógico organizado por Ferdinand Buisson, obra de referência para a história da educação do final do século XIX. (Buisson, 1887) Uma análise dessa fonte permite compreender aspectos do cenário educacional de circulação desses recursos criados para o ensino da matemática e de outras disciplinas.
A história dos recursos didáticos, no período focalizado, está inserida no movimento educacional de valorização do método de ensino intuitivo, cujas raízes estão associadas à pedagogia alemã do final do século XVIII. O princípio do método consistia em favorecer a formação de conceitos, colocando objetos materiais diante dos alunos e levando-os a explorar informações advindas pelos sentidos do corpo, prenunciando o desafio de articular aspectos materiais e abstratos no estudo escolar. (Saviani, 2004; Valdemarin, 2004) Um dos incentivadores desse método no Brasil foi Rui Barbosa, que traduziu as Primeiras Lições de Coisas, de Norman Allison Calkins. Publicada em 1886, essa tradução foi amplamente divulgada no Brasil e contem uma parte dedicada ao ensino da matemática. (Calkins, 1886)
O período definido justifica-se pela realização da Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro, em 1883, e percorre traços relacionados aos materiais destinados à educação matemática por pouco mais de quatro décadas. O ano de 1927 é considerado relevante por ter sido realizado, em Belo Horizonte, o Primeiro Congresso de Instrução Primária de Minas Gerais, evento dirigido pelo então secretário do interior Francisco Campos.
As ideias difundidas nesse evento resultaram numa reforma da instrução primária, restrita às escolas mineiras, porém articulada com ideias que circulavam no país. Quatro anos depois, temas tratados nesse congresso fomentaram discussões mais amplas relativas ao ensino secundário, quanto às divisões dos conteúdos pertinentes a um e outro nível da escolaridade pré-universitária. A reforma da educação instituída pelo decreto 19890, de 18 de abril de 1931, tendo à frente do Ministério da Educação, o mineiro Francisco Campos, marcaria o início de um novo período também da educação brasileira.
Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro de 1883
O governo imperial anunciou no final de 1882 a realização de um grande encontro internacional de educação, o Congresso da Instrução do Rio de Janeiro. Naquele mesmo ano, a Argentina tinha realizado o Congresso Pedagógico Internacional de Buenos Aires. Países europeus e os Estados Unidos já haviam realizado congressos semelhantes para discutir a modernização da instrução primária popular. Foi nesse clima que o congresso brasileiro foi anunciado em todas as representações diplomáticas do Império. Mas, no ano seguinte, aproximando-se da data do evento, não havia os recursos disponíveis para pagar as despesas. Houve muitas discussões políticas e a maioria dos deputados e senadores manteve-se inflexível contra a realização do evento com recursos públicos.
A solução foi reduzir o encontro para uma Exposição Pedagógica custeada com donativos doados por barões e outros conservadores. A organização do evento reduzido ficou a cargo da mesma comissão presidida pelo Conde d’Eu e secretariada por Leôncio de Carvalho. Américo Franklin de Menezes Dória foi nomeado 2º secretário; sendo nomeados vice-presidentes, o Visconde de Bom Retiro e Manoel Francisco Correa. Leôncio de Carvalho tentava ampliar as bases para implantar decisões previstas no decreto 7247 de 19 de abril de 1879. Em particular, estava definida a prioridade atribuída ao método intuitivo, tema debatido desde os meados da década de 1860 nas conferências internacionais. A intenção era adotar uma estratégia usada nos países mais desenvolvidos para mostrar ao mundo o estado de modernidade do país no campo da instrução pública.
Duas décadas antes, na Exposição Internacional de Londres de 1862, tinha sido criada uma sessão especial para apresentar materiais de ensino. Uma idéia inovadora, para mostrar ao mundo o que estava sendo feito para expandir a oferta de instrução pública popular e gratuita. (Buisson, 1887) A criação dessas sessões passou a ser uma estratégia política consorciada com empresas fabricantes de materiais escolares. Em 1854, também em Londres, foi realizada uma exposição semelhante, onde materiais escolares foram expostos e, posteriormente, doados pelos industriais para a constituição de um museu pedagógico. Assim, os professores poderiam ser treinados para usar os materiais. Mas, cada estratégia criada pelo poder institucional origina um turbilhão de táticas produzidas pelos consumidores. Dessa maneira, resta o desafio de compreender como os professores usavam, em sala de aula, os objetos expostos como símbolo da modernidade.
Os métodos de ensino anteriores estavam mais baseados na ideia do catecismo, na verbalização discursiva do professor e nas práticas de memorização e repetição. O final do século XIX marcou um momento importante na difusão de várias tecnologias inventadas com a aplicação dos conhecimentos científicos até então acumulados. Era então o momento de modernizar as práticas escolares, contemplando nessa proposta a inserção de diferentes objetos destinados ao ensino primário da aritmética e do sistema métrico decimal.
As estratégias de difusão dos materiais destinados ao ensino envolviam não somente a sua exibição física nos congressos de instrução, bem como a realização de conferências e a publicação ou indicação de obras pedagógicas para a utilização dos mesmos. Um desses textos foi escrito do professor Alambary Luz, diretor da Escola Normal da Província do Rio de Janeiro, com orientações para o ensino do cálculo mental com o uso do aritmômetro. Publicado em 1887, este texto consta nos relatórios como obra fundamental para entender a prática no método intuitivo.
Os materiais mostrados na Exposição Pedagógica de 1883, no final desse mesmo ano, passaram a compor o acervo do Museu Pedagógico, instalado na capital do Império pelos organizadores da exposição. Entre os materiais destinados ao ensino da aritmética, no período considerado, relacionamos os seguintes: ábacos, aritmômetros ou contadores mecânicos, fraciômetro ou aritmômetro fracionário, material de Martinot, aparelho de Level, caixa de Carpentier, tabelas ou tabuadas, quadros sinóticos, compêndios métricos, metros dobráveis ou usados por agrimensores, balanças, gonígrafos, tangram, conjuntos de objetos com formas geométricas, cavilhas destinados ao ensino dos números, entre outros. De modo geral, desses instrumentos eram importados da França e outros países europeus, a partir do final do período monárquico até o final da década de 1920.
A expansão da instrução primária popular levou empresas a se organizarem para fomentar a invenção, fabricação e difusão de produtos essenciais à modernização das práticas educativas. Além dos objetos indicados para o ensino da matemática, vários outros foram produzidos para as demais matérias. Essas empresas divulgavam catálogos para apresentar seus produtos, envolvendo móveis, equipamentos para ginástica, e conjuntos de materiais destinados a todas as disciplinas e em particular para atender as especificidades do ensino da aritmética elementar.
Os objetos concebidos para o ensino de uma disciplina são chamados, na linguagem adotada neste artigo, de materiais didáticos, visando considerar a influência das referências epistemológicas dos conteúdos ensinados. No campo da história disciplinas escolares, as práticas estão inseridas em raízes culturais nem sempre visíveis pela sociedade ou pelas instituições que tentam controlar a vida escolar. (Chervel, 1990) Analisar o significado atribuído aos materiais no quadro das culturas escolares permite um caminho para tratar das articulações entre as bases epistemológicas dos conteúdos e a generalidade comum aos demais planos de estudo. O desafio desse viés teórico consiste em não recair no isolamento de um objeto particular ou na generalidade das referências pedagógicas mais amplas.
Para se referir aos objetos destinados ao ensino de todas as disciplinas, normalmente é o caso do quadro negro, usamos o adjetivo pedagógico para qualificá-lo. Ainda para completar essa definição dos termos e delimitar a perspectiva teórica com a qual abordamos a história dos objetos culturais, nós optamos por usar a expressão materiais escolares, quando se tratar das condições mais amplas da educação escolar, tais como modelos arquitetônicos, mobília escolar, espaços próprios para escolas primárias, de educação infantil ou mesmo das escolas normais.
Um quarto nível de abrangência dos materiais destinados à educação de crianças, mas não necessariamente vinculado às práticas escolares, pode ser encontrado no contexto social mais amplo. Categoria essa que inclui materiais lúdicos comercializados sem uma intenção didática específica. Um exemplo desse tipo de material é o conhecido tangram, considerado por Calkins (1886) como um antigo jogo chinês que seria proveitoso no ensino doméstico das formas geométricas e na distração saudável das crianças. Não se limitando, nesse caso, ao domínio dos interesses comerciais, o autor ressalta a facilidade de construção do material pelos próprios pais, usando materiais de baixo custo.
A delimitação de diferentes graus de generalidade, desde o nível mais amplo dos materiais escolares, passando pelos pedagógicos e didáticos, não é uma simples questão de linguagem. A própria noção de cultura material escolar requer esse cuidado relativo à linguagem usada pelo pesquisador, pois o desafio de historiar esse tipo de objeto não se reduz à sua própria materialidade. Em outras palavras, mesmo focalizando um material didático, não se pode perder de vista a realidade do entorno pedagógico e das condições mais amplas da educação. As posições de um determinado momento da história fomentam a expansão da oferta de instrução primária popular e gratuita, como ocorreu no final do século XIX, dando origem a um amplo movimento pedagógico e metodológico de valorização da intuição e das condições experimentais nas práticas de ensino.
O quadro mais amplo das posições políticas, econômicas e educacionais constitui o substrato para os agenciamentos atuantes na produção, divulgação, uso e avaliação de materiais didáticos. Nem sempre as fontes permitem compreender o entrelaçamento existente entre as estratégias de difusão dos materiais e a apropriação docente que ocorre na sala de aula, território que não pode estar sob o domínio exclusivo das influências externas. Vários aparelhos escolares foram fabricados na Bélgica, pelos padres lassalistas, conhecidos como Irmãos de Instrução Cristã, instituição mantenedora de milhares de escolas primárias, secundárias e normais espalhadas por vários países. A produção, circulação e uso de materiais indicados para o ensino da matemática estavam baseadas nos princípios do método intuitivo ou das lições das coisas, denominação esta recebida no ensino das ciências. De modo geral, procurava-se valorizar o uso de recursos para servir de suporte material para iniciar o estudo das diversas disciplinas dos planos de estudo.
Os recursos materiais constituem um tema relativamente novo no campo da pesquisa em história da educação. Embora não exista uma referência teórica exclusiva para tratar o assunto, a partir da década de 1980, conceitos propostos por Chervel (1998) e compartilhados por outros autores permitiram ampliar as bases de pesquisa, propondo uma visão articulada dos conteúdos, disciplinas e mais amplamente da cultura escolar. Entre os vários objetos culturais da escola, pretendemos destacar aqueles dotados de materialidade e usados para conduzir o estudo descrito neste artigo. Dessa forma, abordarmos no quadro na educação matemática elementar uma temática que vai além dos registros impressos e que permitem o acesso histórico a uma parte expressiva da cultura escolar.
Ao considerar a cultura escolar uma complexa rede de produção circulante na sala de aula e em seu entorno, todo esforço deve ser feito para confrontar na esteira da história os filamentos que articulam os objetos didáticos aos valores educacionais com os quais o ensino primário da matemática é concebido. Dessa maneira, não se deve perder de vista os vínculos epistemológicos e as especificidades usadas em consonância com a finalidade social atribuída às disciplinas escolares. Sem avalizar a idéia de que a cultura escolar seja uma produção exclusiva da escola, ao pesquisar a história dos materiais de ensino de uma determinada época, observamos que, durante muito tempo, a atenção dos pesquisadores esteve mais voltada para os registros impressos e, de modo mais intenso ainda para os livros didáticos. De fato, esses objetos didáticos impressos ocupam uma posição de maior destaque na pesquisa, pois, de modo geral, são considerados registros estáveis de referência para conduzir as práticas escolares. Entretanto, além dos livros escolares, apostilas, cartazes, revistas e manuais existem outros impressos que servem para difundir o uso de objetos materiais inseridos na cultura escolar.
Ao aplicar o conceito de apropriação, visando compreender o movimento de difusão e circulação de objetos materiais, como o ábaco inventado pela educadora francesa Marie Pape-Carpantier, constata-se a influência de empresas que atuavam no mercado em expansão, naquele momento, em função da necessidade de abrir escolas primárias para as classes populares. Além do mais, no caso da instrução escolar, do final do período imperial, temos a influência discursiva em favor do método intuitivo e do uso de aparelhos de ensino que foram divulgados na Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro.
Os grandes fabricantes de materiais escolares visualizavam a emergência de um amplo mercado, criado com a expansão da oferta de escolas primárias populares gratuitas. No quadro desse movimento, em paralelo, muitas escolas particulares passaram também a usar tais materiais, visando modernizar as práticas de ensino compatíveis com aquele tempo de transição. Dessa maneira, ao estudar o problema da difusão de objetos da cultura escolar do período considerado, temos o desafio de compreender o funcionamento das estratégias concebidas para interligar a criação e difusão de materiais escolares, a abertura de museus escolares e realização dos congressos pedagógicos.
Relatórios elaborados pelo diretor da Escola Normal de Niteroi, do final a década de 1870, contem ideias divulgadas no Congresso Mundial de Viena e que, posteriormente, aparecem formalizadas no Dicionário Pedagógico organizado por Buisson. Nesse contexto de expansão de oferta da instrução pública para as classes populares, passou a ser um sinal de modernidade, em consonância com os interesses econômicos e políticos, a prescrição do uso de materiais para o ensino da matemática e para as demais disciplinas. Catálogos comerciais foram divulgados na época por fabricantes de materiais escolares, visando atender todas as disciplinas. No caso da matemática, os materiais visavam favorecer o ensino dos aspectos intuitivos do sistema de numeração decimal, das operações da aritmética, do sistema métrico decimal e da geometria elementar. Foi nesse clima de euforia que o governo imperial decidiu também organizar o Congresso de Instrução do Rio de Janeiro. No plano inicial, a sessão de abertura foi prevista para o dia 1º de junho de 1883.
Um regulamento foi publicado pelo ministro Pedro Leão Velloso. O programa das conferências incluía temas como jardim da infância, ensino primário e secundário; profissional e ensino superior. Quase nada foi esquecido a não ser um detalhe fundamental que eram os recursos necessários para custear as despesas. Esse foi o motivo para a não realização do congresso, tal como foi inicialmente previsto. Para contornar a situação, o congresso foi reduzido a uma Exposição Pedagógica, envolvendo somente temas pertinentes ao jardim da infância, ao ensino primário e às escolas normais.
A realização do evento tinha sido divulgada nas províncias, na Europa e nas América. Por isso o cancelamento seria um vexame político. Diante do impasse, a comissão se prontificou a realizar uma exposição pedagógica circunscrita às questões do ensino primário e das escolas normais com o custeio de donativos por eles arrecadados. Esse esclarecimento consta na memória escrita pelo engenheiro Antonio de Paula Freitas, no cargo de secretário da associação mantenedora do Museu Escolar Nacional. (Compagnoni, 1980) Este museu, tal como fora idealizado em 1854 em Londres, foi montado com doação dos materiais expostos da exposição de 1883, reforçando aqui os laços existentes entre a difusão do método intuitivo, uso de materiais concretos e a criação de museus escolares.Entre os materiais exibidos na exposição de 1883 estavam os quadros sinóticos, usados para memorizar a conversão das unidades do sistema métrico decimal, difundidos no final do século XIX. A estratégia oficial consiste em instituir o uso do material na legislação que delineava o contorno das disciplinas escolares.
Consta a indicação dos referidos quadros no regimento das escolas primárias do primeiro grau do município da corte, assinado pelo inspetor geral, Antônio Herculano de Souza Bandeira Filho, em 19 de julho de 1883. Entretanto, a definição do texto oficial não era suficiente para conduzir os sinuosos caminhos pelos quais podem enveredar uma abordagem intuitiva da matemática.Nas relações travadas entre os professores primários e a inspetoria da instrução pública, surgem então as táticas da produção docente, quase sempre, invisíveis aos olhos da burocracia oficial. Os relatórios mostram que alguns professores estavam fabricando seus próprios quadros sinóticos, despertando certa preocupação por parte dos inspetores que queriam analisar a qualidade da produção. Esse caso é ilustrativo para mostrar o embate ocorrido no campo da resistência docente porque o estudo do sistema métrico decimal deveria servir de base para as lições de coisas, na parte concernente ao ensino da matemática elementar. Os quadros e tabelas expostos nas paredes da sala de aula deveriam também orientar o método simultâneo. Todos os alunos deveriam ver a mesma coisa, contrariamente ao procedimento do método individual. O aluno deveria aprender a distinguir as unidades, seus nomes, a finalidade e o modo de usar.
Uma orientação presente no regimento acima mencionado tratava dos exercícios sobre o sistema métrico decimal. A gênese, função e funcionalidade da disciplina se concretizam nos exercícios previstos e indicados nos textos de referências. (Chervel, 1990) Tarefa didática que assume contornos bem específicos na cultura e na tradição das práticas de ensino da matemática. Naquele momento, os exercícios deveriam ser práticos e as crianças deveriam usar o metro para medir objetos diversos, móveis e a extensão da sala de aula. Havia também a orientação de usar balanças para pesar objetos variados.
O regimento mencionado faz referências ainda ao uso do ábaco ou contador mecânico indicando que o professor mostrasse no material os efetivos exercícios de contagem. A ideia pedagógica consistia em tentar não perder de vista as orientações do método intuitivo. No que diz respeito ao termo contador mecânico, ao que tudo indica, trata-se dos ábacos em seus diversos modelos e variantes. O referido regimento previa o uso desse aparelho, mas, ao mesmo tempo, esclarecia que os mesmos seriam adquiridos com recursos do Império, fazendo ainda a ressalva de que tal exigência se efetivaria quando fosse possível adquiri-los. Assim, se por um lado havia uma apropriação do discurso pedagógico circulante na época, em favor do uso dos aparelhos de ensino, por outro, a determinação oficial não garantia os recursos necessários para aquisição dos mesmos.
Os exemplos destacados revelam a existência de uma estreita conexão que permeia o espaço mais amplo da cultura escolar, destacando tipos diferenciados de materialidade. Um deles passa pela apropriação do texto impresso e o outro constituído por objetos que podem ser manuseados como ábacos, cubinhos de madeira, réguas, balanças, metros, entre outros. Assim, a análise da cultura escolar passa por apropriações que extrapolam os limites instituídos pelo texto impresso. A cultura escrita é uma parte importante da cultura escolar, mas esta é uma categoria bem mais ampla, incluindo outras produções.
Em torno da cultura escrita existem recursos dos quais os professores de matemática, geralmente, não abrem mão. É caso do quadro negro que funciona como uma extensão física para a formalização do raciocínio dedutivo. Mesmo que a cultura escolar escrita tenha merecido uma atenção maior na pesquisa em história da educação matemática dos últimos tempos, existe um território fértil a ser explorado quando se trata do estudo de materiais criados para o ensino da matemática.
Desde o início do século XX, além do tangram, outros recursos semelhantes são divulgados em publicações que circulam nos chamados laboratórios de ensino. Dessa maneira, há uma dinâmica evolutiva das abordagens metodológicas na qual aparecem traços de valorização da dimensão experimental do conhecimento matemático. Estamos nos referindo à trajetória de produção, difusão e de apropriação desses materiais no quadro histórico da educação matemática. Desse modo, em consonância com a valorização crescente da pesquisa sobre os manuais escolares de outros tempos, os materiais de ensino não impressos fornecem traços do pensamento pedagógico que acompanhou o movimento de expansão da instrução pública escolar para as classes populares.
O interesse pelos estudos históricos da cultura material escolar foi ampliado pela chamada viragem antropológica, na década de 1970, no quadro de redefinição do pensamento histórico. (Burke, 1997) Os líderes da Escola dos Annales sinalizaram, desde a década de 1930, a importância de diversificar os temas motivadores da pesquisa histórica. A antiga abordagem positivista centrada na história política e militar, contada a partir da visão dominante, passou a ser questionada e, por esse caminho, a nova história militou em favor de um novo olhar de valorização das culturas, de modo geral.
Aritmômetro de Arens
Ferdinand Buisson destaca a simplicidade da utilização didática dos antigos ábacos, inventados por diferentes povos, para facilitar os cálculos aritméticos. No quadro da expansão da instrução escolar popular, foi resgatado com o acréscimo de mais alguns componentes para explorar o ensino das medidas do modo experimental, e o conjunto foi então batizado como sendo os aritmômetros escolares. O referido autor observa que vários educadores belgas estavam emprenhados na criação desses instrumentos. (Buisson, 1887) Entretanto, o destaque das vantagens de utilização do material vem acompanhado de uma observação quanto às reservas desse procedimento, quando o professor não consegue ultrapassar o nível da materialidade imposto pelo recurso. Fica evidente que a necessidade de sua utilização vem acompanhada também da prática pertinente ao professor em saber a hora de deixar de usar o material e levar o alunos aos primeiros ensaios de abstração.
A difusão do aritmômetro de Arens, modelo desenvolvido pelo irmão lassalista Anton Ahrens, cujo nome religioso era Irmão Marianus, era indicado para o ensino inicial das quatro operações fundamentais da aritmética, das propriedades do sistema de numeração decimal e também para a exploração do sistema métrico decimal. Trata-se de um material aperfeiçoado ao longo de vários anos de experiência dos Irmãos Lassalistas no campo da educação. O nome de Anton Arens está inscrito na história do Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs, fundado na cidade de Reims, França, em 1680, por São João Batista de La Salle. Irmão Marianus esteve presente na Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro, em 1883, acompanhando a comitiva belga. Dom Pedro II assistiu à conferência sobre o funcionamento do aparelho e para expressar o júbilo imperial prestou homenagem ao religioso concedendo-lhe a Comenda da Ordem de Cristo.
As possíveis aplicações desse aritmômetro foi objeto de uma extensa explanação do professor de Aritmética da Escola Normal do Município da Corte, no ano de 1884. É o que consta no relatório do diretor da escola e submetido à congregação do estabelecimento, em sessão de 12 de janeiro de 1885. Este relatório destaca que o ensino literário estava se desenvolvendo no sentido de valorizar os aspectos mais práticos das disciplinas, como deveria ser na opinião expressa pelo diretor, informando que escola havia acabado adquirir o utilíssimo aparelho, denominado Aritmômetro de Arens, deixando claro que o mesmo estava sendo utilizado pelo professor encarregado de explicar as propriedades do sistema de numeração decimal e do sistema métrico decimal. [Relatório do diretor da Escola Normal do Município da Corte apresentado à congregação em 12 de janeiro de 1885, pág. 9]
Após assistir à conferência proferida pelo Irmão Marianus e ter se impressionado com sua possível aplicação prática, o Imperador ordenou a imediata aquisição de cem unidades para que fossem distribuídos pelas escolas públicas do Rio de Janeiro. Assim, Francisco Antunes Maciel, no exercício do cargo de Ministro dos Negócios do Império e atendendo ao desejo do soberano monarca, providenciou a compra dos mencionados aparelhos, pelo preço total de oito mil francos. De acordo com as palavras do ministro, o uso desses aparelhos poderia auxiliar muito o ensino do cálculo e da metrologia.
A intenção era dotar cada das 94 escolas primárias do município da corte com um desses aparelhos, sendo que dois terços delas estavam situadas na zona urbana e as outras na zona suburbana. A decisão de efetuar essa compra foi anunciada, com muito entusiasmo, na cerimônia de encerramento da exposição. As formalidades da aquisição ocorreram no dia 24 de novembro de 1883. Acompanhando as idéias expostas pelo criador do referido aritmômetro, o ministro Antunes Maciel justificou que para ampliar a aplicação do método intuitivo seria, de fato, necessário dotar as escolas desses aparelhos. Na visão do ministro seria um sacrifício em benefício da modernidade da instrução primária pública.
Assim que chegaram os 100 aritmômetros importados da Bélgica, 86 deles foram distribuídos para as escolas primárias. Alguns foram reservados para posterior distribuição, pois nem todas as escolas estavam dotadas de um professor efetivo. Entretanto, como os professores não sabiam usar o aparelho, a distribuição foi precedida de uma conferência proferida pelo bacharel Theophilo das Neves Leão, secretário da inspetoria geral de instrução pública. Segundo consta nos relatórios, o secretário destacou a maneira como os professores deveriam usar o aparelho em sala de aula, destacando as vantagens que o mesmo apresentaria para o estudo das operações elementares. Nos relatórios subsequentes, o inspetor registra algumas reclamações de que alguns professores estavam criando outras formas de utilização o moderno aparelho. Estavam criando procedimentos metodológicos resultantes de suas próprias apropriações. Para cada estratégia criada pela instituição, várias táticas são produzidas no efetivo campo de atuação docente.
No mesmo relatório que consta a distribuição dos aparelhos, figura a distribuição de ardósias para uso individual dos alunos; caixas do Aparelho de Level para o estudo do sistema métrico, Caixa de Carpentier, entre outros. Os ábacos belgas eram considerados os modelos mais desenvolvidos da época, em vista de recursos adicionados para facilitar o estudo do sistema métrico decimal. (Buisson, 1887) Dessa maneira o uso desses aparelhos estava inserido no discurso de valorização do método intuitivo. Vários modelos deles foram criados, entre os quais são citados os de Arens, de Martinot, entre outros. Uma descrição detalhada deste último modelo é fornecida pelo dicionário de Buisson, dizendo que as unidades eram representadas por mil pequenos cubos com um centímetro de aresta; as dezenas por fileiras alinhadas de dez desses pequenos cubos; as centenas por dez dessas fileiras, formando uma placa com cem cubos pequenos. O milhar era representado por um decímetro cúbico. Com base nessa descrição, o referido aparelho, chamado de aritmômetro de Martinot, nos dias de hoje, certamente, seria reconhecido por educadores matemáticos brasileiros com o nome de material dourado, cuja difusão é geralmente atribuída à educadora italiana Marina Montessori, cujas experiências pedagógicas iniciadas em 1896.
Os aritmômetros de Ahrens circularam por outras regiões do país, como é caso do Amazonas, conforme consta em registros da instrução pública daquela unidade da federação, logo no início da década de 1890. A situação financeira dos cofres públicos amazonenses era a melhor possível. Os impostos arrecadados com a exportação da borracha permitiram ao governador Eduardo Ribeiro tentar um gesto para melhorar as precárias condições da instrução pública. Assim, o discurso em favor da modernização das práticas escolares incluía a aquisição de um aritmômetro para cada escola do Estado. Militar e fervoroso defensor dos ideais positivistas, o governador propagou entre os professores amazonenses a idéia de que o uso do referido aparelho seria a redenção de um longo período de arraso e de abandono pelo qual passou a educação local. O regulamento de 1892 previa a existência de um aritmômetro de Arens para cada escola primária do Amazonas.
Outro registro sobre a difusão do aritmômetro de Arens consta no relatório do presidente da Província da Paraíba do Norte, Antonio Herculano de Souza Bandeira, de 1886. Os professores primários paraibanos foram orientados a usar as sabias ponderações de Norman Allison Calkins, estudando as suas Primeiras Lições de Coisas, traduzidas por Rui Barbosa, em 1886. A orientação foi feita porque o governo provincial havia comprado doze exemplares da obra, os quais foram distribuídos aos professores da capital.
Para aplicar as orientações metodológicas, o presidente Souza Bandeira solicitou ao Ministério do Império o fornecimento, para uso na Escola Anexa à Escola Normal de 1º Grau, dos materiais escolares que estavam sendo fornecidos às escolas da Corte. Mesmo não sendo um procedimento rotineiro, o ministro atendeu à solicitação e enviou os seguintes materiais: um arithmometro de Arens, dez cartões do ensino intuitivo de Menezes Vieira, um quadro do sistema métrico decimal, um do Império do Brazil, vinte exemplares das Noções de Arithmetica de Manoel Olympio da Costa, Livros de Leitura de Hilário Ribeiro e 200 exemplares do Desenho linear de Abílio Cezar Borges.
Aritmômetro Fracionário
Além dos materiais belgas divulgados na Exposição Pedagógica, outro modelo de aritmômetro foi também objeto de grande admiração por parte do público e do alto escalão da corte imperial. Trata-se do modelo inventado pelo educador brasileiro Abílio Cesar Borges, o Barão de Macaúbas. Defensor da modernização do ensino e fervoroso crítico do uso da antiga palmatória, sua produção estava filiada à vertente particular da instrução primária e secundária. Proprietário de três estabelecimentos, dois na cidade do Rio de Janeiro e o outro na cidade mineira de Barbacena, o engajado educador inventou o chamado Aparelho Múltiplo-Escolar.
Após fazer várias viagens à Europa, visitar as escolas consideradas mais modernas, Abílio Cesar Borges se apropriou dos princípios defendidos no movimento de difusão do método intuitivo e sintetizou, num único, aparelho recursos destinados a diferentes disciplinas. A estratégia de difusão adotada pelo Barão de Macaúbas consiste em enviar para os presidentes provinciais centenas de textos escolares de sua autoria, prevendo a expansão do mercado consumidor. A ideia de criação do seu aparelho de ensino surgiu em 1872, quando constatou a dificuldade de alunos que assistiam às aulas de aritmética.
O Aparelho Múltiplo era formado pelos seguintes componentes: ábaco (contador de bolas), fraciômetro ou contador para ensino das frações, contador vertico-horizontal, aparelho cromático (disco de Newton), pauta musical, material para a impressão escolar, quadros para escrever, porta mapas, e sólidos geométricos. O fraciômetro, também chamado de aritmômetro fracionário, consistia na parte do instrumento considerada nova e de invenção do Barão de Macaúbas. Por outro lado, alguns conferencistas observaram aos professores que o aparelho vertico-horizontal, concebido tinha sido “inspirado” nas teorias de Jean Chaumeil, autor francês de um conhecido manual de pedagogia psicológica.
Uma apropriação didática bem distante da realidade europeia, mas que atravessou décadas na rede de produções articuladas da cultura material escolar. O aritmômetro fracionário foi objeto de uma conferência proferida por Abílio Cesar Borges que contou com a presença do Imperador. Após a realização da Exposição de 1883, por muitos ainda, o aparelho produzido pelo Barão de Macaúbas ainda circulou por vários anos por escolas brasileiras. Mais especificamente, o Aritmômetro Fracionário foi objeto de consideração, bem como do aparelho de Level para o ensino do sistema métrico decimal.
Foi o que ocorreu no Primeiro Congresso de Instrucção Primária de Minas Gerais, realizado em 1927, houve uma discussão sobre o aparelhamento escolar. O evento foi organizado pelo diretor da Instrução Pública, Noraldino Lima, e pelo secretário do interior, Francisco Campos, com a participação 450 professores e diretores do interior e da capital. Um dos temas debatidos versou sobre os materiais escolares e a conveniência ou não de traduzir manuais estrangeiros para uso em escolas brasileiras. Parte dos congressistas defendeu a importância de fundamentar as práticas em teorias pedagógicas, tais como Froebel, Montessori e Decroly, sendo este autor o mais citado.
Uma das decisões tomadas no congresso foi que para o aparelhamento escolar, seria preciso o aumentar o material destinado ao ensino de Aritmética nas escolas primárias. A invenção do mesmo autor, além da defesa de instrumentos para o ensino do sistema métrico decimal e do aparelho de Level. Assim, nos tempos republicanos, mas dominados pelas estratégias da política do café com leite, a aquisição de materiais didáticos com os recursos públicos deveria passar pelo crivo dos avaliadores dos conselhos superiores da instrução escolar, conforme notícia veiculada na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 17 de maio de 1927, p. 10.
Considerações finais
A difusão do uso dos aritmômetros no ensino das operações aritméticas e do sistema métrico decimal foi um evento que ocorreu no contexto da expansão da oferta de instrução para as classes populares, nas últimas décadas do século XIX e início do século XX. Do ponto de metodológico, prevalecia o ideal de se tentar renovar as antigas práticas da memorização e da repetição até então predominantes no estudo da matemática elementar. Foi na realização da Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro de 1883, que foi divulgado no Brasil, um modelo chamado de aritmômetro de Arens, cujo criador foi o padre lassalista conhecido pelo nome religioso de Irmão Marianus. Uma centena desses aparelhos foi adquirida e distribuída para as escolhas primárias da cidade do Rio de Janeiro.
Uma década depois da exposição pedagógica, o uso do aritmômetro de Arens foi estabelecido no regimento da instrução primária no Amazonas, em 1892. A riqueza oriunda da exportação a borracha inspirou uma instrução primária tal como estava sendo difundida na França. Nesse sentido, o regimento aprovado pelos deputados amazonenses previa a compra de um aritmômetro para cada escola pública primária daquela unidade da federação. A prescrição do uso do aritmômetro no estudo das operações numéricas esteve presente ainda no regimento interno das escolas primárias do primeiro grau do distrito federal, aprovado em 15 de janeiro de 1896. Teriam sido esses aparelhos efetivamente utilizados pelos professores primários daquela época? Resta-nos o desafio de entender como esses aparelhos de ensino do final do século XIX foram apropriados no contexto vivo da sala de aula, longe do domínio direto das instituições acadêmicas e dos interesses das empresas especializadas na comercio desses materiais.
As novas propostas foram acompanhadas pela indicação do uso de objetos concebidos para o ensino da aritmética e de outros conteúdos matemáticos. A compreensão desse momento histórico revela a importância do tema da cultura material escolar, abrangendo as fases da concepção, difusão e apropriação de recursos didáticos. A leitura histórica dos materiais didáticos permite uma visão crítica da rede de instituições existentes no entorno da escola, sobretudo, de empresas que comercializam os referidos materiais.
No contexto educacional brasileiro, foram difundidos materiais produzidos por empresas européias e alguns deles circularam por escolas primárias do Rio de Janeiro. O estudo realizado permitiu compreender que a fase inicial da expansão da educação primária coincide com um momento de valorização de aspectos práticos e úteis do ensino da matemática, originando um novo discurso em relação às práticas tradicionais. Finalmente, a conclusão deste trabalho sinaliza para a necessidade de reinvestir esforços, visando uma possível continuidade da pesquisa através de uma abordagem histórica de natureza comparativa. Esse enfoque tem sido considerado por pesquisadores como Valente (2009), entre outros. No caso de pesquisas conduzidas para desvelar o significado histórico dos materiais didáticos, a referida abordagem permitiria mostrar pontos de convergência ou distanciamento entre experiências conduzidas para tratar a dialética entre a abstração conceitual da matemática e os múltipos suportes materiais usados no ensino escolar.
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Palavras-chave: Materiais didáticos da Matemática. Método intuitivo. Cultura Material da Escola. Recursos didáticos. Didática da Matemática.
Considerações iniciais
O tema tratado neste artigo está inserido na história dos materiais didáticos usados no ensino primário da matemática, no contexto educacional brasileiro das últimas décadas do século XIX e início do século XX. O objetivo principal consiste em registrar aspectos históricos da produção, difusão e apropriação dos chamados de aritmômetros, cujos modelos difundidos no Brasil eram formados por ábacos, bastões para ensinar os princípios do sistema de numeração decimal, instrumentos para o ensino do sistema métrico decimal, quadros sinóticos para ensinar a conversão de unidades, pequenos quadros para escrever, réguas e outros dispositivos destinados à exploração das formas geométricas.
A produção desses recursos para o ensino da matemática e para outras disciplinas foi intensificada a partir da década de 1870, quando fatores políticos e econômicos levaram à expansão da instrução primária popular. Nesse contexto histórico, os aritmômetros aqui focalizados não devem ser confundidos com os aparelhos mecânicos precursores das primeiras máquinas de calcular. A necessidade dessa diferenciação consta no dicionário pedagógico organizado por Ferdinand Buisson, obra de referência para a história da educação do final do século XIX. (Buisson, 1887) Uma análise dessa fonte permite compreender aspectos do cenário educacional de circulação desses recursos criados para o ensino da matemática e de outras disciplinas.
A história dos recursos didáticos, no período focalizado, está inserida no movimento educacional de valorização do método de ensino intuitivo, cujas raízes estão associadas à pedagogia alemã do final do século XVIII. O princípio do método consistia em favorecer a formação de conceitos, colocando objetos materiais diante dos alunos e levando-os a explorar informações advindas pelos sentidos do corpo, prenunciando o desafio de articular aspectos materiais e abstratos no estudo escolar. (Saviani, 2004; Valdemarin, 2004) Um dos incentivadores desse método no Brasil foi Rui Barbosa, que traduziu as Primeiras Lições de Coisas, de Norman Allison Calkins. Publicada em 1886, essa tradução foi amplamente divulgada no Brasil e contem uma parte dedicada ao ensino da matemática. (Calkins, 1886)
O período definido justifica-se pela realização da Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro, em 1883, e percorre traços relacionados aos materiais destinados à educação matemática por pouco mais de quatro décadas. O ano de 1927 é considerado relevante por ter sido realizado, em Belo Horizonte, o Primeiro Congresso de Instrução Primária de Minas Gerais, evento dirigido pelo então secretário do interior Francisco Campos.
As ideias difundidas nesse evento resultaram numa reforma da instrução primária, restrita às escolas mineiras, porém articulada com ideias que circulavam no país. Quatro anos depois, temas tratados nesse congresso fomentaram discussões mais amplas relativas ao ensino secundário, quanto às divisões dos conteúdos pertinentes a um e outro nível da escolaridade pré-universitária. A reforma da educação instituída pelo decreto 19890, de 18 de abril de 1931, tendo à frente do Ministério da Educação, o mineiro Francisco Campos, marcaria o início de um novo período também da educação brasileira.
Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro de 1883
O governo imperial anunciou no final de 1882 a realização de um grande encontro internacional de educação, o Congresso da Instrução do Rio de Janeiro. Naquele mesmo ano, a Argentina tinha realizado o Congresso Pedagógico Internacional de Buenos Aires. Países europeus e os Estados Unidos já haviam realizado congressos semelhantes para discutir a modernização da instrução primária popular. Foi nesse clima que o congresso brasileiro foi anunciado em todas as representações diplomáticas do Império. Mas, no ano seguinte, aproximando-se da data do evento, não havia os recursos disponíveis para pagar as despesas. Houve muitas discussões políticas e a maioria dos deputados e senadores manteve-se inflexível contra a realização do evento com recursos públicos.
A solução foi reduzir o encontro para uma Exposição Pedagógica custeada com donativos doados por barões e outros conservadores. A organização do evento reduzido ficou a cargo da mesma comissão presidida pelo Conde d’Eu e secretariada por Leôncio de Carvalho. Américo Franklin de Menezes Dória foi nomeado 2º secretário; sendo nomeados vice-presidentes, o Visconde de Bom Retiro e Manoel Francisco Correa. Leôncio de Carvalho tentava ampliar as bases para implantar decisões previstas no decreto 7247 de 19 de abril de 1879. Em particular, estava definida a prioridade atribuída ao método intuitivo, tema debatido desde os meados da década de 1860 nas conferências internacionais. A intenção era adotar uma estratégia usada nos países mais desenvolvidos para mostrar ao mundo o estado de modernidade do país no campo da instrução pública.
Duas décadas antes, na Exposição Internacional de Londres de 1862, tinha sido criada uma sessão especial para apresentar materiais de ensino. Uma idéia inovadora, para mostrar ao mundo o que estava sendo feito para expandir a oferta de instrução pública popular e gratuita. (Buisson, 1887) A criação dessas sessões passou a ser uma estratégia política consorciada com empresas fabricantes de materiais escolares. Em 1854, também em Londres, foi realizada uma exposição semelhante, onde materiais escolares foram expostos e, posteriormente, doados pelos industriais para a constituição de um museu pedagógico. Assim, os professores poderiam ser treinados para usar os materiais. Mas, cada estratégia criada pelo poder institucional origina um turbilhão de táticas produzidas pelos consumidores. Dessa maneira, resta o desafio de compreender como os professores usavam, em sala de aula, os objetos expostos como símbolo da modernidade.
Os métodos de ensino anteriores estavam mais baseados na ideia do catecismo, na verbalização discursiva do professor e nas práticas de memorização e repetição. O final do século XIX marcou um momento importante na difusão de várias tecnologias inventadas com a aplicação dos conhecimentos científicos até então acumulados. Era então o momento de modernizar as práticas escolares, contemplando nessa proposta a inserção de diferentes objetos destinados ao ensino primário da aritmética e do sistema métrico decimal.
As estratégias de difusão dos materiais destinados ao ensino envolviam não somente a sua exibição física nos congressos de instrução, bem como a realização de conferências e a publicação ou indicação de obras pedagógicas para a utilização dos mesmos. Um desses textos foi escrito do professor Alambary Luz, diretor da Escola Normal da Província do Rio de Janeiro, com orientações para o ensino do cálculo mental com o uso do aritmômetro. Publicado em 1887, este texto consta nos relatórios como obra fundamental para entender a prática no método intuitivo.
Os materiais mostrados na Exposição Pedagógica de 1883, no final desse mesmo ano, passaram a compor o acervo do Museu Pedagógico, instalado na capital do Império pelos organizadores da exposição. Entre os materiais destinados ao ensino da aritmética, no período considerado, relacionamos os seguintes: ábacos, aritmômetros ou contadores mecânicos, fraciômetro ou aritmômetro fracionário, material de Martinot, aparelho de Level, caixa de Carpentier, tabelas ou tabuadas, quadros sinóticos, compêndios métricos, metros dobráveis ou usados por agrimensores, balanças, gonígrafos, tangram, conjuntos de objetos com formas geométricas, cavilhas destinados ao ensino dos números, entre outros. De modo geral, desses instrumentos eram importados da França e outros países europeus, a partir do final do período monárquico até o final da década de 1920.
A expansão da instrução primária popular levou empresas a se organizarem para fomentar a invenção, fabricação e difusão de produtos essenciais à modernização das práticas educativas. Além dos objetos indicados para o ensino da matemática, vários outros foram produzidos para as demais matérias. Essas empresas divulgavam catálogos para apresentar seus produtos, envolvendo móveis, equipamentos para ginástica, e conjuntos de materiais destinados a todas as disciplinas e em particular para atender as especificidades do ensino da aritmética elementar.
Os objetos concebidos para o ensino de uma disciplina são chamados, na linguagem adotada neste artigo, de materiais didáticos, visando considerar a influência das referências epistemológicas dos conteúdos ensinados. No campo da história disciplinas escolares, as práticas estão inseridas em raízes culturais nem sempre visíveis pela sociedade ou pelas instituições que tentam controlar a vida escolar. (Chervel, 1990) Analisar o significado atribuído aos materiais no quadro das culturas escolares permite um caminho para tratar das articulações entre as bases epistemológicas dos conteúdos e a generalidade comum aos demais planos de estudo. O desafio desse viés teórico consiste em não recair no isolamento de um objeto particular ou na generalidade das referências pedagógicas mais amplas.
Para se referir aos objetos destinados ao ensino de todas as disciplinas, normalmente é o caso do quadro negro, usamos o adjetivo pedagógico para qualificá-lo. Ainda para completar essa definição dos termos e delimitar a perspectiva teórica com a qual abordamos a história dos objetos culturais, nós optamos por usar a expressão materiais escolares, quando se tratar das condições mais amplas da educação escolar, tais como modelos arquitetônicos, mobília escolar, espaços próprios para escolas primárias, de educação infantil ou mesmo das escolas normais.
Um quarto nível de abrangência dos materiais destinados à educação de crianças, mas não necessariamente vinculado às práticas escolares, pode ser encontrado no contexto social mais amplo. Categoria essa que inclui materiais lúdicos comercializados sem uma intenção didática específica. Um exemplo desse tipo de material é o conhecido tangram, considerado por Calkins (1886) como um antigo jogo chinês que seria proveitoso no ensino doméstico das formas geométricas e na distração saudável das crianças. Não se limitando, nesse caso, ao domínio dos interesses comerciais, o autor ressalta a facilidade de construção do material pelos próprios pais, usando materiais de baixo custo.
A delimitação de diferentes graus de generalidade, desde o nível mais amplo dos materiais escolares, passando pelos pedagógicos e didáticos, não é uma simples questão de linguagem. A própria noção de cultura material escolar requer esse cuidado relativo à linguagem usada pelo pesquisador, pois o desafio de historiar esse tipo de objeto não se reduz à sua própria materialidade. Em outras palavras, mesmo focalizando um material didático, não se pode perder de vista a realidade do entorno pedagógico e das condições mais amplas da educação. As posições de um determinado momento da história fomentam a expansão da oferta de instrução primária popular e gratuita, como ocorreu no final do século XIX, dando origem a um amplo movimento pedagógico e metodológico de valorização da intuição e das condições experimentais nas práticas de ensino.
O quadro mais amplo das posições políticas, econômicas e educacionais constitui o substrato para os agenciamentos atuantes na produção, divulgação, uso e avaliação de materiais didáticos. Nem sempre as fontes permitem compreender o entrelaçamento existente entre as estratégias de difusão dos materiais e a apropriação docente que ocorre na sala de aula, território que não pode estar sob o domínio exclusivo das influências externas. Vários aparelhos escolares foram fabricados na Bélgica, pelos padres lassalistas, conhecidos como Irmãos de Instrução Cristã, instituição mantenedora de milhares de escolas primárias, secundárias e normais espalhadas por vários países. A produção, circulação e uso de materiais indicados para o ensino da matemática estavam baseadas nos princípios do método intuitivo ou das lições das coisas, denominação esta recebida no ensino das ciências. De modo geral, procurava-se valorizar o uso de recursos para servir de suporte material para iniciar o estudo das diversas disciplinas dos planos de estudo.
Os recursos materiais constituem um tema relativamente novo no campo da pesquisa em história da educação. Embora não exista uma referência teórica exclusiva para tratar o assunto, a partir da década de 1980, conceitos propostos por Chervel (1998) e compartilhados por outros autores permitiram ampliar as bases de pesquisa, propondo uma visão articulada dos conteúdos, disciplinas e mais amplamente da cultura escolar. Entre os vários objetos culturais da escola, pretendemos destacar aqueles dotados de materialidade e usados para conduzir o estudo descrito neste artigo. Dessa forma, abordarmos no quadro na educação matemática elementar uma temática que vai além dos registros impressos e que permitem o acesso histórico a uma parte expressiva da cultura escolar.
Ao considerar a cultura escolar uma complexa rede de produção circulante na sala de aula e em seu entorno, todo esforço deve ser feito para confrontar na esteira da história os filamentos que articulam os objetos didáticos aos valores educacionais com os quais o ensino primário da matemática é concebido. Dessa maneira, não se deve perder de vista os vínculos epistemológicos e as especificidades usadas em consonância com a finalidade social atribuída às disciplinas escolares. Sem avalizar a idéia de que a cultura escolar seja uma produção exclusiva da escola, ao pesquisar a história dos materiais de ensino de uma determinada época, observamos que, durante muito tempo, a atenção dos pesquisadores esteve mais voltada para os registros impressos e, de modo mais intenso ainda para os livros didáticos. De fato, esses objetos didáticos impressos ocupam uma posição de maior destaque na pesquisa, pois, de modo geral, são considerados registros estáveis de referência para conduzir as práticas escolares. Entretanto, além dos livros escolares, apostilas, cartazes, revistas e manuais existem outros impressos que servem para difundir o uso de objetos materiais inseridos na cultura escolar.
Ao aplicar o conceito de apropriação, visando compreender o movimento de difusão e circulação de objetos materiais, como o ábaco inventado pela educadora francesa Marie Pape-Carpantier, constata-se a influência de empresas que atuavam no mercado em expansão, naquele momento, em função da necessidade de abrir escolas primárias para as classes populares. Além do mais, no caso da instrução escolar, do final do período imperial, temos a influência discursiva em favor do método intuitivo e do uso de aparelhos de ensino que foram divulgados na Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro.
Os grandes fabricantes de materiais escolares visualizavam a emergência de um amplo mercado, criado com a expansão da oferta de escolas primárias populares gratuitas. No quadro desse movimento, em paralelo, muitas escolas particulares passaram também a usar tais materiais, visando modernizar as práticas de ensino compatíveis com aquele tempo de transição. Dessa maneira, ao estudar o problema da difusão de objetos da cultura escolar do período considerado, temos o desafio de compreender o funcionamento das estratégias concebidas para interligar a criação e difusão de materiais escolares, a abertura de museus escolares e realização dos congressos pedagógicos.
Relatórios elaborados pelo diretor da Escola Normal de Niteroi, do final a década de 1870, contem ideias divulgadas no Congresso Mundial de Viena e que, posteriormente, aparecem formalizadas no Dicionário Pedagógico organizado por Buisson. Nesse contexto de expansão de oferta da instrução pública para as classes populares, passou a ser um sinal de modernidade, em consonância com os interesses econômicos e políticos, a prescrição do uso de materiais para o ensino da matemática e para as demais disciplinas. Catálogos comerciais foram divulgados na época por fabricantes de materiais escolares, visando atender todas as disciplinas. No caso da matemática, os materiais visavam favorecer o ensino dos aspectos intuitivos do sistema de numeração decimal, das operações da aritmética, do sistema métrico decimal e da geometria elementar. Foi nesse clima de euforia que o governo imperial decidiu também organizar o Congresso de Instrução do Rio de Janeiro. No plano inicial, a sessão de abertura foi prevista para o dia 1º de junho de 1883.
Um regulamento foi publicado pelo ministro Pedro Leão Velloso. O programa das conferências incluía temas como jardim da infância, ensino primário e secundário; profissional e ensino superior. Quase nada foi esquecido a não ser um detalhe fundamental que eram os recursos necessários para custear as despesas. Esse foi o motivo para a não realização do congresso, tal como foi inicialmente previsto. Para contornar a situação, o congresso foi reduzido a uma Exposição Pedagógica, envolvendo somente temas pertinentes ao jardim da infância, ao ensino primário e às escolas normais.
A realização do evento tinha sido divulgada nas províncias, na Europa e nas América. Por isso o cancelamento seria um vexame político. Diante do impasse, a comissão se prontificou a realizar uma exposição pedagógica circunscrita às questões do ensino primário e das escolas normais com o custeio de donativos por eles arrecadados. Esse esclarecimento consta na memória escrita pelo engenheiro Antonio de Paula Freitas, no cargo de secretário da associação mantenedora do Museu Escolar Nacional. (Compagnoni, 1980) Este museu, tal como fora idealizado em 1854 em Londres, foi montado com doação dos materiais expostos da exposição de 1883, reforçando aqui os laços existentes entre a difusão do método intuitivo, uso de materiais concretos e a criação de museus escolares.Entre os materiais exibidos na exposição de 1883 estavam os quadros sinóticos, usados para memorizar a conversão das unidades do sistema métrico decimal, difundidos no final do século XIX. A estratégia oficial consiste em instituir o uso do material na legislação que delineava o contorno das disciplinas escolares.
Consta a indicação dos referidos quadros no regimento das escolas primárias do primeiro grau do município da corte, assinado pelo inspetor geral, Antônio Herculano de Souza Bandeira Filho, em 19 de julho de 1883. Entretanto, a definição do texto oficial não era suficiente para conduzir os sinuosos caminhos pelos quais podem enveredar uma abordagem intuitiva da matemática.Nas relações travadas entre os professores primários e a inspetoria da instrução pública, surgem então as táticas da produção docente, quase sempre, invisíveis aos olhos da burocracia oficial. Os relatórios mostram que alguns professores estavam fabricando seus próprios quadros sinóticos, despertando certa preocupação por parte dos inspetores que queriam analisar a qualidade da produção. Esse caso é ilustrativo para mostrar o embate ocorrido no campo da resistência docente porque o estudo do sistema métrico decimal deveria servir de base para as lições de coisas, na parte concernente ao ensino da matemática elementar. Os quadros e tabelas expostos nas paredes da sala de aula deveriam também orientar o método simultâneo. Todos os alunos deveriam ver a mesma coisa, contrariamente ao procedimento do método individual. O aluno deveria aprender a distinguir as unidades, seus nomes, a finalidade e o modo de usar.
Uma orientação presente no regimento acima mencionado tratava dos exercícios sobre o sistema métrico decimal. A gênese, função e funcionalidade da disciplina se concretizam nos exercícios previstos e indicados nos textos de referências. (Chervel, 1990) Tarefa didática que assume contornos bem específicos na cultura e na tradição das práticas de ensino da matemática. Naquele momento, os exercícios deveriam ser práticos e as crianças deveriam usar o metro para medir objetos diversos, móveis e a extensão da sala de aula. Havia também a orientação de usar balanças para pesar objetos variados.
O regimento mencionado faz referências ainda ao uso do ábaco ou contador mecânico indicando que o professor mostrasse no material os efetivos exercícios de contagem. A ideia pedagógica consistia em tentar não perder de vista as orientações do método intuitivo. No que diz respeito ao termo contador mecânico, ao que tudo indica, trata-se dos ábacos em seus diversos modelos e variantes. O referido regimento previa o uso desse aparelho, mas, ao mesmo tempo, esclarecia que os mesmos seriam adquiridos com recursos do Império, fazendo ainda a ressalva de que tal exigência se efetivaria quando fosse possível adquiri-los. Assim, se por um lado havia uma apropriação do discurso pedagógico circulante na época, em favor do uso dos aparelhos de ensino, por outro, a determinação oficial não garantia os recursos necessários para aquisição dos mesmos.
Os exemplos destacados revelam a existência de uma estreita conexão que permeia o espaço mais amplo da cultura escolar, destacando tipos diferenciados de materialidade. Um deles passa pela apropriação do texto impresso e o outro constituído por objetos que podem ser manuseados como ábacos, cubinhos de madeira, réguas, balanças, metros, entre outros. Assim, a análise da cultura escolar passa por apropriações que extrapolam os limites instituídos pelo texto impresso. A cultura escrita é uma parte importante da cultura escolar, mas esta é uma categoria bem mais ampla, incluindo outras produções.
Em torno da cultura escrita existem recursos dos quais os professores de matemática, geralmente, não abrem mão. É caso do quadro negro que funciona como uma extensão física para a formalização do raciocínio dedutivo. Mesmo que a cultura escolar escrita tenha merecido uma atenção maior na pesquisa em história da educação matemática dos últimos tempos, existe um território fértil a ser explorado quando se trata do estudo de materiais criados para o ensino da matemática.
Desde o início do século XX, além do tangram, outros recursos semelhantes são divulgados em publicações que circulam nos chamados laboratórios de ensino. Dessa maneira, há uma dinâmica evolutiva das abordagens metodológicas na qual aparecem traços de valorização da dimensão experimental do conhecimento matemático. Estamos nos referindo à trajetória de produção, difusão e de apropriação desses materiais no quadro histórico da educação matemática. Desse modo, em consonância com a valorização crescente da pesquisa sobre os manuais escolares de outros tempos, os materiais de ensino não impressos fornecem traços do pensamento pedagógico que acompanhou o movimento de expansão da instrução pública escolar para as classes populares.
O interesse pelos estudos históricos da cultura material escolar foi ampliado pela chamada viragem antropológica, na década de 1970, no quadro de redefinição do pensamento histórico. (Burke, 1997) Os líderes da Escola dos Annales sinalizaram, desde a década de 1930, a importância de diversificar os temas motivadores da pesquisa histórica. A antiga abordagem positivista centrada na história política e militar, contada a partir da visão dominante, passou a ser questionada e, por esse caminho, a nova história militou em favor de um novo olhar de valorização das culturas, de modo geral.
Aritmômetro de Arens
Ferdinand Buisson destaca a simplicidade da utilização didática dos antigos ábacos, inventados por diferentes povos, para facilitar os cálculos aritméticos. No quadro da expansão da instrução escolar popular, foi resgatado com o acréscimo de mais alguns componentes para explorar o ensino das medidas do modo experimental, e o conjunto foi então batizado como sendo os aritmômetros escolares. O referido autor observa que vários educadores belgas estavam emprenhados na criação desses instrumentos. (Buisson, 1887) Entretanto, o destaque das vantagens de utilização do material vem acompanhado de uma observação quanto às reservas desse procedimento, quando o professor não consegue ultrapassar o nível da materialidade imposto pelo recurso. Fica evidente que a necessidade de sua utilização vem acompanhada também da prática pertinente ao professor em saber a hora de deixar de usar o material e levar o alunos aos primeiros ensaios de abstração.
A difusão do aritmômetro de Arens, modelo desenvolvido pelo irmão lassalista Anton Ahrens, cujo nome religioso era Irmão Marianus, era indicado para o ensino inicial das quatro operações fundamentais da aritmética, das propriedades do sistema de numeração decimal e também para a exploração do sistema métrico decimal. Trata-se de um material aperfeiçoado ao longo de vários anos de experiência dos Irmãos Lassalistas no campo da educação. O nome de Anton Arens está inscrito na história do Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs, fundado na cidade de Reims, França, em 1680, por São João Batista de La Salle. Irmão Marianus esteve presente na Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro, em 1883, acompanhando a comitiva belga. Dom Pedro II assistiu à conferência sobre o funcionamento do aparelho e para expressar o júbilo imperial prestou homenagem ao religioso concedendo-lhe a Comenda da Ordem de Cristo.
As possíveis aplicações desse aritmômetro foi objeto de uma extensa explanação do professor de Aritmética da Escola Normal do Município da Corte, no ano de 1884. É o que consta no relatório do diretor da escola e submetido à congregação do estabelecimento, em sessão de 12 de janeiro de 1885. Este relatório destaca que o ensino literário estava se desenvolvendo no sentido de valorizar os aspectos mais práticos das disciplinas, como deveria ser na opinião expressa pelo diretor, informando que escola havia acabado adquirir o utilíssimo aparelho, denominado Aritmômetro de Arens, deixando claro que o mesmo estava sendo utilizado pelo professor encarregado de explicar as propriedades do sistema de numeração decimal e do sistema métrico decimal. [Relatório do diretor da Escola Normal do Município da Corte apresentado à congregação em 12 de janeiro de 1885, pág. 9]
Após assistir à conferência proferida pelo Irmão Marianus e ter se impressionado com sua possível aplicação prática, o Imperador ordenou a imediata aquisição de cem unidades para que fossem distribuídos pelas escolas públicas do Rio de Janeiro. Assim, Francisco Antunes Maciel, no exercício do cargo de Ministro dos Negócios do Império e atendendo ao desejo do soberano monarca, providenciou a compra dos mencionados aparelhos, pelo preço total de oito mil francos. De acordo com as palavras do ministro, o uso desses aparelhos poderia auxiliar muito o ensino do cálculo e da metrologia.
A intenção era dotar cada das 94 escolas primárias do município da corte com um desses aparelhos, sendo que dois terços delas estavam situadas na zona urbana e as outras na zona suburbana. A decisão de efetuar essa compra foi anunciada, com muito entusiasmo, na cerimônia de encerramento da exposição. As formalidades da aquisição ocorreram no dia 24 de novembro de 1883. Acompanhando as idéias expostas pelo criador do referido aritmômetro, o ministro Antunes Maciel justificou que para ampliar a aplicação do método intuitivo seria, de fato, necessário dotar as escolas desses aparelhos. Na visão do ministro seria um sacrifício em benefício da modernidade da instrução primária pública.
Assim que chegaram os 100 aritmômetros importados da Bélgica, 86 deles foram distribuídos para as escolas primárias. Alguns foram reservados para posterior distribuição, pois nem todas as escolas estavam dotadas de um professor efetivo. Entretanto, como os professores não sabiam usar o aparelho, a distribuição foi precedida de uma conferência proferida pelo bacharel Theophilo das Neves Leão, secretário da inspetoria geral de instrução pública. Segundo consta nos relatórios, o secretário destacou a maneira como os professores deveriam usar o aparelho em sala de aula, destacando as vantagens que o mesmo apresentaria para o estudo das operações elementares. Nos relatórios subsequentes, o inspetor registra algumas reclamações de que alguns professores estavam criando outras formas de utilização o moderno aparelho. Estavam criando procedimentos metodológicos resultantes de suas próprias apropriações. Para cada estratégia criada pela instituição, várias táticas são produzidas no efetivo campo de atuação docente.
No mesmo relatório que consta a distribuição dos aparelhos, figura a distribuição de ardósias para uso individual dos alunos; caixas do Aparelho de Level para o estudo do sistema métrico, Caixa de Carpentier, entre outros. Os ábacos belgas eram considerados os modelos mais desenvolvidos da época, em vista de recursos adicionados para facilitar o estudo do sistema métrico decimal. (Buisson, 1887) Dessa maneira o uso desses aparelhos estava inserido no discurso de valorização do método intuitivo. Vários modelos deles foram criados, entre os quais são citados os de Arens, de Martinot, entre outros. Uma descrição detalhada deste último modelo é fornecida pelo dicionário de Buisson, dizendo que as unidades eram representadas por mil pequenos cubos com um centímetro de aresta; as dezenas por fileiras alinhadas de dez desses pequenos cubos; as centenas por dez dessas fileiras, formando uma placa com cem cubos pequenos. O milhar era representado por um decímetro cúbico. Com base nessa descrição, o referido aparelho, chamado de aritmômetro de Martinot, nos dias de hoje, certamente, seria reconhecido por educadores matemáticos brasileiros com o nome de material dourado, cuja difusão é geralmente atribuída à educadora italiana Marina Montessori, cujas experiências pedagógicas iniciadas em 1896.
Os aritmômetros de Ahrens circularam por outras regiões do país, como é caso do Amazonas, conforme consta em registros da instrução pública daquela unidade da federação, logo no início da década de 1890. A situação financeira dos cofres públicos amazonenses era a melhor possível. Os impostos arrecadados com a exportação da borracha permitiram ao governador Eduardo Ribeiro tentar um gesto para melhorar as precárias condições da instrução pública. Assim, o discurso em favor da modernização das práticas escolares incluía a aquisição de um aritmômetro para cada escola do Estado. Militar e fervoroso defensor dos ideais positivistas, o governador propagou entre os professores amazonenses a idéia de que o uso do referido aparelho seria a redenção de um longo período de arraso e de abandono pelo qual passou a educação local. O regulamento de 1892 previa a existência de um aritmômetro de Arens para cada escola primária do Amazonas.
Outro registro sobre a difusão do aritmômetro de Arens consta no relatório do presidente da Província da Paraíba do Norte, Antonio Herculano de Souza Bandeira, de 1886. Os professores primários paraibanos foram orientados a usar as sabias ponderações de Norman Allison Calkins, estudando as suas Primeiras Lições de Coisas, traduzidas por Rui Barbosa, em 1886. A orientação foi feita porque o governo provincial havia comprado doze exemplares da obra, os quais foram distribuídos aos professores da capital.
Para aplicar as orientações metodológicas, o presidente Souza Bandeira solicitou ao Ministério do Império o fornecimento, para uso na Escola Anexa à Escola Normal de 1º Grau, dos materiais escolares que estavam sendo fornecidos às escolas da Corte. Mesmo não sendo um procedimento rotineiro, o ministro atendeu à solicitação e enviou os seguintes materiais: um arithmometro de Arens, dez cartões do ensino intuitivo de Menezes Vieira, um quadro do sistema métrico decimal, um do Império do Brazil, vinte exemplares das Noções de Arithmetica de Manoel Olympio da Costa, Livros de Leitura de Hilário Ribeiro e 200 exemplares do Desenho linear de Abílio Cezar Borges.
Aritmômetro Fracionário
Além dos materiais belgas divulgados na Exposição Pedagógica, outro modelo de aritmômetro foi também objeto de grande admiração por parte do público e do alto escalão da corte imperial. Trata-se do modelo inventado pelo educador brasileiro Abílio Cesar Borges, o Barão de Macaúbas. Defensor da modernização do ensino e fervoroso crítico do uso da antiga palmatória, sua produção estava filiada à vertente particular da instrução primária e secundária. Proprietário de três estabelecimentos, dois na cidade do Rio de Janeiro e o outro na cidade mineira de Barbacena, o engajado educador inventou o chamado Aparelho Múltiplo-Escolar.
Após fazer várias viagens à Europa, visitar as escolas consideradas mais modernas, Abílio Cesar Borges se apropriou dos princípios defendidos no movimento de difusão do método intuitivo e sintetizou, num único, aparelho recursos destinados a diferentes disciplinas. A estratégia de difusão adotada pelo Barão de Macaúbas consiste em enviar para os presidentes provinciais centenas de textos escolares de sua autoria, prevendo a expansão do mercado consumidor. A ideia de criação do seu aparelho de ensino surgiu em 1872, quando constatou a dificuldade de alunos que assistiam às aulas de aritmética.
O Aparelho Múltiplo era formado pelos seguintes componentes: ábaco (contador de bolas), fraciômetro ou contador para ensino das frações, contador vertico-horizontal, aparelho cromático (disco de Newton), pauta musical, material para a impressão escolar, quadros para escrever, porta mapas, e sólidos geométricos. O fraciômetro, também chamado de aritmômetro fracionário, consistia na parte do instrumento considerada nova e de invenção do Barão de Macaúbas. Por outro lado, alguns conferencistas observaram aos professores que o aparelho vertico-horizontal, concebido tinha sido “inspirado” nas teorias de Jean Chaumeil, autor francês de um conhecido manual de pedagogia psicológica.
Uma apropriação didática bem distante da realidade europeia, mas que atravessou décadas na rede de produções articuladas da cultura material escolar. O aritmômetro fracionário foi objeto de uma conferência proferida por Abílio Cesar Borges que contou com a presença do Imperador. Após a realização da Exposição de 1883, por muitos ainda, o aparelho produzido pelo Barão de Macaúbas ainda circulou por vários anos por escolas brasileiras. Mais especificamente, o Aritmômetro Fracionário foi objeto de consideração, bem como do aparelho de Level para o ensino do sistema métrico decimal.
Foi o que ocorreu no Primeiro Congresso de Instrucção Primária de Minas Gerais, realizado em 1927, houve uma discussão sobre o aparelhamento escolar. O evento foi organizado pelo diretor da Instrução Pública, Noraldino Lima, e pelo secretário do interior, Francisco Campos, com a participação 450 professores e diretores do interior e da capital. Um dos temas debatidos versou sobre os materiais escolares e a conveniência ou não de traduzir manuais estrangeiros para uso em escolas brasileiras. Parte dos congressistas defendeu a importância de fundamentar as práticas em teorias pedagógicas, tais como Froebel, Montessori e Decroly, sendo este autor o mais citado.
Uma das decisões tomadas no congresso foi que para o aparelhamento escolar, seria preciso o aumentar o material destinado ao ensino de Aritmética nas escolas primárias. A invenção do mesmo autor, além da defesa de instrumentos para o ensino do sistema métrico decimal e do aparelho de Level. Assim, nos tempos republicanos, mas dominados pelas estratégias da política do café com leite, a aquisição de materiais didáticos com os recursos públicos deveria passar pelo crivo dos avaliadores dos conselhos superiores da instrução escolar, conforme notícia veiculada na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 17 de maio de 1927, p. 10.
Considerações finais
A difusão do uso dos aritmômetros no ensino das operações aritméticas e do sistema métrico decimal foi um evento que ocorreu no contexto da expansão da oferta de instrução para as classes populares, nas últimas décadas do século XIX e início do século XX. Do ponto de metodológico, prevalecia o ideal de se tentar renovar as antigas práticas da memorização e da repetição até então predominantes no estudo da matemática elementar. Foi na realização da Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro de 1883, que foi divulgado no Brasil, um modelo chamado de aritmômetro de Arens, cujo criador foi o padre lassalista conhecido pelo nome religioso de Irmão Marianus. Uma centena desses aparelhos foi adquirida e distribuída para as escolhas primárias da cidade do Rio de Janeiro.
Uma década depois da exposição pedagógica, o uso do aritmômetro de Arens foi estabelecido no regimento da instrução primária no Amazonas, em 1892. A riqueza oriunda da exportação a borracha inspirou uma instrução primária tal como estava sendo difundida na França. Nesse sentido, o regimento aprovado pelos deputados amazonenses previa a compra de um aritmômetro para cada escola pública primária daquela unidade da federação. A prescrição do uso do aritmômetro no estudo das operações numéricas esteve presente ainda no regimento interno das escolas primárias do primeiro grau do distrito federal, aprovado em 15 de janeiro de 1896. Teriam sido esses aparelhos efetivamente utilizados pelos professores primários daquela época? Resta-nos o desafio de entender como esses aparelhos de ensino do final do século XIX foram apropriados no contexto vivo da sala de aula, longe do domínio direto das instituições acadêmicas e dos interesses das empresas especializadas na comercio desses materiais.
As novas propostas foram acompanhadas pela indicação do uso de objetos concebidos para o ensino da aritmética e de outros conteúdos matemáticos. A compreensão desse momento histórico revela a importância do tema da cultura material escolar, abrangendo as fases da concepção, difusão e apropriação de recursos didáticos. A leitura histórica dos materiais didáticos permite uma visão crítica da rede de instituições existentes no entorno da escola, sobretudo, de empresas que comercializam os referidos materiais.
No contexto educacional brasileiro, foram difundidos materiais produzidos por empresas européias e alguns deles circularam por escolas primárias do Rio de Janeiro. O estudo realizado permitiu compreender que a fase inicial da expansão da educação primária coincide com um momento de valorização de aspectos práticos e úteis do ensino da matemática, originando um novo discurso em relação às práticas tradicionais. Finalmente, a conclusão deste trabalho sinaliza para a necessidade de reinvestir esforços, visando uma possível continuidade da pesquisa através de uma abordagem histórica de natureza comparativa. Esse enfoque tem sido considerado por pesquisadores como Valente (2009), entre outros. No caso de pesquisas conduzidas para desvelar o significado histórico dos materiais didáticos, a referida abordagem permitiria mostrar pontos de convergência ou distanciamento entre experiências conduzidas para tratar a dialética entre a abstração conceitual da matemática e os múltipos suportes materiais usados no ensino escolar.
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