Primeiras Experiências
 
Luiz Carlos Pais
 
A construção do conhecimento escolar deveria estar relacionada a um processo de transposição envolvendo outros conhecimentos sobre os quais o aluno exerça um relativo domínio. Com isso fica claro que em termos de aprendizagem não há possibilidade de se pensar num tipo de geração expontânea do saber. A dificuldade da aprendizagem surge por que essa transposição não é um procedimento natural. Para transpor é necessário romper com alguns obstáculos, superar algumas condicionantes que tentam delimitar o conjunto de saberes detido pelo sujeito. Assim, diante das novas experiências, quando se dispõe a buscar um novo conhecimento, surgem as primeiras dificuldades exigindo do aprendiz a superação das primeiras barreiras. Os primeiros obstáculos podem estar também associados às primeiras experiências de aprendizagem e essas não se constituem em base segura para a edificação de um conhecimento objetivo. Essa observação pedagógica é necessária de ser colocada no quadro didático para a tentativa de um espírito científico.
 
Inconsciência, intuição e aprendizagem escolar
 
A transposição dos conhecimentos do senso comum para os saberes escolares tende a ser dificultada pela possibilidade de predomínio de um estado de inconsciência para a aprendizagem escolar. Mesmo que nas atividades do cotidiano o aluno já esteja familiarizado com inúmeras situações envolvendo algum tipo de aprendizagem, na sua inserção ns atividades escolares ele é posto em contato com um novo tipo de aprendizagem. Um novo saber exige um nova aprendizagem. Não se trata apenas de mais uma aprendizagem, trata-se de uma aprendizagem essencialmente diferente daquela valorizada pelo sendo comum. A dinâmica de formalização, de sistematização, de registro, a explicitação da prática da argumentação, a exigência de uma coerência mínimo da explicação do saber, características do saber escolar, redimensionam qualitativamente essa nova aprendizagem.
 
 
Disponibilidade para aprender o novo, aceitar o desafio dos problemas
Cultivo intelectual pelos desafios da aprendizagem,
 
O conhecimento intuitivo é imediato, não exige nenhum processo de dedução lógica para sua explicitação. Sua utilização no saber cotidiano é tão natural que nesse tipo de discurso normalmente não se faz distinção entre o que é intuitivo ou que é fundamentado na razão.
 
O saber cotidiano caracteriza-se por uma intensa componente intuitiva que na maioria das vezes dispensa qualquer exigência de formalização.
 
Nem mesmo o conhecimento científico está totalmente livre da intuição, uma vez que suas noções fundamentais são argumentadas com base nesse tipo de pensamento.
 
Dessa forma é natural encontrá-la ainda nos saberes escolares.
 
Assim, o espírito de abertura para as novas aprendizagens escolares deve ser cultivado contra a prática predominante do conhecimento do cotidiano, pois ela é essencialmente diferente.
 
É necessário diferenciar o saber cotidiano do saber escolar.
A atividade escolar é específica da escola. Não se trata de conceber uma escola isolada do mundo-da-vida, pelo contrário, trata-se de inserir nesse uma interpretação científica dos fenômenos que envolvem a própria vida.
 
 
O livro didático e os obstáculos epistemológicos
 
Que relação é possível estabelecer entre os livros didáticos e os obstáculos epistemológicos? De que forma os livros didáticos podem estar contribuindo para consolidar os obstáculos epistemológicos? Quando os primeiros contatos com o conhecimento se dá através do livro didático. A propósito da análise dos livros didáticos destinados ao ensino de ciências, é possível destacar os seguintes aspectos. É possível identificar a existência de um processo de melhoria qualitativa do livro didático. Os destaques aqui descritos se referem a uma grande maioria de livros que ainda não inserem nesse mencionada melhoria.
 
 
 
Uma considerável parte dos livros didáticos não apresenta uma diferença significativa quer seja quanto à forma de apresentação do conteúdo ou quanto aos pressupostos educacionais subjacentes.
 
Quanto se trata de verdadeiras cópias uns dos outros,
 
Alguns apresentam um conteúdo totalmente descontextualizado que nem se preocupa com uma formalização mínima dos saberes escolares nem se aproximam dos problemas significativos do cotidiano do aluno.
 
Conhecimento estático muito mais voltado para as exigências burocráticas dos exames de ingresso à universidade do que com uma verdade aprendizagem das ciências...
 
chega a passar como natural; mas não é; já não é natural.
 
Predomínio da apresentação do conteúdo numa dinâmica exclusivamente dedutiva e no outro extremo com base em raciocínio indutivos contrários à formação de um espírito voltado para a ciência.
 
Apresentação do conhecimento escolar como o caso particular de uma teoria geral, seu vínculo estaria direcionado somente para o saber científico.
 
Seu caráter orgânico é tão evidente que será difícil pular algum capítulo.
 
A linearidade de sua apresentação do conteúdo contempla somente as características metodológicas das ciências..
 
Passadas as primeiras páginas, já não resta lugar para o senso comum; nem se ouvem as perguntas do leitor.
 
Atropelando a aprendizagem, por vezes, o livro didático formula suas próprias perguntas e ele próprio comanda as respostas.
 
 
 
A propósito da relação do conteúdo do livro com o conhecimento do cotidiano:
 
Peguem um livro do século XVIII e vejam como está inserido na vida cotidiana. O autor dialoga com o leitor como um conferencista. Adota os interesses e as preocupações naturais. Por exemplo: quer alguém saber sobre a causa do trovão? Começa-se por falar com o leitor sobre o medo do trovão, vai-se mostrar que esse medo não tem razão de ser, repete-se mais uma vez que, quando o trovão reboa, o perigo já passou, que só o raio pode matar.
 
Analisando o livro do abbé Poncelet La Nature dans la formation du tonnerre eta la reproduction des Etres vivants, de 1769, transcreve:
 
Ao escrever sobre o trovão, minha principal intenção sempre foi minorar, quando possível, as impressões desagradáveis que esse meteoro costuma causar em inúmeras pessoas de qualquer idade, sexo e condição. Quantas não passaram dias de agitação violenta e noites de angustia mortal?
 
O autor citado por Bachelard chega mesmo dedicar um longo capítulo do seu livro às reflexões sobre o medo causado pelo trovão; para isso faz uma distinção entre "quatro tipo de medo". O leitor tem um interatividade com o autor, pois são colocados temas de interesse direto para a vida cotidiana. É interessante ressaltar que época desse livro, século XVIII, as pessoas tinham muito pavor pelos fenômenos da natureza, pois muitos dos quais ainda não eram suficientemente explicados ou conhecidos; ao contrário de nossos dias em que o pavor maior é contra os próprios seres humanos.
 
Os livros dessa época também traziam situações tentando aproximar os cientistas das pessoas comuns. A esse respeito Bachelard cita um livro de 1787 relatando curiosas "Experiências feitas sobre as propriedades dos lagartos - seja fisicamente, seja sob a forma de licor - no tratamento das doenças venéreas e do herpes". Prometendo combater esses terríveis males da época, o livro mistura os limites da ciência com a crendice popular. É uma mistura de ciência com crença popular. Da mesma forma que nossos dias são comuns livros prometendo curas milagrosas de doenças ainda não dominadas pelo medicina, entretanto, porém sem um aval abalizado de instituições científicas.
 
O problema da erudição nos livros de ciências da antiguidade.
 
Bachelard cita o exemplo do livro do barão de Marivetz e Groussier antes de apresentarem suas teorias sobre o fogo no livro Phisyque du Monde de 1780 apresenta 46 teorias diferentes para somente então colocarem a posição dos autores.
 
A fecundidade de um conceito científico é proporcional a seu poder de deformação (pg. 76 FEC)
 
O sujeito empenhado em um processo de síntese do conhecimento não pode ter do conceito uma visão cristalizada. Quanto maior for sua condição de manipulação dessa noção maior será a possibilidade de uma efetiva aprendizagem. Daí o a intenção de que o conceito possa ser deformado, colocado sob outras formas de representação e correlacioná-los com outros conceitos. Na medida que essa dinâmica seja possível mais fecunda será a aprendizagem.
 
Dominar o conceito num patamar entre a compreensão e a extensão.
A compreensão por vezes deixa a impressão superficial de uma bipolaridade: compreender ou não compreender é um resumo que não cabe num postura de maior abertura da racionalidade. Bachelard pretende relativizar essa lógica tradicional excludente e assim permitir um estado de espírito que nem seja exclusivo do polo da compreensão e nem da totalidade de significado do conceito em toda sua extensão.
 
A intransigência da posição positivista quanto à conformação das idéias científicas, está numa posição oposta a esse tipo de racionalista aberto defendido por Bachelard. Aberto, mas, ao mesmo tempo, profundamente compromissado com uma significativa construção do conhecimento científico.
 
A extensão de um conceito científico é incompatível com os limites textuais de sua definição. Toda definição é redutora no sentido de limitar, num determinado nível, a totalidade de sentido. Nesse nível surge o conflito entre a necessidade de formalização do conhecimento e a necessidade de compreensão. Do ponto de vista científico, a priorização de uma dessas necessidades em detrimento da outra inviabiliza a verdadeira aprendizagem.
É nesse aspecto que Bachelard sempre lembrou que a filosofia das ciências deveria ser essencialmente uma pedagogia científica. Mesmo com toda a liberdade de acepção dos termos, que tanto caracteriza a sua obra, é pertinente lembrar que a coerência entre a formalidade e a compreensão é um dos pontos centrais do desafio didático do ensino das ciências.
Conhecer o desenvolvimento das idéias científicas é essencial ao direcionamento da aprendizagem das ciências. Mais do que conhecer a história da ciência, por certo, o professor de ciências deve ainda conhecer a epistemologia de sua disciplina.
 
No ensino regular das ciências, em nível médio e fundamental, geralmente nos textos didáticos a apresentação do saber é centrada no aspecto técnico do conteúdo; afasta-se de toda referência ao contexto e às práticas sociais de referências; prioriza a formalização praticamente abandona o processo de transposição do cotidiano ao escolar. Normalmente os livros didáticos de ciências reservam um espaço muito tímido à história das idéias científicas. Isso empobrece o processo educativo, esconde o fato de que o saber é um produto da construção histórica da cultura de diversas civilizações.
 
Se por um lado o conhecimento sempre resulta em respostas a determinados problemas, ele inclui também a formulação de questões. Saber, significa também formular problemas, mesmo no nível mais simples das primeiras indagações. Na própria formulação de uma questão já está implícito um certo nível de racionalização.
 
Há uma correlação entre as noções de obstáculo epistemológico e de transposição didática
 
O estado de inconsciência do espírito científico
O conhecimento carrega uma componente de inconsciência pura. Mas é ilusão pensar que essa inconsciência esteja restrita exclusivamente ao saber cotidiano. Ela também atinge dos saberes escolares. Isso ocorre porque ela ainda mais ainda os saberes científico. (p.5 FEC)
Para combatê-lo é necessário despertar um permanente espírito de crítica pedagógica. Crítica sobre o significado dos conteúdos ensinados no plano escolar. para se despertar dessa estado de inconsciência é preciso reavivar a crítica pedagógica e buscar condições de sua constituição histórica. Aqui volta-se a questão da transposição dos saberes.
Mais do que isso é tentar compreender sua epistemologia, sua origem, seu contexto original, suas transformações.
Voltar sempre ao que bachelard chama de "estado nascente" que é aquele em que o problema científico é pela primeira fez golpeado por uma solução.
 
Racionalização da experiência
 
Para que se torne possível proceder uma racionalização da experiência não é suficiente refletir sobre o fato experimentado. Absorver uma experiência racionalmente significa cultivar um contato bem mais intenso com o objeto interrogado. Assim, o despertar de uma inconsciência cognitiva se processo por esse exercício constante da racionalização das experiência. Ela não se resume num único momento, não cabe no tempo pedagógico que burocratiza as atividades didáticas. A racionalização exige a inclusão de conceitos na compreensão das situações envolvidas, desafia o entendimento do aprendiz, força a rever antigas posições. Aquilo que a princípio era tido como ameaçado em sua essência. Ocorre um desequilíbrio pela ameaça contundente da razão sobre a experiência primária.
Os obstáculos são um a um ameaçados da mesma forma que resistem ao novo conhecimento
 
"...é grande nosso mau humor quando vêm contradizer nossos conhecimentos primários, quando querem mexer no tesouro pueril obtido por nosso esforço escolar."
 
psicanálise do conhecimento objetivo
 
o estado de inconsciência que ameaça a formação das idéias devem ser constantemente vigiado pela racionalidade. No plano mais íntimo da subjetividade Bachelard propõe  o que chama de psicanálise do conhecimento objetivo. Para romper com as primeiras impressões a propósito de um determinado conhecimento deve-se revirar no plano do inconsciente. Este não é um processo fácil. A resistência oferecida pela aparente segurança do saber cotidiano parece cristalizar o conhecimento antigo, tentando impedir sua transformação. Por vezes, os conhecimento antigo é radicalmente negado, podendo ser também apenas retificado; mais é muito difícil que essa intuição primeira prevaleça como base ao novo saber.
 
Há um constante perigo da racionalização apressada uma vez que o uso da razão é uma exigência permanente para a formação de um espírito científico.
 
Por vezes, a aprendizagem pode ser desvirtuada por uma síntese racional apressada. Na realidade são conclusões que nem mesmo mereceria a denominação de ser racional. É quanto a essa atitude que age a psicanálise do conhecimento objetivo.
 
Bachelard analisa diversos exemplos retirados de livros de ciências do século XVIII mostrando situações em que o conhecimento científico da época ainda se misturava fortemente com o universo das crenças individuais.
 
Não se pode simplesmente polarizar o saber cotidiano de um lado e o saber científico do outro. O interesse pedagógico leva a colocar entre esses dois extremos os saberes escolares. A construção da objetividade é um olhar atento é um olhar atento para a ciência como para o cotidiano. Ela se processa evitando qualquer tipo de generalizações apressadas.
 
Os fogos-fátuos são fenômenos associados à combustão espontânea de gases que exalam das sepulturas ou dos pântanos. Há uma crença popular em torno desses fogos. Será que realmente eles existem nos cemitérios e que surgem somente durante à noite? Que sobem exatamente à meia-noite e levam consigo as almas dos mortos? Uma explicação considerada científica em 1780, de um considerável autor de ciências, era repleta de uma fértil imaginação. Por exemplo, ao se indagar se os fogos-fátuos realmente perseguem as pessoas que tentam fugir dele, a resposta era a seguinte: "É por que são empurados pelo ar que vem ocupar o espaço que essa pessoa deixa atrás de si". A simplicidade da resposta mostra uma tentativa de fornecer uma explicação científica ainda fortemente marcada pela crença comum.
 
Na formação do espírito científico é fundamental cultivar o exercício de formular questões que conduzam à busca do conhecimento. indagar é o primeiro passo para desenvolver uma atitude cognitiva tanto no nível escolar como científico.
 
Aprendizagem escolar e pesquisa científica
 
Ambas as atividades estão relacionadas à construção do conhecimento (saber escolar - saber científico)
 
Conhecimento científico não é somente Física, Matemática, Química, Biologia e Ciências, inclui todo corpo de conhecimento estruturado e tratado com os princípios disciplinares da ciência: sistematização, formalização, método, coerência, consistência. (JAPIASSU..)
 
O equilíbrio entre o empírico e racional
 
Não há possibilidade de uma polarização radical numa atitude que seja exclusivamente racional ou empírica. Essas duas atitudes extremas negam o aspecto científico do conhecimento e o justo equilíbrio entre elas é uma condicionante tanto na aprendizagem escolar como no trabalho do pesquisador.
 
O vetor epistemológico tem origem na razão.
Como defender esse princípio racionalista?
Em primeiro lugar o conhecimento é uma atividade essencialmente humana. Está profundamente inserido na existência humana e esta precede a qualquer outro atributo que se queira atribuir ao indivíduo.
Mesmo que a origem seja racional, não há possibilidade da razão subsistir de forma isolada da experiência. A necessidade imposta pelo imediato da subsistência desperta o plano da racionalidade.
O equilíbrio é ameaçado pelo possível predomínio do saber cotidiano, por falsos procedimentos de racionalização, admissão precoce de um argumento tido como racional.
 
Caracter psicologicamente concreto da alquimia
 
As experiência alquímicas eram conduzidas por uma concepção ambivalente que oscilava entre o subjetivo e objetivo. A busca de um conhecimento racional era ao mesmo tempo confundida por um estado de paixão que predominava no inconsciente do condutor da experiência.
De uma forma geral os registros históricos da ciência e mesmo o senso comum fazem um juízo apressado e errado quanto a mentalidade alquímica. Esta é uma das teses defendidas por Bachelard. A crítica superficial e apressada às experiência realizadas pelos alquimistas não revela o verdadeiro significado do tipo de atividade que eles desenvolviam.
O trato direto com a matéria era sempre conduzido por um viva esperança que sempre era renovada na busca de um vitória sobre o conhecimento.
A persistência na elaboração bruta do conhecimento era uma das características mais marcante do trabalho do alquimista.
Talvez o problema era a inversão do vetor epistemológica que estava ancorada exclusivamente no materialismo imediato na esperança de uma elaboração racional do conhecimento.
Parece obvio que o espírito alquímico não era um espírito científico tal qual passou a ser entendido na idade moderna. Entretanto, havia um envolvimento direto com um certo tipo de experiência, mesmo que essa não fosse ainda estruturada como foi proposto por Francis Bacon somente no início do século VXII.
Predominava uma prática puramente humana
Por certo não é compatível aproximar a visão do alquimista
com uma visão puramente intelectual da ciência positiva que exclui a componente da paixão e do prazer pelo conhecimento.
 
Bachelard dizia que acima de qualquer julgamento precipitado do conhecimento alquímico, sempre deveria ter lugar para uma "psicanálise anagógica" do espírito do alquimista. A anagogia diz respeito ao estado de êxtase, de elevação do espírito para a contemplação das coisas divinas. Mesmo que a prática alquímica não seja exemplo do espírito científico ou de maturidade intelectual, ele é mais do que tudo uma "iniciação moral" e por isso mesmo não é possível julgá-lo com um olhar exclusivamente objetivo.
A atitude do alquimista diante do conhecimento diz respeito sobretudo à persistência do possível no momento vivido.
 
Qual a relação que há entre essa personalidade alquímica e a influência do saber cotidiano na aprendizagem escolar? que lições podem ser tiradas na postura pedagógica alquímica?