Retorno ao golpe de 1964
 
Luiz Carlos Pais
 
Resumo: Este artigo propõe um retorno ao Golpe Militar de 1964, tomando como referência o caso da prisão de um grupo de 15 cidadãos de São Sebastião do Paraíso, tradicional polo da cafeicultura do Sudoeste de Minas. Transportados em condições desumanas para presídios de Belo Horizonte, distante 500 quilômetros da cidade em que moravam com suas famílias e onde eram conhecidos como trabalhadores honrados. Alguns haviam pertencido ao então extinto partido comunista, outros eram trabalhistas, socialistas ou simpatizantes dos discursos reformistas do Presidente João Goulart. Os fatos históricos foram produzidos a partir de depoimentos recolhidos, cópias de processos obtidos nos arquivos do Fórum da cidade, jornais da época, documentos disponíveis no acervo do extinto Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais. Foi possível constatar que entre os motivos das referidas prisões estão a trajetória de resistência trabalhista, iniciada ainda na Era Vargas, quando houve a fundação de uma federação sindical trabalhista que assustou as velhas oligarquias da cidade, a fundação do comitê local do partido comunista, em 1946, a militância em favor do Movimento da Paz Mundial, em 1952, finalizando com a implacável ação de militares agentes da repressão política que agiram em favor das elites locais.
Palavras-Chaves: Golpe Militar de 1964. Instituições Militares. Resistência Comunista.
 
RETURN TO THE MILITARY COUP OF 1964 AND THE CASE
OF POLITICAL PRISONERS OF THE SÃO SEBASTIÃO DO PARAÍSO (MG)

 
Abstract: This paper proposes a return to the military coup of 1964, with reference to the case of the a group of 15 citizens of the São Sebastião do Paraíso, traditional pole of coffee southwest of Minas. Transported in inhumane conditions for prisons in Belo Horizonte, 500 km from the city where they lived with their families and where they were known as workers. Some had belonged to the then former communist party, others were labor, socialist or supporters of reformist speeches of President Joao Goulart. Historical facts were produced from collected testimonials, copies of processes obtained in the city's Forum archives, newspapers of the time, documents available in the library of the former Department of Political and Social Order of Minas Gerais. It was found that among the reasons of these arrests are the trajectory of labor resistance also started in Vargas, when there was the foundation of a labor union federation that scared the old oligarchies of the city, the foundation of the local committee of the Communist Party, in 1946, the activism in favor of the Movement of World Peace in 1952, ending with the relentless action of military agents of political repression who acted in favor of local elites.
Key Words: Military Coup of 1964. Military Institutions. Communist resistance.

Considerações iniciais

O objetivo deste artigo consiste em propor um retorno ao Golpe Militar de 1964, nesse momento que se comemora meio século do início dos terríveis anos de repressão, tomando como referência um caso, entre tantos outros que existem no campo da constante Resistência Brasileira. De um lado, estão estratégias das instituições militares que se consorciaram com grupos civis e financistas, lideradas pelo governador Magalhães Pinto, do outro, estão as mil táticas de enfrentamento discreto produzidas nos labirintos do interior mineiro. Trata-se desvelar o caso da prisão de um grupo de 15 cidadãos de São Sebastião do Paraíso, um tradicional pólo da cafeicultura de Minas. As origens da cidade remontam aos últimos dias do período colonial e estão pontuadas de embates protagonizados por trabalhadores que aprenderam, desde os tempos do pelourinho, a não se curvarem diante dos velhos coroneis. Os 15 presos eram conhecidos na cidade, pais de família, homens de bem, trabalhadores, comunistas e socialistas. Entre eles, meu pai, o sapateiro José Paes. O grupo foi transportado para presídios de Belo Horizonte, sendo que a maioria permaneceu na Penitenciária de Ribeirão das Neves, na então zona rural da capital mineira.

Alguns deles, entre os quais José Paes, Carlos Gaspar e Osório Rodrigues, haviam liderado, em 1946, a instalação do comitê local do Partido Comunista do Brasil (PCB), episódio cujos traços constituem uma parte deste artigo. Outros eram militantes do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), liderados pelo barbeiro Geraldo Borges Campos, que fundou um sindicato rural na tradicional cidade cafeeira. Um terceiro subgrupo reunia simpatizantes do presidente João Goulart ou acreditavam nas ideias “revolucionárias” do brizolismo. Essa pequena divisão ilustra muito mais do que as pequenas questões da história local. As três correntes podiam, por exemplo, participar de reuniões conjuntas para criar um dos pequenos comandos nacionalistas defendidos pelo eloquente líder gaúcho.
Os fatos foram produzidos a partir de depoimentos e conversas que mantive com os protagonistas da história. Apenas um dos 15 detidos ainda permanece agraciado pelos anos longevos da serenidade. Não quer mais falar do assunto. Além desse material humano devo acrescentar a memória íntima do meu pai, já falecido, e de meus familiares, sobretudo de minha irmã mais velha que me ajudou a recompor os fragmentos. Também fui bater às portas do Fórum local, acompanhado de um advogado experiente. Resgatei perfeitas cópias de um vasto material que foi usado para montara a narrativa. Ainda quanto às fontes, tenho em mãos parte do acervo do núcleo comunista, porque meu pai era o secretário daquela pequena instituição. Procurei ainda traços da história em jornais da época, na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional. Para finalizar, analisei centenas de páginas no acervo digital do extinto Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais (DOPS-MG).

Este foi o caminho percorrido para constatar que, entre os motivos das prisões dos paraisenses, estavam episódios locais associados às questões globais da história mais ampla do país. Assim, tentei persistir na tarefa de relacionar as singularidades do interior mineiro com os eventos universais que provocaram tanta violência nos anos de ditadura. Preservar essa dialética entre questões locais e globais foi um pressuposto com qual este texto foi escrito (CHARTIER, 2007). Foi preciso então exercitar um retorno aos meados da década de 1930, para enxergar as disputas ocorridas em 1964.

No início da Era Vargas, a cidade tinha sido palco de manifestações em favor da Aliança Nacional Libertadora, sendo esta a razão mais distante pela qual as férteis terras cafeeiras foram também generosas na produção de comunistas. Ainda nessa mesma época, ocorreu a criação de uma instituição até então desconhecida. Líderes trabalhistas locais criaram a Federação Sindical Trabalhista do Sul de Minas. Vários documentos sobre esta trincheira de resistência estão disponíveis na pasta 4979, do acervo do DOPS-MG (PAIS, 2014). A criação dessa federação assustou a velha oligarquia. Posteriormente, na década seguinte, ocorreu ainda a fundação do comitê local do Partido Comunista do Brasil (PCB), em 1946. São eventos que precederam a implacável ação de militares agentes da repressão política que agiram em serviço das elites locais, em 1964.
As cinco décadas que se passaram desde o golpe estão permitindo o aparecimento de trabalhos que nem sempre têm a clareza desejada para uma abordagem mais objetiva e menos emocional da história. Nesse sentido, confesso, logo de início, que mesmo tendo longa vivência na seara das ciências exatas, não posso prometer ao leitor que o texto esteja isento de trechos impregnados de lembranças pessoais. Mas, por outro lado, creio que esse aspecto está compensado, na totalidade do texto, pela apresentação de vários documentos com os quais os fatos foram compostos.

Eventos locais, regionais e nacionais referentes ao golpe de 1964 começam a ser tratados, nos últimos anos, na interface entre história, memória e jornalismo. Apesar das dificuldades em fazer esse tipo de registro para recompor o passado recente, penso que todo esforço deve se feito para aproximar tudo o que for possível para compor a história. Trata-se da tarefa de escrever a história e que somente poderá resultar de um esforço coletivo, admitindo o espaço para as visões diferentes que possam surgir. Artigos, depoimentos, memórias, trabalhos de pesquisa ou publicações de abrangência mais ampla compõem a totalidade historiográfica.

O impulso inicial para escrever a história começou a se formar em minha consciência de menino de 9 anos de idade. Por esse motivo, parte desse registro pertence à esfera da memória, a qual se encontra articulada com documentos que fornecem subsídios para a sustentação dos fatos históricos. Este despertar se deve ao fato de eu ter presenciado a prisão do meu pai, no dia 9 de abri de 1964, que estava no grupo dos 15 detidos. Esboços biográficos de cada um deles são apresentados na última parte deste artigo. Conheci todos eles e tive relações de amizade familiar com alguns. Por esse motivo, trata-se de um retorno guiado pelo desejo de colocar-me dentro da história. (LE GOFF e NORA, 1987)

Para manter a objetividade com que os fatos merecem ser produzidos, posterguei, por muito tempo, o projeto de finalizar a redação deste trabalho, pois estava dividido por certa ambivalência entre restrições subjetivas e o compromisso com a isenção. Porém, no transcorrer das últimas décadas vivenciei uma constante busca de maior serenidade para transcender o sentimento negativo em relação às cenas testemunhadas e as privações que sucederam, quando a nossa pequena sapataria permaneceu fechada, e posteriormente, sem clientes. Há ainda os momentos dolorosos, quando a polícia invadiu a intimidade de minha casa em busca de supostas provas para justificar a prisão.

Foi preciso esperar passar o tempo. Hoje, sou professor universitário na área de educação e sempre balizei minha carreira pelos caminhos da objetividade das ciências exatas e pela visão existencialista. Comecei a entender a importância de reconhecer as oportunidades proporcionadas pela vida, principalmente, nos momentos de crises. Por essa razão investi esforços para buscar subsídios para propor esse retorno. Na época, eu estava cursando o 3º ano primário. Carlos Rodrigues, filho de Osório Rodrigues, era meu colega de classe. Seu pai também estava entre os detidos. Lembro-me que no dia seguinte à prisão. Minha mãe orientou-me a não deixar de ir à escola, com minhas irmãs. Não tínhamos motivo para nos envergonharmos, mesmo diante da incerteza do que poderia acontecer.

Comecei a aprender a profissão de sapateiro com oito anos de idade. De manhã ia à escola e à tarde trabalhava com meu pai. Durante dez anos, exerci o ofício artesanal de sapateiro e por esse motivo conheci os camaradas que frequentavam o pequeno aparelho. Entre as conversas sobre política, se falava também de sonetos, romances e de música. Entre os sapatos estava “Os Miseráveis”, de Vitor Hugo. Este foi o primeiro tempo de minha formação. A convivência e as lições de uma década despertaram em mim o interesse por questões humanas e sociais que influenciaram minha decisão de ser professor.

Por volta das 18 horas do dia 9 de abril de 1964, um jipe da polícia militar, com capota de lona, parou em frente à sapataria, do outro lado da rua, em frente a uma padaria. Dentro do veículo estavam dois militares e um servidor civil da política militar, conhecido por executar qualquer serviço, alguns deles inconfessáveis. Um dos policiais era o motorista e o outro estava sentado na parte traseira, exibindo uma arma de cano longo. O motorista gritou ao padeiro, como se estivesse interessado em comprar alguma coisa. Tempo suficiente para verificar, visualmente, se o sapateiro estava no seu local de trabalho. Em seguida, o veículo foi embora e retornou, minutos depois, para efetuar a prisão. Naquela hora do dia, quase todos os outros 14 paraisenses já estavam recolhidos na antiga cadeia. Na esquina mais próxima formou um aglomerado de pessoas e familiares que queriam saber o que estava acontecendo, mas os policiais impediam qualquer aproximação.

Em frente ao prédio da delegacia estava estacionado um velho ônibus que conduziu o grupo a Belo Horizonte. O registro desses detalhes foi possível graças à memória familiar e coletiva dos próprios protagonistas da história. Por muitos anos, após a prisão, as peças do quebra-cabeça foram sendo unidas umas às outras. Por esse motivo, essa narrativa está acompanhada da intenção de contribuir na produção da história, fornecendo traços para que os historiadores interessados possam retornam ao tema. Todos os paraisenses envolvidos foram generosos em revelar suas experiências pessoais no cárcere e nos tribunais. Pude perceber melhor a grandeza desses cidadãos, cujos ideais transcendem as diferenças pontuais. Para entender os eventos, no cenário local e nacional, é preciso retornar à década de 1930, quando os trabalhadores se despertaram para o desafio de se organizarem. Por esse motivo, se faz necessário registrar a ocorrência de manifestações ocorridas, em favor da Aliança Nacional Libertadora (ANL), convergência momentânea de forças comunistas, socialistas, sindicais, entre outras frentes de resistência política e social.

Aliança Nacional Libertadora

Desde os meados da década de 1930, quando ocorreram as primeiras rebeliões de militares insurgentes nos quarteis do Rio de Janeiro, no contexto da Intentona Comunista, há registros de agitações no Sul de Minas. Em função dos objetivos deste artigo, voltei minha atenção para uma parte delimitada desse vasto território que é o Sudoeste Mineiro, onde se localiza Paraíso. Portanto, o retorno proposto envolve cerca de três décadas que antecederam os acontecimentos de 1964, no qual são destacados eventos situados na interface da história regional e nacional.

Embora os principais centros de difusão ideológica estivessem distantes, os ideais propagados se alastraram como rastilho de pólvora pelos interiores de Minas. Nos meados da década de 1930, as consequências da grande crise econômica compunham um quadro de falência das antigas estratégias cunhadas na Velha República. O Pacto de Ouro Fino não mais funciona e carrasca mineira perdia suas armas. Anos depois, o início da Segunda Guerra trouxe mais desalento para a economia cafeeira. Diferentes frentes sociais se uniram para combater os redutos conservadores. Esta frente era formada por comunistas, socialistas, trabalhistas, tenentes, entre outros grupos sociais. Nesse clima de confronto foi organizada a ANL, cujos opositores eram adeptos da Ação Integralista Brasileira (AIB), defensora da ideologia nazi-fascista, que estava em expansão na Europa.

Foi nesse contexto de acirradas disputas extremistas que o Sudoeste Mineiro presenciou a difusão de vários núcleos integralistas e comunistas. Existe uma vasta documentação no acervo do DOPS-MG que reúne traços da presença dessas duas instituições (ANL e AIB) não somente em Paraíso como em outras cidades da região. Essas fontes revelam que o grupo de integralistas paraisenses foi formado a partir de contatos oriundos de São Tomás de Aquino, que, por sua vez, estava associado ao grupo de Cássia. Dois municípios próximos do centro da história aqui relatada.

O delegado de Paraíso enviou radiograma à polícia da capital, comunicando que não sabia da existência de núcleos extremistas na cidade. Entretanto, atento ao cumprimento de seus deveres, o delegado informou que estava no encalço de indivíduos que haviam distribuído alguns boletins de propaganda das ideologias da ANL. As investigações davam conta que os boletins tinham vindo de Ribeirão Preto (SP), onde havia um núcleo daquela organização. De fato, para ampliar as bases da pretendida revolução, surgiram grupos de apoio ao movimento, reunindo comunistas, socialistas e trabalhistas, entre outros opositores das oligarquias que dominaram as primeiras quatro décadas do período republicano.

A pasta 4978 do acervo digital do extinto DOPS-MG reúne 67 documentos, de 1935 a 1962, que permitem rastrear a história recente, tanto no sentido dos eventos locais como no cenário mais amplo do país. Entre outros assuntos, esta pasta contém documentos relacionados à difusão dos ideais defendidos pela ANL.

Comitê do Partido Comunista

O final da Segunda Guerra, em 1945, criou o clima de esperança por dias melhores. Iniciaria uma curta experiência democrática na qual os comunistas conquistaram o direito de participar das eleições. Este foi o momento que um grupo de paraisenses fundou o primeiro núcleo local do partido, no final de 1946. O entusiasmo durou pouco tempo, pois, no ano seguinte, a polícia fechou o comitê. O arquivo do núcleo foi confiscado e seus membros ficaram fichados nos arquivos do DOPS-MG.

José Paes estava com 20 anos e trabalhava numa sapataria. Tinha desenvolvido o hábito de ler jornais, revistas e obras literárias e começava a publicar os seus primeiros poemas. Além de cultivar uma paixão pela poesia, ele estava descobrindo o jogo das ideias políticas. Começou a se formar na cidade um grupo de comunistas, do qual ele fazia parte. Os membros mais experientes desse tinham sido militantes da ANL. As ideias propagadas por Luiz Carlos Prestes chegaram a Paraíso para combater a velha política integralista. O grupo se reunia três vezes por semana para ouvir em um velho rádio as notícias do conflito mundial. Mais do que ouvir notícias, eles queriam entender a conjuntura. O término da guerra provocou também o fim da Ditadura Vargas. O avanço democrático naquele momento significava abertura política e realização de eleições do executivo e do legislativo.

Com a curta experiência democrática que passou pelo país e com a anistia concedida aos presos políticos, o PCB conquistou a legalidade e as lideranças regionais voltaram a reorganizar as bases. Muitos núcleos estavam funcionando na clandestinidade, usando espaço de outros movimentos sociais, como por exemplo, o da Paz Mundial de 1951, quando José Paes foi preso pela primeira vez e processado, no contexto mundial da guerra contra a Coreia. Para recuperar essa história, fui ao Fórum local e lá recuperei parte do episódio que meu pai vivenciou com junto com seu companheiro, o fotógrafo José Sobrinho Diniz. Este foi um líder comunista que militou em São Paulo, percorreu cidades do Triângulo Mineiro e terminou seus dias, assassinado, na esquina da Rua Pimenta de Pádua com atual Avenida Ângelo Calafiori. Quiseram justificar o crime, dizendo que o líder havia se envolvido num romance proibido. A história precisa ser ainda escrita.

O motivo dessas duas prisões de 1951 foi o envolvimento dos militantes locais no Movimento da Paz Mundial, e contra a carestia do custo de vista. Mesmo com o reduzido tempo disponível para reorganizar, o partido comunismo conquistou ampla visibilidade que se estendera pela década de 1950. Retornando ao contexto de 1945, para a presidência da República, o candidato do partido, engenheiro Yedo Fiúza, ficou em terceiro lugar com 10% dos votos. Foi eleito o marechal Eurico Dutra, candidato do Partido Social Democrata (PSD), com o apoio do PTB, conquistando 55% dos votos. O brigadeiro Eduardo Gomes, da União Democrática Nacional (UDN), ficou em segundo lugar, com 35% dos votos, com os votos dos partidos coligados, alguns dos quais ainda aliados ao coronelismo que predominou desde os tempos da Velha República.

O primeiro grupo político de esquerda de Paraíso foi organizado em novembro de 1946, quando foi criado o comitê municipal do PCB. Por esse motivo, para entender o quadro político de 1964 é preciso retornar 18 anos, quando o país viveu aquele curto momento de democratização. A proposta do grupo divergia dos rumos da velha política comprometida com a prática usual nas quatro primeiras décadas do período republicano. A disputa política permanecia sendo apenas uma questão de conflito de interesses entre os coronéis que dominaram a cidade por longos anos.

Os comunistas estavam motivados a participar daquele momento da política. O retorno dos heróis da Força Expedicionária Brasileira havia renovado o orgulho nacional. Todos sonhavam com dias melhores. No contexto da Guerra Fria, começava a pressão dos Estados Unidos para que o Brasil enviasse tropas para combater na Guerra da Coreia. De um lado, estavam os interesses econômicos dos Estados Unidos se confrontavam com as pretensões expansionistas da União Soviética, centro de difusão da ideologia comunista.

José Paes tinha 24 anos quando participou da criação do comitê do PCB e assumiu o compromisso de ser secretário da organização. Mais do que uma simples afiliação partidária, amparada pela legislação da época, o jovem poeta e seus companheiros foram pioneiros na criação de uma nova orientação política, sobretudo, para as classes populares de modo geral. Um dos desafios foi conseguir os recursos para fazer funcionar o pequeno comitê. Foram criadas listas de contribuições. Cada um assumiu uma tarefa. O sapateiro assumiu a secretaria, o pintor as funções de tesoureiro e assim por diante.

Os valores arrecadados na primeira lista, com 18 assinaturas, foram registrados pelo tesoureiro no dia 28 de novembro de 1946. O total arrecadado foi de oitenta e dois cruzeiros. Alguns colaboradores, mesmo não sendo comunistas, entendiam que a fundação da legenda poderia ser um avanço político para a cidade. Por outro lado, nem todos os contribuintes se sentiam seguros em registrar seus nomes na lista, escrevendo apenas “um simpatizante”, “um camarada” ou “um companheiro”. Tenho em mãos cópias dessas listas de contribuições, as quais foram obtidas no acervo do DOPS-MG. Ainda ecoavam na memória de muitos os anos da repressão do Estado Novo, quando os partidos foram extintos e várias instituições foram obrigadas a encerrar suas atividades. Omitir o nome do contribuinte na lista foi uma estratégia para respeitar a privacidade do doador.

Tudo pareceria correr bem na militância dos comunistas. Mas, no início de 1947, o partido teve o seu registro cassado. A princípio, foi impetrado recurso junto ao Supremo Tribunal Eleitoral, mas no final do ano o presidente Dutra apoiou a cassação da legenda. Assim, no início de maio, o delegado recebeu ordens para fechar o comitê e apreender os documentos existentes no seu arquivo. Antes da busca policial, o grupo reuniu para discutir se deveriam ou não entregar os documentos. Alguns queriam incinerá-los, pois tinham dúvidas quanto às consequências da entrega. Como o comitê tinha sido criado legalmente, eles decidiram não teriam nada a esconder e entregaram à política os documentos.  

O auto de apreensão do arquivo foi lavrado no dia 12 de maio de 1947. Além do delegado, assinaram o documento: Carlos Gaspar, Sebastião Pereira Rezende e Urgelino Pereira de Rezende, convidados para acompanhar o ato policial. Foram listados os documentos apreendidos: livro caixa, atas, correspondência, fichas preenchidas de eleitores filiados, correspondências recebidas e expedidas, uma pasta com listas de contribuições, uma pasta com cartas circulares e uma pasta com 60 fichas de inscrição em branco, 61 carteirinhas do partido e mais 51 propostas de inscrição no partido, e uma cópia dos estatutos. Conforme anotações do delegado, o arquivo foi enviado para Belo Horizonte. Os termos do seu ofício são os seguintes: “Em cumprimento à ordem de vossa senhoria, procedi a apreensão do arquivo pertencente ao comitê do partido comunista desta cidade, o qual, conforme instruções, vos remeto em registro à parte.”

Eventos da década de 1960

Para entender as agitações militares de 1964, como já foi enfatizado, é preciso articular eventos locais ao panorama político mais amplo do país. O desafio consiste em relacionar o nebuloso contexto das tramas locais às principais questões que, de certa forma, ditaram os rumos da política nacional. Por incrível que pareça, brigas de paróquia, rusgas entre caciques políticos ou acerto de contas infantis podiam permear os motivos que levaram à prisão de alguns. No núcleo da trama há muito mais do que motivação política.

Devido as suas convicções políticas, eles faziam oposição aos rumos ditados pelos governos militares. Eles apenas tinham ideias contrárias aos que apoiaram a deposição do presidente Goulart e a implantação da Ditadura. Os mais exaltados defendiam as então chamadas “Reformas de Base”. Um comício realizado no dia 13 de março de 1964, reuniu meio milhão de pessoas no Rio de Janeiro. Setores conservadores reagiram e iniciaram uma série de manifestações chamadas de “Marcha da Família com Deus para a Liberdade.” A população paraisense presenciou uma dessas manifestações, liderança do padre Mancini, agitador da extrema direita e proprietário da emissora de rádio local.

Mais do que entender a trama protagonizada pelos redutos radicais da esquerda e pelos conservadores, o objetivo desse retorno é destacar traços da trajetória dos paraisenses cujos nomes estão, hoje, registrados em documentos de valor histórico para o país. Não se trata de defender qualquer bandeira ideológica seja qual for a sua coloração. Também não podemos incorrer no equívoco de avalizar qualquer tentativa de julgar decisões que não pertencem ao nosso tempo. Por certo, o desafio maior consiste em entender o contexto da época e articular o passado aos problemas atuais (BLOCH, 2001).

Havia uma grande distância entre as questões universais tratadas nos gabinetes e nos quarteis que comandaram a implantação do regime militar e a realidade local que não oferecia riscos maiores à ordem pública. Em vista desse desencontro, o desafio consiste em relacionar tudo o que possa ser relacionado para entender as questões fundamentais da história. O agravante da denúncia feita contra os paraisenses decorreu da menção da existência de armas as quais estariam sendo, supostamente, estocadas para apoiar um possível movimento armado. No contexto das agitações da época houve centenas de outras denúncias contra comunistas e outras frentes que apoiavam o presidente Goulart.

O início da década de 1960 foi um momento marcante na história do país. O presidente Jânio, eleito com expressiva votação popular, tomou posse no dia 31 de janeiro de 1961. Para chegar ao poder ele contou com o apoio da UDN, pois estava filiado a uma legenda sem expressão. Mas, mesmo tendo recebido expressiva votação, não conseguiu eleger o seu vice. Na época, as eleições para presidente e vice não estavam atreladas em uma mesma chapa eleitoral. O vice-presidente eleito foi João Goulart. Fazia um mês que o Jânio estava na presidência, quando o general Golbery assumiu o comando do Conselho Nacional de Segurança, órgão que exerceu um papel central no serviço de inteligência dos governos militares. Dias depois, Geisel foi promovido ao posto de general e assumiu o comando de tropas em um quartel estratégico de Brasília. Concomitante a esses acontecimentos e aliado às forças da esquerda, e deputado Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas do Nordeste, viajou a Cuba, onde foi buscar apoio para plantar das bases da reforma agrária. São variáveis que convergem em 1964 e esboçam o clima de tensão daquele momento. Depois de sete meses no poder, em agosto de 1961, o presidente Jânio renunciou e os ministros militares não aceitaram a posse do vice-presidente João Goulart. Ocorreu uma divisão interna no Exército. Gaspari mostra que militares do Rio Grande do Sul apoiaram a Campanha da Legalidade, liderada pelo governador Brizola (GASPARI, 2002).

Conforme previa a constituição, o vice deveria assumir a presidência. Diante da crise, Goulart aceitou, depois de certa relutância, a imposição do regime parlamentarista, no qual teria poderes limitados. O mineiro Tancredo Neves foi indicado para ser o primeiro-ministro. No final de 1961, o clima político volta a ficar mais acalorado. As classes populares começam a perceber a importância das mobilizações e intensifica o discurso em favor das reformas estruturais de base. O deputado Francisco Julião, anuncia que a reforma agrária seria feita com base na lei ou com as armas empunhas pelos trabalhadores. Operários, estudantes, intelectuais e outras frentes de resistência urbana respondem ao apelo do líder pernambucano. As Ligas Camponesas fomentaram a criação de outros grupos de apoio à reforma agrária. O panorama político passava por um momento de tensão. Os mais radicais defendiam os movimentos revolucionários de esquerda.

O clima de 1961 motivou cerca de três dezenas de eleitores paraisenses a assinar as fichas para a reabertura do comitê local do Partido Comunista do Brasil. Esta legenda, após passar mais um período na clandestinidade, havia reconquistado a legalidade. Houve um movimento nacional para reerguer o partido e então as lideranças empreenderam esforços para reorganizar o núcleo esquerdista da cidade.

Pouco tempo depois, os eleitores que solicitaram a reabertura do núcleo foram fichados pelo DOPS-MG. Seus nomes ficaram então registrados nos arquivos da polícia política. Passados 50 anos, grande parte dos arquivos dos órgãos de repressão política foi liberada para a consulta pública. Um gesto necessário para a inserção do país no cenário mundial das nações democráticas. Por esse motivo, o retorno é uma necessidade histórica e não deve ser feito sem revanchismo Nesse sentido, de motivação histórica, a liberação dos acervos da polícia política e a indenização de vítimas de tortura são avanços recentes para a construção de um país sem ônus com esse passado.

Prisão dos paraisenses

As cinco décadas que se passaram desde 1964 têm permitido a publicação de alguns depoimentos que servem para a escrita inicial da história. Mas a memória, por si mesma, não pode ser usada, isoladamente, para produzir um fato histórico. Por esse motivo é necessário ter cautela no sentido de articular tudo o que pode for possível para constituir a história. Além dos traços da memória, há vários textos jornalísticos que também exigem esse cruzamento de dados. É com esse sentimento que encontrei o livro do jornalista Leonêncio Nossa, publicado recentemente. A obra revela detalhes importantes para compor parte da história de 1964. Tendo como objetivo narrar a trajetória do militar Sebastião Curió que comandou a detenção de seus conterrâneos paraisenses, antes de atuar na repressão à Guerrilha do Araguaia. O premiado autor esteve em Paraíso e entrevistou testemunhas da história. Um dos aspectos que espertou minha atenção na referida obra foi a informação sobre a possível maneira que teria sido constituída da lista final dos paraisenses detidos. Antes que a memória local apague os traços ainda remanescentes, é preciso registrá-los para que possamos aproximar um pouco mais da história.

O golpe foi desencadeado no dia 31 de março de 1964, quando o general Mourão ordenou o deslocamento de tropas do quartel de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro. Essa movimentação deu início aos acontecimentos que levaram aos longos anos da Ditadura. A operação foi criticada pelo governador Magalhães Pinto, por entender que o general poderia ter usado muito mais armas do que usou para evitar qualquer risco. Na capital mineira, o general Guedes, comandante da 4ª Divisão de Infantaria, assumiu a chefia do movimento. Esses dois líderes tinham divergências que foram divulgadas no final da década de 1970, quando os dois publicaram suas memórias. Retornando ao contexto de Minas, no início de abril de 1964, o general Guedes tinha em mãos uma lista com os nomes de paraisenses, acusados de exercerem atividades subversivas. Era uma denúncia oriunda da cidade. Mas esta não seria apenas mais uma denúncia entre tantas outras denúncias. O caso do Grupo de Paraíso poderia estar relacionado à existência de supostas armas, o que despertou a atenção do general Guedes (GUEDES, 1979) Estava atribulado com as questões mais imediatas do golpe: deslocar tropas, definir estratégias, prender políticos socialistas, combater os focos de resistência interna e manter as redes militares e civis de informação.

Os noticiários de rádio deram ampla cobertura à proclamada insurgência anunciada, em Belo Horizonte, pelo general Guedes que não mais acataria as ordens do presidente Goulart. Em Juiz de Fora, o general Mourão anunciou que já estava com suas tropas em direção ao Rio de Janeiro. As notícias pegaram de surpresa vários chefes militares do país e agitação tomou conta de todos os quarteis. Assim, proponho um retorno ao interior mineiro.

Retornando ao momento da prisão do sapateiro José Paes, a constatação visual feita pelo policial foi para corrigir um erro cometido pelos agentes que prenderam, por engano, outro sapateiro, ao invés de prender o meu pai. O delegado determinou que fosse preso o “sapateiro da frente”, referindo-se ao próximo nome da lista. Os policiais foram então ao quarteirão, em frente ao prédio da delegacia, e prenderam o sapateiro Casemiro Potenciano do Couto que foi liberado logo em seguida. Na conversa com Casemiro, relembramos os tempos comuns das nossas sapatarias. Ele relembrou a multidão que se formou próximo à delegacia. Alguns familiares tentaram entregar algum documento, agasalho ou medicamento para os presos que já estavam dentro do ônibus. Nenhuma aproximação foi permitida. Dentro do ônibus, os policiais ordenaram que cada um sentasse sozinho. No começo da noite no mesmo dia, o ônibus partiu para um destino, até então, ignorado pelos presos e por seus familiares. Mas todos logo desconfiaram que o destino fosse Belo Horizonte. Antes, porém, do ônibus deixar a cidade, uma cena desnecessária foi arquitetada pelo tenentinho que prendera seus conterrâneos. Ele forçou um desfile do ônibus pelas ruas da cidade para exibir os presos à população. Atrás do ônibus, o pequeno comandante, de arma em punho, desfilara em um jipe sem capota, com uma das pernas para fora, exibindo uma atitude de prazer inexplicável pelos cânones dos militares honrados.

A primeira parada foi às margens da represa hidrelétrica de Furnas. O ônibus foi colocado sobre uma balsa para fazer a travessia do lago numa largura de dois mil metros. Mas, ao invés de completar a travessia, a balsa foi estacionada no meio do lago. As luzes do ônibus foram apagadas e os militares permaneceram, cerca de duas horas, aterrorizando aos presos, dizendo-lhes ser aquele o momento da execução sumária de todos. Simularam cenas de fuzilamento. Mesmo com o estado psicológico abalado, todos resistiram em silêncio. Depois desses momentos, chegaram, em um barco, mais alguns presos vindos da cidade de Passos, que entraram no ônibus, seguindo viagem para Belo Horizonte.

O ônibus chegou a Belo Horizonte no final da manhã do dia 10 de abril. Os detidos foram então levados para sede do DOPS, onde passaram o dia e pernoitaram espremidos em uma pequena cela, sentados no chão. No dia seguinte, 13 dos 15 foram levados para a Penitenciária Agrícola de Ribeirão das Neves, na região metropolitana da capital. Os outros dois, que eram portadores de diploma de curso superior, o médico veterinário Braz Alves Vieira e o engenheiro Gilberto Gaspar, foram colocados em “sala especial” no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva. A viagem até Belo Horizonte levou 14 horas devido ao tempo em que ônibus ficou parado sobre a balsa de travessia do Lago de Furnas.

Os paraisenses detidos foram colocados, dois a dois, em celas de uma ala do presídio, cuja construção ainda não estava finalizada. Faltava água na parte interna do prédio. A conexão hidráulica ainda não tinha sido feita. Diante da situação de improviso, um oficial indagou se haveria no Grupo de Paraíso algum profissional bombeiro em condições de realizar o serviço de ligação da ligação. Apresentou-se então o Guerino Paschoini que se dispõe a fazer o serviço. Foram providenciadas as ferramentas e em pouco tempo as caixas de água do prédio foram abastecidas. Dentro de cada cela, havia apenas uma torneira com água e um vaso sanitário. Sem considerar as precárias condições do ambiente e a péssima alimentação fornecida, a pressão psicológica maior foi o isolamento e a impossibilidade de estabelecer qualquer contato com as famílias. Como foi dito, nem todos os paraisenses foram levados para a Penitenciária de Ribeirão as Neves. Alguns ficaram detidos no prédio do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, onde foram improvisadas salas “especiais” para os portadores de diploma de curso superior. Presos de outras cidades foram enviados também para a Penitenciária das Neves. Outros foram para as Instalações da Aeronáutica. Parte do Presídio Feminino foi ocupada e outros ficaram detidos em celas do DOPS, onde funcionou a coordenação militar das prisões.

Inquéritos Policiais Militares

Diferentes inquéritos foram abertos pela Justiça Militar para verificar as razões que teriam motivado à prisão do grupo. Um desses inquéritos, identificado como “IPM-115”, foi instalado em 2 de junho de 1964, para apurar “atividades subversivas registradas no município de São Sebastião do Paraíso”, tendo como indiciados: Carlos Vecci Gaspar, Geraldo Borges Campos, Gilberto de Oliveira Gaspar, João Eduardo de Vasconcelos e Braz Alves Vieira. O delegado regional de Passos (MG) foi escalado para elaborar um relatório preliminar com o depoimento dos indicados. São informações disponíveis na pasta 005, documento 69, do acervo do extinto DOPS-MG. No processo estão arroladas as 17 testemunhas de acusação, entre as quais o pároco da cidade, Monsenhor Mancini, o prefeito da época, o pastor da Igreja Presbiteriana, entre outros representantes das elites locais. Ao iniciar o relatório delegado faz uma descrição do panorama social da cidade.

“São Sebastião do Paraíso é um município que conta com 15 mil almas. É uma sociedade ainda constituída de base agrária, cultivando ainda um forte sentido de feudalismo. Predomina em sua estrutura social um acentuado sentimento de coronelismo, com toda sua arrogância e prepotência, consequentemente, há um fraquíssimo índice cultural. Um forte sentimento de religiosidade envolve seus habitantes, chegando mesmo às raias do fanatismo. Com o advento da revolução passada, dado aos exageros e boatos, de mistura de religião com política, surgiu um clima de desconfiança e intranquilidade entre os paraisenses. A política dominante é a UDN, possuindo uma emissora de rádio ZYA-4, de propriedade do vigário local.”

Descrição dos fatos que deram origem ao inquérito: “Logo após a eclosão do movimento foram presos em Paraíso vários elementos, pelos militares do 12º Batalhão de Infantaria, os quais foram acusados de comunistas, sendo eles transportados para Belo Horizonte”. Ainda de acordo com o relatório elaborado pelo delegado regional, de todos os depoimentos colhidos, não foi possível materializar nenhuma culpa ao indiciado Geraldo Borges Campos, que fora acusado de agitador. Mas esse sentimento resultou das animosidades de seus adversários políticos. Peba era o líder do núcleo municipal do PTB. Por duas vezes foi candidato ao cargo de prefeito, mas não conseguiu se eleger. Era também o presidente do sindicato de trabalhadores rurais que ele mesmo fundou.

Na visão do delegado, Peba era um “sujeito de temperamento firme” e mesmo não tendo diploma de curso superior era um político inteligente e carismático. O relatório termina com a conclusão que Peba nada tinha de comunista, deixando transparecer que sua militância teria contrariado interesses de políticos locais e esta teria sido a origem das denúncias feitas contra ele. Em relação aos outros indiciados, nenhum depoimento colhido não resultou em materialidade para acusação.

Em outro inquérito, conduzido pelo primeiro-tenente Sebastião Rodrigues de Moura, consta uma relação com 11 indiciados: Gilberto Gaspar, Carlos Gaspar, Lázaro Moreira, José Paes, João Eduardo de Vasconcelos, Braz Alves Vieira, Geraldo Borges Campos, Leopoldo Bortoni, José Garcia Escobar, Mario do Prado Queirós e um nome ilegível. Esse grupo aparece custodiado pela assinatura de “Rezende Pimenta” e do então deputado estadual Delson Scarano. A folha de identificação do IPM-11 está na pasta 7 que contem 49 imagens. Quase todos os documentos desta pasta estão danificados, com nomes ilegíveis. Em agosto de 1964, temos a conclusão do inquérito presidido pelo Delegado Regional, quanto Braz Vieira e João Eduardo de Vasconcelos. “Todos os depoimentos eximem os indiciados em tela, de serem comunistas, agitadores ou subversivos (...) os mesmos foram apontados por professarem ideias trabalhistas e se primarem amigavelmente com o Peba.

Um resumo do número de detidos, nos dois primeiros meses do golpe, foi elaborado em julho de 1964 pelos agentes do departamento de vigilância social. Até aquela data tinham sido instaurados 67 inquéritos; 882 pessoas tinham sido detidas, das quais 674 estavam liberadas, outras 203 estavam liberadas sob custódia e outras cinco continuavam presas à disposição da justiça militar. Os episódios de abril de 1964, acompanhando o curso dos governos militares tiveram consequências durantes muitos anos.

Paraisenses presos em 1964

Entre os paraisenses que vivenciaram o golpe de 1964 estão aqueles que foram detidos e levados para Belo Horizonte. Estes cidadãos são os seguintes: Carlos Vecci Gaspar, Geraldo Borges Campos, José Paes, Braz Alves Vieira, Gilberto de Oliveira Gaspar, Guerino Paschoini, João Eduardo de Vasconcelos, José da Matta, José Garcia Escolar, Justino Salgado Filho, Lázaro Lopes Moreira, Leopoldo Bortoni, Mário Prado Queiroz, Ozório Rodrigues e Tertulino Ferreira Carvalhais. Além desses quinze, outros foram detidos e interrogados na própria cidade, mas não foram levados para a capital. Passaram por constrangimentos na delegacia e prestaram esclarecimentos sobre seus ideais políticos. Outros foram obrigados a pernoitar na cadeia para serem interrogados, como aconteceu com Antônio Rosa Silva, um dos funcionários da Casa America, empresa de propriedade de Carlos Gaspar. Nos próximos parágrafos, apresento dados biográficos dos paraisenses que vivenciaram esse momento da história recente do país.

Natural de Jacuí, NG, José Paes nasceu em 11 de março de 1922. Filho Margarida de Jesus e Herculano Paes. Casou-se com a costureira Terezinha Lizarelli Paes, com quem teve sete filhos. Aprendeu o ofício de sapateiro e foi alfabetizado aos 14 anos pelo professor Antônio Roque Martins que ministrava aulas noturnas em sua própria residência. O mestre lhe ensinou a arte de escrever poesias e de questionar as injustiças sociais pelo viés marxista. O sapateiro se fez membro da Academia de Cultura Paraisense. Terminou seus dias, serenamente, às vésperas de completar 90 anos de idade, quando já desconfiava da seriedade política do Partido dos Trabalhadores. Em 1946, como ele sabia redigir e tinha caligrafia, foi escolhido para ser secretário do comitê municipal do Partido Comunista. Estava entre as três dezenas de paraisenses que formalizaram, em 16 de dezembro de 1961, o pedido de legalização do comitê local do Partido Comunista Brasileiro, conforme documento arquivado na pasta 53, número 178, no acervo do DOPS de Minas Gerais.

Médico veterinário que trabalhou em Paraíso, Braz Alves Vieira (Brazinho), nascido em 21 de Maio de 1915, era funcionário público no serviço estadual de saúde animal. Estava sempre em contato com trabalhadores rurais que lhe solicitavam seus préstimos profissionais. Para os mais humildes, doava medicamentos veterinários e estava sempre disposto a uma boa conversa. Era natural da cidade de Rio Pomba, MG. Seu posto médico veterinário era instalado em um prédio na Praça Comendador João Alves. Quando esteve detido, por ser portador de diploma de curso superior, ficou em “sala especial” do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, juntamente com outros 32 presos. O jornal Correio da Manha, de 29 de abril de 1967, noticiou que Peba e Braz Alves Vieira deveriam ser postos em liberdade, por decisão do Procurador Geral da Justiça Militar que pediu justiça aos dois paraisenses, uma vez que as testemunhas teriam retificado, em juízo, declarações falsas prestadas na fase inicial do inquérito. Assim, a instância superior decidiu reformar a sentença do Conselho Permanente de Justiça da Auditoria da 4ª Região Militar, de Juiz de Fora, absolvendo os dois condenados por serem supostos agitadores sociais.

Natural de São Sebastião do Paraíso, MG, Gilberto de Oliveira Gaspar nasceu em 1933. Era filho de Carlos Gaspar e Ilea Gaspar. Formado em Engenharia Civil na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, onde militou na União Nacional dos Estudantes. Por vários anos, depois do golpe, trabalhou no setor de Engenharia da Prefeitura Municipal de Uberaba, MG, onde fixou residência e constituiu família. Ao terminar seus dias de vida, era professor da Faculdade de Engenharia daquela cidade. Para rastrear sua resistência nos porões da ditadura, basta consultar documentos da pasta 335, do acervo do extinto DOPS de Minas Gerais, em particular o de número 351.

Natural de São Sebastião do Paraíso, MG, Guerino Paschoini nasceu em 17 de março de 1931. Filho de Ângela Gilberte e José Paschoini que eram imigrantes italianos e deram origem a uma grande família muito conhecida na cidade. Guerino me recebeu em sua residência, em julho de 2013, para uma conversa amistosa sobre os episódios de 1964, quando foi preso. Amigo de José Paes e dos demais paraisenses detidos. Ele fez questão de ressaltar detalhes que servem para dignificar seus companheiros. Era mês de abril quando ocorreram as prisões e fazia um frio considerável durante as noites e madrugada. O ônibus que conduziu o grupo a Belo Horizonte, numa viagem que levou 14 horas, estava em péssimos estado de conservação. Bem próximo ao banco no qual fora ordenado a sentar-se estava faltando o vidro da janela. Entrava um vento gelado e ele estava com uma camisa de manga curta. Na medida em que a temperatura ia diminuindo cada vez mais, durante a madrugada, nas proximidades da Usina de Furnas, o amigo José Paes que usava camisa de manga comprida e portava uma jaqueta simples, ofereceu-lhe este agasalho para amenizar o frio. Para o sapateiro poeta a camisa de manga comprida era suficiente. Passados mais de 40 anos dessa pequena e grande história, encontrei Guerino no velório do meu pai. Guerino ainda relembrou muitas outras passagens que se encontram lucidamente gravada em sua fértil memória.

João Eduardo de Vasconcelos nasceu no dia 22 de maio de 1898, na Fazenda Prata de Cima, em terras que pertencem ao município mineiro de Fortaleza de Minas. Filho de Eduardo Antônio do Couto e Rita Leopoldina de Vasconcelos. Casou-se com Antônia Lúcia Vasconcelos com quem teve sete filhos. Trabalhava como funcionário do Instituto Brasileiro do Café. Por esse motivo estava sempre em contato com trabalhadores rurais. Era defensor de ideais socialistas. João Eduardo faleceu em 1986, aos 88 anos de idade. Na década de 1960, todos sabiam de suas convicções socialistas claramente assumidas nas conversas com os amigos. Gostava de estar sempre bem informado quanto aos acontecimentos políticos. Após ter sido liberado da prisão, João Eduardo respondeu a um inquérito, mas foi inocentado das acusações porque não havia cometido nenhuma ação contra a ordem política e social. São fatos produzidos a partir de documentos contidos na pasta 335, do acervo do extinto DOPS-MG.

Natural de São Sebastião do Paraíso, José da Matta nasceu em 6 de dezembro de 1913. Era filho de João da Mata Souza Martins e Maria Bárbara Martins. Era casado com a senhora Eliete Conceição da Matta. O advogado paraisense Melchior da Matta era filho do casal. José da Matta exercia a profissão de alfaiate. No documento número 360, pasta 0335, do Arquivo Público Mineiro, localizamos dados de identificação do alfaiate José da Matta, detido em 9 de abril de 1964, juntamente com outros 14 paraisenses. [Pasta 0335. Documento 360. Acervo DOPS – APM]

José Garcia Escolar era Imigrante espanhol que veio para o Brasil junto com seus pais. Nasceu em 3 de Agosto de 1909, na Província de Málaga. Morou em São Paulo, casou-se e fixou residência em Paraíso, onde era proprietário da Casa Estrela, uma loja de presentes e utilidades domésticas. O sapateiro Casemiro Potenciano do Couto tinha sua oficina instalada em frente à loja de Escobar. Por isso presenciou a sua prisão. Encontrei Casemiro em sua residência, com quase 90 anos e uma memória impressionante. Com serenidade, relembramos parte da história que compartilhamos. Fora colega de profissão do meu pai. Lembrou, com clareza, o dia em que Escobar foi preso. A polícia recrutara alguns carros de aluguel. O próprio Casemiro foi preso, mas liberado, logo de imediato. Houve discussão entre os comandantes porque os soldados haviam preso o sapateiro errado. Escobar tinha suas convicções de esquerda, mas não fazia qualquer propaganda política juntos aos seus amigos, funcionários ou clientes. Procurei Calixto Dias, que, na época, trabalhava na Casa Estrela. O patrão honesto deixou saudades. Nenhuma reclamação e agradecimento por disponibilizar aos seus funcionários dois dos principais jornais diários de São Paulo. Dizia ele que era importante ler versões diferentes de um mesmo fato.

Natural de Sengés, PR, Justino Salgado Filho nasceu em 22 de julho de 1922, mas desde a década de 1940 reside em São Sebastião Paraíso. Filho de Justino Salgado e Maria das Dores Salgado. Era eletricista e trabalhava na Empresa Elétrica Siqueira e Meireles, concessionária do serviço da energia elétrica. Percorria todas as casas, fazendo a leitura do consumo de energia elétrica. Nunca participou de nenhum partido político. Era amigo de José Paes e sempre passava na sua sapataria onde trocava ideias com os amigos sobre a vida geral da cidade e do país.

Natural de São Sebastião do Paraíso, MG, Lázaro Lopes Moreira nasceu em 11 de julho de 1921. Era filho de Balduino Lopes Moreira e de Maria Alves Moreira. Lazinho, como era mais conhecido, era funcionário dos Correios, onde exercia a função de carteiro, motivo pelo qual circulava por toda a cidade. Era comunicativo, simpático e tinha muitos amigos; sempre expressava livremente sua consciência política. Graças a uma ficha de identificação arquivada no extinto DOPS-MG, é possível registrar seu nome na história recente do país, conforme pasta 335, documento 358, do acervo do extinto DOPS-MG.

Natural de São Sebastião do Paraíso, Minas Gerais, Leopoldo Bortoni era filho de João Bortoni e Idalgina Bortoni. Nasceu em 19 de janeiro de 1918 e faleceu em 1975. Era alfaiate. Foi homenageado com a atribuição de seu nome em uma via pública da sua terra natal. Um reconhecimento aos vários serviços sociais que realizou em diferentes instituições filantrópicas da cidade. Leopoldo foi o primeiro provedor do Hospital Psiquiátrico Gedor Silveira, instituição de referência em todo o sudoeste de Minas. Foi membro da loja maçônica pioneira local. Após os episódios de 1964, participou da fundação de outra loja.

Natural de Areado, MG, Mário Prado Queiroz nasceu em 1905. Filho de Azarias Marinho Queiroz e Maria Izabel do Prado Queiroz, residia em São Sebastião do Paraíso. Durante muitos anos, trabalhou na Empresa Elétrica Siqueira Meireles, concessionária do serviço de energia elétrica. Foi homenageado com a atribuição do seu nome a uma via pública de São Sebastião do Paraíso. Como quase todos do Grupo de Paraíso, Mario Prado foi também liberado no dia 17 de abril de 1964. Conta nos documentos analisados que essa liberação teria sido “por ordem da comissão” como os demais casos.

Natural de Delfinópolis, MG, Osório Rodrigues nasceu em 28 de dezembro de 1919. Filho de Mizael Rodrigues e Achidemia de Castro. Residia em Paraíso, onde era funcionário do Banco de Crédito Real de Minas Gerais. Casou-se com a enfermeira Beatriz Fidelis Rodrigues. Foi membro da diretoria da Sociedade Beneficente Operária, quando o presidente da entidade era Carlos Gaspar. O sociólogo Carlos Rodrigues é filho de Osório e Beatriz. São informações que constam na pasta 4978, do acervo do extinto DOPS-MG.

Natural de Passos, Minas Gerais, Tertulino Ferreira Carvalhaes Filho nasceu em 9 de novembro de 1907. Era barbeiro, mais conhecido pelo apelido de Nenê Jaspe. Filho de Tertulino Ferreira Carvalhaes e Amélia de Oliveira Carvalhaes. Casou-se com Amália Campos Carvalhaes, irmã do barbeiro Geraldo Borges Campos (Peba), que também foi preso. Tertulino e Amália tiveram três filhos. Nenê Jaspe não exerceu nenhuma atividade política partidária, mas gostava de se inteirar dos acontecimentos políticos país. Acompanhando a liderança do barbeiro Peba, em conversas amistosas, expressava livremente sua consciência em favor das reformas defendidas pelo presidente Goulart. Como seus demais conterrâneos, ele foi detido no dia 9 de abril de 1964 e liberado no dia 17 do mesmo mês e ano. Nenê Jaspe faleceu em Paraíso, em 22 de novembro de 1975. Após o seu falecimento, Pedro Bispo, barbeiro que trabalhou com ele vários anos, continuou atendendo seus clientes no mesmo endereço, Rua Pimenta de Pádua, próximo ao Bar Katatokos, ponto de encontro de várias gerações de paraisenses.
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Natural de São Sebastião do Paraíso, MG, Carlos Vecci Gaspar nasceu no dia 11 de julho de 1905. Filho de José Maria Gaspar e Paulínia Vecci Gaspar. Casado com Ilea de Oliveira Gaspar, com quem teve os filhos Gilberto, Leila e Marlene. Faleceu em 24 de outubro de 1977, em Uberaba. Antes de exercer atividade comercial, Gaspar foi pedreiro, mestre de obras e correspondente do Banco do Brasil, quando não havia agência desta casa bancária na cidade. Foi um dos líderes que fundou o comitê local do partido comunista e candidatou-se a deputado estadual. Gaspar contribuiu com diferentes instituições, como a Sociedade Recreativa Beneficente Operária, a Associação Atlética Paraisense, o Operário Esporte Clube e a Associação Comercial e Industrial. Durante anos, ele foi proprietário da Casa Americana, estabelecimento que vendias alimentos, bebidas, ferragens e presentes em geral. Procurei Boaventura Rosa da Silva (o Tula), filho de Antônio Rosa da Silva, que contribuiu para recolher traços dos eventos locais ocorridos em 1964. Nessa época, Ele tinha 14 anos e fazia pequenos serviços na loja de Gaspar. Ele faz questão de lembrar que sua família é descendente de escravos africanos que foram trazidos para trabalhar nas fazendas de café da região. Reencontrei Tula como vendedor de uma casa comercial. Marcamos encontro em sua residência. Ele mostrou ter lembranças nítidas da infância, quando acompanhava, com seu pai, as animadas alvoradas organizadas pelos comunistas, todo dia 1º de Maio, para comemorar o dia mundial do trabalho. Nesse dia, um grupo de trabalhadores seguia a Banda Municipal, no trajeto entre o Estádio do Operário e a Liga Operária, onde era oferecido um lanche especial para celebrar os ideais da resistência. Lembrou ainda que, enquanto Gaspar estava detido, a polícia foi vasculhar os depósitos da casa comercial para tentar localizar alguma prova para incriminá-lo. Nada foi encontrado. Antes da busca, a polícia prendeu Antônio Rosa Filho, funcionário do estabelecimento. Ele passou a noite na cadeia, quando foi interrogado, pois a polícia queria saber onde Gaspar poderia ter escondido as supostas armas que nunca apareceram.

Natural de São Sebastião do Paraíso, MG, Geraldo Borges Campos (Peba) foi o paraisense que mais sofreu as consequências do cárcere. Ele nasceu em 1911 e faleceu em 1967, uma semana após ter sido liberado do presídio, em estado de crítico de saúde. Era barbeiro e líder trabalhista. Filho de João Borges Campos e de Isaura da Silva Campos. Casou-se com a professora e escritora Antonieta Símaro Campos. No início da década de 1960, sua barbearia estava sempre repleta de clientes. Aos sábados o movimento era bem maior porque os trabalhadores rurais vinham à cidade fazer compras e aproveitavam para cortar o cabelo e se inteirar dos ocorridos políticos. Entre uma tesourada e outra, todos ficavam atentos às suas posições políticas em favor dos trabalhadores.

O barbeiro conhecia os direitos trabalhistas e sua consciência política o levou a fundar um sindicato para defender os trabalhadores rurais. Grande parte destes não sabia ler e nem fazer os cálculos para receber seus salários. Recorriam ao líder trabalhista para fazer os cálculos. Essa militância incomodou os patrões que ainda não pagavam o salário mínimo. Em caso de dúvidas, trabalhadores recorriam ao Peba que os auxiliavam a redigir cartas ao promotor. A tática de resistência funcionava porque a justiça determinava o pagamento dos valores devidos. Por esse motivo foi preso, pela primeira vez, em 1956. Muitos trabalhadores rurais que não tinham condições de pagar os serviços de um advogado diplomado recorriam a um “advogado prático” ou rábula, como era chamado esse tipo de assistente social. Mesmo não sendo portador de diploma superior, tinha sabedoria suficiente para reivindicar justiça. Essa atividade era reconhecida pela justiça de outrora, quando a defensoria pública tinha pouca abrangência.

No acerto do DOPS-MG estão cópias de um Boletim, assinado pelo líder trabalhista, esclarecendo os trabalhadores rurais quanto ao valor do salário mínimo de 1956. Um novo salário mínimo tinha sido aprovado pelo presidente Juscelino e Peba queria esclarecer para os trabalhadores. Este boletim foi usado como pretexto para justificar a sua prisão em novembro daquele ano. A divulgação do boletim estava aliada ao projeto de fundar o primeiro sindicato de trabalhadores rurais da cidade. Mas, essa iniciativa pioneira envolvia o desafio de enfrentar a reação da ordem política estabelecida. Uma das consequências dessa reação foi sua primeira detenção, naquele ano. Analisei o interrogatório prestado por Peba, na cadeira de Paraíso, conforme consta na pasta 277, do acervo do extinto DOPS-MG. O delegado tenta se esquivar, dizendo que teria recebido “ordens superiores” para efetuar a sua prisão. Ao sair da cadeira, de imediato, escreve um relatório ao governador, pedindo explicações. Fica evidente que a “ordem” teria saído de alguns fazendeiros locais. Assim, passados oito anos e depois de ter sido candidato a prefeito em dois pleitos eleitorais, sem sucesso, foi incluído na lista dos “agitadores”. Foi condenado a dois anos de reclusão, mas, por desleixo judicial, ele permaneceu três anos em um presídio. No dia 28 de julho de 1967, o Juiz Auditor da 4ª Região Militar de Juiz de Fora, comunicou ao Secretário de Segurança Pública de Minas que o Peba havia sido absolvido pelo Supremo Tribunal Militar, das acusações feitas contra ele. Dias antes de sair essa comunicação, ele tinha sido liberado da cadeira, em estado crítico de saúde, consequência de um enfarto sofrido na prisão. Termina seus dias de vida, uma semana depois.

Para uma síntese não conclusiva

Os traços históricos coletados e esboçados neste artigo suscitam outros retornos para entender as entrelaçadas articulações entre eventos locais e globais. Sem mesmo ter a pretensão de postular o estatuto de um trabalho conclusivo, os vários documentos inseridos na narrativa permitem levantar questões para realizar outras pesquisas. Essa reflexão feita depois dos momentos mais calorosos permite avaliar a importância de preservar e defender valores assumidos em favor de ideais humanos, sociais e democráticos. Assim, é preciso ter consciência das consequências dos atos assumidos por cada protagonista, sem perder de vista os conflitos institucionais envolvidos naquele momento.

Por certo, ao fazer esse tipo de reflexão, individual e coletiva, somos desafiados a conquistar um grau maturidade em nível da intimidade emocional de cada um e da convivência social mais ampla. Um dos aspectos externos dessa questão, no sentido de permitir certa referência objetiva, consiste em ter clareza quanto às práticas exercidas pelas redes articuladas de instituições que atuaram, por longos anos, na repressão política e social do país. Uma das estratégias usadas pelos órgãos de repressão consistia em manter uma constante vigilância sobre da vida das pessoas fichadas em seus arquivos.

Por vários anos, depois de 1964, alguns paraisenses que vivenciaram a história narrada tiveram dificuldade em obter documentos públicos, devido à exigência de obter um atestado de “bons antecedentes”, o qual era fornecido pela Secretaria de Segurança Pública do Estado. Esse retorno oportuniza mostrar que a história sempre tem muito a ver a vida de cada cidadão, articulando a singularidade de cada indivíduo com a generalidade concernente à sociedade.

No caso pesquisado, os episódios locais e globais, ocorridos há meio século, entrelaçam diferentes instituições políticas, policiais, religiosas, econômicas, entre várias outras, cada qual arquitetando suas diferentes estratégias de poder. Porém, cabe lembrar que, para cada estratégia produzida por uma rede institucional, surgem táticas imprevisíveis, labirintos de resistência que podem escapar aos olhos vigilantes do poder. Michel De Certeau tem razão! (DE CERTEAU, 1996)

FONTES E REFERÊNCIAS

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PAIS, L. C. Federal Sindical Trabalhista Sul de Minas. Jornal do Sudoeste. Edição de 20 de Maio de 2014. São Sebastião do Paraíso. 2014.
PASCHOINI, R. J. Presos políticos de São Sebastião do Paraíso de 1964. Monografia de histórica. Edição do autor. 2009
 
 
Artigo publicado na Revista Eletrônica História em Reflexão. Volume 8. N. 16. 2014. Universidade Federal da Grande Dourados.