CONHECIMENTO CIENTÍFICO
 
Luiz Carlos Pais
 
Os Diversos Tipos de Conhecimento
 
O elemento central que polariza a quase totalidade das questões relativas ao processo educativo é o problema do conhecimento. Desde a escolaridade básica até os desafios da pesquisa científica se trabalha diretamente com esse problema. O homem, desde as mais antigas civilizações, sempre buscou desenvolver, ampliar, inovar e transformar os seus conhecimentos. No decorrer dos séculos, diversos tipos de conhecimentos foram sendo gradativamente selecionados para tentar responder as diversas angústias e necessidades humanas. Por essa razão, nos dias atuais se pode diferenciar diversos tipos de conhecimentos: populares, científicos, pedagógicos, religiosos, estéticos, ético e outros.
 
A busca permanente do conhecimento talvez seja um dos traços mais marcantes da história do homem. Nos mais diversos estágios culturais essa busca sempre tem guiado passos importantes na condução da humanidade. Buscar conhecer e conhecer cada vez mais é uma meta intrínseca à existência de cada um de nós. É como se o ato de conhecer alimenta o próprio desenrolar da vida. Por vezes somos levados a contornar os grandes obstáculos que ainda não conseguimos superar ou ainda como se tivéssemos que contornar um grande lago que ainda não pode ser vencido pela nossa performance. Mas, mesmo assim, podemos observar as luzes que indicam nossas perspectivas do amanhã. É isso que nos fornece o fôlego necessário para a caminhada. Quando o saber nos mostra um fragmento de sua face, por certo, nosso espírito se completa ainda que por um pequeno instante.
 
No plano educacional essa busca se processa também de forma permanente na elaboração de um conhecimento didático que possa alimentar a prática pedagógica. Desde o conhecimento do senso comum, que alimenta os problemas do quotidiano, passando pelo conhecimento religioso, filosófico, científico e muitas outras formas de apreensão do mundo, associa-se a essa permanência as questões relativas à aprendizagem. Mas, para o contexto pedagógico, o que nos interessa mais diretamente é a aprendizagem escolar. Em todo esse processo está sempre presente a apreensão de algum tipo de conhecimento. É esta apreensão que coloca em evidência uma complexa relação que se estabelece a partir da vivência do sujeito com o mundo no qual ele está inserido. Sempre é possível destacar uma relação entre o sujeito e o objeto que constitui o essencial do conhecimento. Essa relação, que caracteriza a essência de todo o conhecimento humano, caracteriza também todo o processo de aprendizagem, entendida no seu sentido mais amplo possível.
 
Quer seja o pesquisador diante de seu objeto de investigação ou o aluno no contexto de numa aprendizagem escolar específica trata-se de situações em que é sempre possível destacar, de um lado, o sujeito encarnada e bem localizado e, de outro, um objeto delimitado. Não se trata de um sujeito abstrato e geral, como se fosse um conceito, e nem muito menos se trata de um mundo qualquer perfeitamente ideal e distante. É necessário partir de uma realidade palpável, de um contexto bem definido e de um mundo bem particular em que vive o sujeito da aprendizagem. Por outro lado, para descrever o fenômeno, não podemos também deixar de perceber a totalidade das dimensões que o compõem. A esse propósito julgamos oportuno transcrever um belo texto do Demerval Saviani (  ):
 
“É preciso compreender a realidade enquanto um processo em movimento, enquanto um processo contraditório e dialético em que o todo não se explica fora de suas partes e as partes não se compreendem fora do todo; portanto, é preciso agir sobre o todo agindo simultaneamente sobre as diferentes partes.”
 
Entretanto, o significado do termo realidade principalmente quando se refere ao contexto educacional, exige uma reflexão mais ampla do sentido dado pelos aspectos concretos, físicos e externos. Como veremos na abordagem de Husserl não é possível admitir uma única realidades. Do ponto de vista educacional é preciso que estejamos abertos à possibilidade de uma diversidade de realidades. É então a partir de uma realidade localizada e da relação que nela se estabelece entre um sujeito e um objeto, que torna-se possível estruturar a tentativa de construir um significado dos fatos postos pelas contingências vividas. Através desse significado, pessoalmente construído pelo sujeito, se elabora uma consciência do mundo. O sujeito passa a ter uma consciência do mundo, passa a ser um ser-no-mundo. A noção contida nesse termo foi abordada com maior ênfase na obra de Heidegger que sempre primou pela análise da componente histórica da elaboração do conhecimento.
 
O sujeito sendo assim compreendido e a aprendizagem vista nesse contexto ocorre então um maravilhoso processo de liberação pessoal, de crescimento existencial que amplia as possibilidade reais do sujeito, quando este passa a ter uma compreensão muito mais significativa do seu próprio mundo. Esse é o caminho da construção do conhecimento, sobretudo aquele que refere ao universo das ciências. Construção essa que, se num primeiro momento, realiza-se num plano muito íntimo e pessoal, amplia-se e se direciona a uma realização mais ampla. É necessário que o sujeito participe ele próprio, efetivamente, na elaboração desse conhecimento o que lhe dará um significado maior com seus vínculos históricos, sociais e culturais. Grande parte do fracasso escolar em sala de aula se deve, em parte, à falta de significado daquilo que o aluno estuda. Para ele, quase sempre, os conteúdos das ciências e da matemática, por exemplo, não apresentam algo que possam corresponder a um sentido maior para suas vidas.
 
Dizemos que o saber escolar deve ser trabalhado no sentido de incorporar um significado maior a esse sujeito encarnado e localizado. Apesar dessa construção ser subjetiva e pessoal isto não quer dizer que ela pode ser descompromissada, sem nenhum vínculo com os outros. O significado pessoal do conhecimento escolar passa necessariamente pelo seu significado social. Tudo acontece como se um complementasse o outro. Se o conhecimento se faz pelas vias de uma ação subjetiva e pessoal, para que ele seja autêntico e significativo, é na busca da objetividade que ele se consolida. Estabelece-se dessa maneira uma dialética entre os aspectos subjetivo e objetivo do conhecimento humano.
 
2.         O conhecimento como uma relação
 
Embora já tenhamos falado várias coisas sobre o conhecimento se faz necessário voltar esta e várias outras vezes para indagar a propósito que é, de fato, o objeto com o qual trabalhamos constantemente em nossas aulas e pesquisas. No conhecimento e em particular no conhecimento científico sempre é possível destacar a existência de uma relação entre dois elementos fundamentais que são o sujeito e objeto. No contexto pedagógico o sujeito é representado pelo aluno e o objeto pelo saber escolar. O processo de aprendizagem consiste então da tentativa de conhecer o objeto essencial de um determinado conteúdo. De um lado o aluno através de sua consciência busca, por intermédio das atividades propostas, apreender a essência que constitui a essência do conteúdo visado.
 
Os dois elementos, sujeito e objeto, têm naturezas essencialmente distintas, e permanecem, no transcorrer do processo de aprendizagem, sempre separados. Isto quer dizer que, mesmo que o sujeito possa ser transformado pelo ato de conhecer, sempre permanecerá delimitado em sua humanidade. O conhecimento pode enriquecer sua vivência, ampliar sua consciência, mas em si mesmo permanece sendo estranho à natureza humana, ou seja, ele não é capaz de unir a essência humana à do objeto.
 
Embora esse dualismo caracteriza a essência do conhecimento o "ser humano" sempre permanecerá, em sua essência, distinto do "ser objeto". O sujeito visará sempre apreender o objeto e pelo conhecimento esse objeto é apreendido pelo sujeito. O significado dessa apreensão não é dado de uma forma imediata uma vez que, para aprender o sujeito deve, de certa forma, "sair fora" de sua própria esfera humana. Tendo em vista que o ser humano enquanto sujeito da aprendizagem tem sua natureza essencialmente diferente da do objeto, esta apreensão se traduz por uma aventura do entendimento que tenta invadir a esfera do conhecimento. Pela aprendizagem o sujeito vai, pouco a pouco, recolhendo fragmentos característicos do objeto com os quais constrói o conhecimento. Trata-se, portanto do conhecimento de um sujeito localizado que traduz uma parte da essência do objeto conhecimento.
 
Logo no início dessa reflexão pode se colocar uma questão crucial que é aquela que visa saber da possibilidade de uma apreensão total do objeto. Esse é o chamado problema da possibilidade do conhecimento. Pode, de fato, o sujeito, aprender a totalidade da essência contida no objeto? Essa questão pode ser até mesmo reduzida a uma pequena escala onde se indaga: é possível realmente o sujeito apoderar-se da essência do objeto, de uma pequena parte que seja dessa essência?
 
A garantia se o conhecimento é verdadeiro ou não constitui o desafio dessa questão, ou seja, aquilo que o sujeito aprende corresponde de fato à essência do objeto ou é uma ilusão? Essa é uma questão crucial, pois o objeto sempre permanece transcendente ao mundo do sujeito. Por mais que o processo de aprendizagem se realize o objeto da aprendizagem permanece estranho ao mundo do sujeito. O que se apreendido é somente o conhecimento em si e não exatamente o objeto. A transformação ocorre na consciência daquele que aprende, mas o objeto permanece o mesmo.
 
Em suma, a relação que se estabelece no conhecimento o sujeito passa a ser determinado pela essência do objeto. É por essa razão que o "Conhecimento pode definir-se,...,como uma determinação do sujeito pelo objeto. Mas o determinado não é o sujeito pura e simplesmente; mas apenas a imagem do objeto nele." pág. 27 Hessen . O objeto é o determinante e o sujeito é o determinado. É necessário perceber nessa concepção o sujeito não exerce nenhuma função determinante.
 
Não haveria possibilidade de que o sujeito também reciprocamente estabelecesse alguma forma de determinação na essência do objeto? Qual são os tipos de conhecimento em que é possível o sujeito determinar a essência dos objetos?
 
 
2.3  As três esferas do conhecimento.
 
O que fica determinado na consciência do sujeito não é o objeto em si, mas sim, a imagem ou a representação objetiva desse objeto. Mas essa objetividade é elaborada pouco a pouco e o conhecimento para ser totalmente objetivo deve estabelecer uma correspondência fidedigna entre as características do objeto e de sua imagem na consciência do sujeito. Dessa forma pode dizer que o conhecimento envolve três componentes fundamentais. O sujeito que define uma esfera psicológica, a imagem do conhecimento de define uma esfera lógica e o próprio objeto que define a chamada esfera ontológica. Dependendo do ponto de vista enfatizado na investigação temos a predominância de uma dessas componentes, cada uma tentando dar conta do problema do conhecimento e de sua verdade.
 
A possibilidade de uma só dessas componentes dar conta plenamente do problema parece remota, pois sempre estará delimitada nos seus próprios domínios.
 
"...a psicologia, ao investigar os processos do pensamento, prescinde por completo desse referência ao objeto. A psicologia dirige a sua atenção, como já se disse, para a origem e desenvolvimento dos processos psicológicos. Pergunta como tem lugar o conhecimento mas não se é verdadeiro, isto é, se concorda com o objeto." Hessen pag. 31
 
Esta afirmação leva à reflexão a propósito da impossibilidade de uma solução completa para o problema do conhecimento a partir exclusivamente de uma única visão. Tudo indica que essa mesma impossibilidade se verifica quando se restringe o tratamento do problema a um único enfoque. 
 
Do ponto de vista lógico a imagem do conhecimento se resume a um conjunto de regras de concordância lógica do pensamento. Trata-se da arquitetura sobre a qual funciona o entendimento humano, mas é necessário destacar que por si só, a lógica não pode resolver plenamente o problema do conhecimento uma vez que ela busca a concordância da imagem do conhecimento no plano do próprio conhecimento. Pela lógica não é possível buscar a concordância da imagem do conhecimento com o verdadeiro objeto desse conhecimento. Trata-se, portanto, da mesma forma como a perspectiva psicológica de uma visão parcial da questão.
 
Do ponto de vista ontológico a solução completa do conhecimento também é impossível uma vez que não se pode prescindir das condicionantes humanas. Para tratar do "ser objeto" de uma forma pura e radical seria necessário eleminar os elos que o vinculam ao sujeito. Da mesma forma que, na solução psicológica não se pode abrir mão das questões inerentes ao próprio objeto, na solução ontológica não se pode abrir mão dos vínculos que estruturam o aspecto humano.
 
A radicalização de qualquer uma das três formas de conceber o entendimento humano é um reducionismo que empobrece a solução do problema o conhecimento. A radicalização da solução psicológica levaria ao chamado psicologismo, da lógica ao logicismo e da ontológica ao ontologismo. Acreditamos portanto que a única solução possível para não incorrer em nenhuma dessas formas de reducionismo é abordar o conhecimento exatamente do ponto de vista fenomenológico.
 
 
2.4  Intuição, Experiência e Raciocínio
 
O conhecimento experimental, também denominado conhecimento sensível, é aquele tipo de apreensão direta realidade através dos sentidos: vista, ouvido, tato, olfato, paladar. Em todos os objetos materiais com os quais podemos ter um contato direto é possível identificar algum tipo de propriedade sensível capaz de ser apreendida pelos nossos sentidos, tais como cor, som, temperatura, dureza, vibração, cheiro, gosto, extensão, volume, forma, quantidade, movimento etc (Bazarian, pg. 103). A sensação é um tipo de imagem subjetiva, de natureza concreta e particular, formada na mente do sujeito e reflete algum objeto do mundo objetivo, sendo determinada pelos nossos órgãos sensitivos.
 
A principal característica de um conhecimento intuitivo é a possibilidade de sua utilização imediata, sua manifestação no espírito não requer nenhum tipo de discurso ou raciocínio dedutivo. Ao contrário da intuição o conhecimento racional não é dado de forma imediata, pelo contrário expressa-se através de um discurso ou de um raciocínio mediato, ou seja, há a necessidade de um trabalho intelectual para sua elaboração. Esse conhecimento racional que é também, por vezes, denominado de conhecimento abstrato ou lógico se caracteriza por ser um tipo de apreensão que não depende diretamente de nossas sensações. Ele procura determinar as propriedades essenciais, universais, gerais e abstratas dos objetos.
 
O conhecimento racional trabalha basicamente com os conceitos. Algumas vezes também chamado de noção ou idéia, o conceito é uma imagem subjetiva elaborada no plano mental quer seja de objetos materiais ou abstratos, se caracteriza por ser abstrato e geral. Os conceitos refletem os aspectos essenciais e universais do objeto e para isso procura abstrair de todos os aspectos secundários.
 
Do ponto de vista didático o interesse maior é conhecer os processos mentais através dos quais os conceitos são formados. Por exemplo, tanto na aprendizagem da matemática como nas ciências de uma forma geral, esses processos podem ser: análise, síntese, abstração, generalização, dedução, indução e outros. Cada um desempenha uma função específica na elaboração do conhecimento.
 
Um raciocínio analítico é aquele que procura decompor as aspectos essenciais de um objeto ou fenômeno buscando conhecer os seus elementos constitutivos a fim de melhor compreender o todo. Esse tipo de raciocínio trabalha normalmente com a combinação de certas proposição. Uma proposição é uma relação entre dois ou mais conceitos, uma afirmação ou negação de um fato envolvendo dois ou mais conceitos. Raciocínio é uma relação estabelecida a partir da combinação de proposições do qual obtêm-se uma determinada conclusão
 
Toda vez que falamos das diferentes formas em que pode se apresentar o conhecimento humano não podemos deixar de considerar o problema da intuição. O conhecimento intuitivo é uma forma de conhecimento cuja existência é inquestionável. O problema surge quando a validade desse tipo de conhecimento passa a ser confundida com os outros tipos de conhecimento que tem seus mecanismos próprios de demonstrações. Mas não pode haver questionamento quanto a sua presença permanente no espírito humano. As bases lógicas do próprio conhecimento geométrico se assentam num determinado tipo de intuição representada pelos axiomas.
 
Os axiomas são geralmente considerados como afirmações cuja a evidência se manifesta por si mesmo, ou seja, não é preciso nenhum tipo de esforço intelectual para conceber um axioma. Sua verdade é evidente. Quando dizemos, por exemplo, que por dois pontos passa uma única reta não precisamos recorrer nem mesmo ao raciocínio lógico dedutivo para provar essa verdade. É uma verdade que dispensa qualquer tipo de prova.
 
Podemos destacar dois tipos de intuição. Uma que se manifestação através da sensação tal como a percepção das cores pode ser chamada de intuição sensível. A outra é uma intuição espiritual que nasce como conseqüência da intuição sensitiva quando comparamos e observamos fatos. Este é o caso, por exemplo, do princípio do terceiro excluído sobre o qual repousa toda a lógica aristotélica.
 
A compreensão do conhecimento intuitivo está enraizada nos fenômenos da estrutura psíquica do homem. Mas podemos destacar três dimensões da estrutura psíquica que possibilita três formas de intuição. Essa estrutura é constituída por pensamentos, sentimentos e vontades que dão origem, respectivamente, a uma intuição racional, a uma intuição emocional e a uma intuição volitiva. A intuição volitiva é marcada, sobretudo pela intencionalidade da consciência do homem que projeta em sua vida seus desejos mais íntimos. A consciência de certa forma é guiada por essa intencionalidade.
 
Do ponto de vista pedagógico importa incorporar essa forma de conhecimento ao saber escolar. Mas essa não é uma tarefa imediata, pois, somos atraídos por duas posições extremadas: a redução radical do currículo escolar ao conhecimento do senso comum ou a polarização numa concepção equivocada de ciência educativa. Tudo indica que a síntese dessas posições extremas passa pela percepção dos verdadeiros valores educativos da ciência.
 
Há de se considerar tanto o papel da intuição como da experiência na síntese racional do conhecimento científico. Se as idéias nascem também pelo toque mágico da intuição e certamente o exaustivo trabalho experimental que as conduzem para o aspecto científico. Diríamos que entre a ciência e a intuição está a experiência que lapida o trabalho de elaboração das noções e das idéias. Não se pode esperar uma visão ingênua de que a criação do conhecimento científico seja como os grandes astros que se iluminam por si mesmo. Quando se observa mais com mais detalhes o seu processo evolutivo percebe-se a presença permanente das dúvidas, contradições e dos erros. Os caminhos que certamente conduziram o pesquisador ao fracasso, às dúvidas e às tentativas frustadas, responsáveis pelas inúmeras angústias da busca do desconhecido, certamente não aparecem no conhecimento síntese. O problema maior é que, na prática pedagógicas, trabalha-se essencialmente com as sínteses dos resultados. Os processos pelos quais esses conhecimentos foram elaborados nunca ou muito pouco são abordados prática tradicional de ensino.
 
O conhecimento é essencialmente uma produção humana e esse fato tem sido normalmente neglicenciado na prática educativa. Isto quer dizer que o saber não poder ser posto, no plano escolar, simplesmente como o resultado de uma cultura do passado. A participação efetiva do sujeito na elaboração crítica de seu próprio conhecimento deve ser uma meta na prática pedagógica. A forma tradicional como normalmente o saber é colocado em sala de aula dá sempre a impressão que a ciência é a grande redentora da humanidade como se fosse, por si mesma, possível de possibilitar uma verdadeira libertação do homem. Essa forma de ensinar deixa transparecer  que a ciência é uma produção de outros povos, cultos e que, naquele momento, o aluno dever tão somente contemplar a bela produção de outros homens de outros mundos. Esse é o aspecto que podemos destacar no  belo texto do Mario Cortella (pg. 52):
 
"...o conhecimento tem uma especificidade inerente que o liga à História em sua estrutura e conjunturas e que é, em cada época, manifestado em seu sentido de diferentes maneiras no interior da Escola. Por isso, um esforço que é exigido hoje na prática em Educação é o de relativizar o peso dos conhecimentos científicos, não como forma de desqualificá-los (o que seria abstruso), mas como um rico veio para possibilitar a historicização da produção humana e diminuir a presunção aleatória contra o passado e os não escolarizados."
 
 
2.5  A especificidade do conhecimento científico
 
O conhecimento científico que pode ser entendido como sendo um conjunto de enunciados cuja validade o homem pretende estender no plano universal, pode ser visto também como o resultado de uma permanente reforma das suposições e hipóteses lançadas no início de sua elaboração. Do ponto de vista didático é extremamente pertinente refletir sobre esse processo de sua elaboração. É partir desse interesse que se busca conhecer, em primeiro lugar a origem do conhecimento científico e processo pelo qual ele desenvolver até chegar nos currículos escolares. As informações elaboradas pela transposição didática desse conhecimento pode oferecer ao professor uma sinalização do significado real desses saberes e suas práticas de referências. De uma certa forma a construção do conhecimento científico é uma permanente reforma de ilusão, no sentido de que todas as bases originais desse tipo de conhecimento tiveram origem, por certo, nos saberes populares.
 
No transcorrer da história da humanidade foi se desenvolvendo uma diversidade de conhecimentos que, em cada caso, procura responder angustias e necessidades do homem. O próprio conhecimento do senso comum, elaborado pela prática empírica da experiência quotidiana exerce um papel fundamental no processo de gênese dos demais saberes. No plano da educação escolar, a passagem desse conhecimento do senso comum para uma forma de maior aceitabilidade científica oferece talvez a maior fonte de obstáculos ao curso da aprendizagem. Muitas vezes para avançar na compreensão das ciências é necessário romper com o conhecimento empírico e é essa ruptura cognitiva que representa hoje o que se define como progresso. Outros conhecimentos tais como o religioso ou o estético embora frontalmente oposto à forma metodológica de elaboração do saber científico apresentam também uma componente importante no mundo da vida cujas conseqüências não podem ser desprezadas na aprendizagem.
 
No nível atual de desenvolvimento da área de Didática da Matemática, como podemos comparar as concepções epistemológicas dos professores no que se refere à sua prática pedagógica? Qual é a influência do conhecimento vulgar na prática pedagógica? Podemos falar de duas práticas: uma rotineira, onde predominas todos os vícios e costumes que se repetem por vários anos e que dificilmente são mudadas. A outra trata-se de uma prática refletida...onde cada ato pode suscitar um material de estudo para sua própria transformação. Há uma grande distância entre esses dois tipos de prática. A aprendizagem de novos conhecimentos geralmente ocorrem não no sentido de confirmarem a prática quotidiana mas sim choca-se com o hábito. Nesse sentido é preciso romper com o conhecimento passado para que o novo possa se incorporar. Esta é a noção básica dos obstáculos epistemológicos.
 
 
2.6  A noção de transposição didática
 
Uma das questões centrais da educação matemática é o estudo do processos evolutivos por que passa a formação do seu objeto de ensino. Na análise dessa evolução é possível identificar diversas fontes de influências que determinam as transformações do saber ensinado na escola. O que descrevemos nesse parágrafo é a estrutura dessas transformações através da noção de transposição didática.
 
Essa noção pode ser vista como um caso especial da transposição dos saberes, esta sendo entendida no sentido mais amplo da evolução das idéias. No caso específico da área de matemática fica mais evidente que essa evolução ocorre sob o balizamento dos chamados paradigmas científicos, respeitando determinadas regras e até mesmo certas tradições históricas e culturais.
 
As idéias de transposição e saber estão interligadas, pois, quando se fala em transposição, sempre se pode relacionar a existência de um saber específico, da mesma forma que quando se admite um determinado saber é natural pensar na existência de um movimento de transposição. De sua gênese no campo das ciência até ser trabalhado como um objeto específico de uma aprendizagem escolar o conhecimento sobre um série de transformações.
 
Se o conjunto das transformações for visto enquanto um processo mais amplo, não especificando um determinado conceito, então a transposição didática pode ser analisada a partir de três tipos de saberes: o saber científico, o saber a ensinar e o saber ensinado.
 
O objeto do saber científico está mais associado à vida acadêmica embora acreditamos que nem toda produção acadêmica possa representar um saber científico. Trata-se de um saber que normalmente é desenvolvido nas universidades ou institutos de pesquisas, mas que não está diretamente vinculado ao ensino médio e fundamental. O seu reconhecimento e a defesa de seus valores são particularmente sustentados por uma cultura científica e estão ainda vinculados a outras áreas de interesses, tais como, a política, a economia e a tecnologia, etc. Tais vínculos de devem ao fato de que, na sociedade atual, o saber científico e, sobretudo, a tecnologia estabeleceram laços de profundas ligações mútuas ao ponto de que todo o conforto do mundo contemporâneo está submetido a esse comprometimento.
 
O desenvolvimento do saber científico e de seus possíveis resultados tecnológicos dependem, em grande parte, do financiamento da pesquisa. Todavia, quando o estado se afasta desse financiamento, os recursos necessários são buscados em outras fontes do poder econômico que, entretanto, passam a ditar a finalidade maior da ciência. Esta dependência coloca uma questão ética do saber científico que é crucial para a compreensão da ciência contemporânea. Os benefícios oriundos desse tipo de saber científico, financiado pelo poder econômico, são reservados, prioritariamente a uma parcela da sociedade comprometida mais com o consumismo do que com a superação das diferenças sociais. Fourez (1988) apresenta, nesse sentido, uma profunda análise sobre as questões éticas do desenvolvimento das ciências.
 
No que se refere ao aspecto educativo, é evidente que o saber científico deveria contribuir também no desenvolvimento crítico do aluno dando prioridade aos valores éticos da educação. A finalidade educacional desse saber científico deve esta voltada assim para as questões mais essenciais dos problemas humanos. Para o aluno ter acesso ao conhecimento é necessário a colocação didática do problema da linguagem envolvida no saber científico. Nesse sentido, apesar de parecer evidente que o saber científico não pode ser ensinado na forma em que se encontra redigido nos textos técnicos, essa questão se constitui num obstáculo que deve ser considerado no processo de aprendizagem. Essa é a questão da formalização precipitada da linguagem científica. Para viabilizar a passagem do saber científico para o saber escolar torna-se necessário um trabalho didático efetivo para proceder uma reformulação visando a prática educativa. É necessário portanto recorrer à elaboração de uma forma didática, surgindo assim a importância de uma metodologia fundamentada numa proposta pedagógica.
 
Quanto ao saber a ensinar há também toda uma diversidade de aspectos cuja análise é essencial para a questão educacional. Em primeiro lugar trata-se de um saber ligado a uma forma didática que serve para apresentar o saber ao aluno. Em seguida, ocorre uma mudança considerável não só no conteúdo em si como também nos objetivos de sua utilização. Na passagem do saber científico ao saber a ser ensinado ocorre a criação de um verdadeiro modelo teórico que ultrapassa os próprios limites do saber matemático. A partir dessa teoria surgem os materiais de apoio pedagógico que fornecem o essencial da intenção de ensino. Nessa etapa há portanto a predominância de uma teoria didática cuja finalidade está voltada para o trabalho do professor.
 
Nessa perspectiva é preciso destacar que, enquanto a descoberta da ciência está diretamente vinculada ao saber acadêmico, o trabalho do professor envolve mais uma simulação de descoberta do saber. Enquanto o saber científico é apresentado através de artigos, teses, livros especializados; o saber a ensinar se limita geralmente aos livros didáticos, programas e a outros materiais de apoio.
 
O processo de ensino resulta finalmente no verdadeiro objeto do saber ensinado que é aquele registrado no plano de aula do professor. Pode se dizer que se trata do resultado verdadeiro do trabalho didático do ponto de vista burocrático, ou seja, aquilo que se encontra registrado no ato pedagógico. Esse saber não coincide, necessariamente, com aquela intencionalidade prevista nos objetivos programados no nível do saber a ensinar. A análise do saber ensinado coloca em evidência os desafios da prática de uma metodologia de ensino que, por sua vez, não pode ser dissociada da questão dos valores e do objeto da aprendizagem.
 
Por outro lado, não há nenhuma garantia de que, no nível individual, o resultado da aprendizagem corresponda exatamente ao conteúdo ensinado. Assim, pode-se chegar à informações bem distantes ao saber científico e que, nos casos extremos, ocorre simplesmente a permanência de apenas alguns vestígios do significado original. Por esta razão, na prática educativa, o conteúdo não pode ser concebido apenas como uma simplificação do saber científico. Pois, se de um lado temos uma metodologia científica com sua especificidade, do outro, os objetivos educacionais conduzem a uma metodologia de ensino essencialmente diferente. Finalmente, enquanto o saber científico é validado pelos seus paradigmas internos o saber ensinado está mais diretamente sob o controle de um contrato didático que rege as relações entre professor, aluno e saber.
 
 
2.7  Dicotomias no conhecimento.
 
O conhecimento científico apresenta uma série de relações dialéticas cujo destaque apresenta um interesse didático. Os desafios que surgem no transcorrer de todo o processo de aprendizagem do conhecimento científico estão também associados a diversas relações dialéticas cuja conexão caracteriza a própria essência do saber. A primeira dessas dialéticas é caracterizada pela própria relação que se estabelece entre o sujeito e objeto. O conhecimento em si, ou seja, a essência daquilo que se visa apreender, não é algo que está nem somente no interior do sujeito, isolado em seu entendimento, nem também isolado num mundo exterior e distante. Indagar sobre a essência do conhecimento é indagar sobre o significado próprio dos conceitos. Assim, se de um lado temos o sujeito como toda a sua particularidade, subjetividade e concretude, do outro, temos os conceitos com toda a sua objetividade, generalidade e abstração. Trabalhar com a aprendizagem é, portanto, de início, apostar na possibilidade de aproximação desses extremos inconciliáveis.
 
A análise da separação entre sujeito e objeto no contexto da aprendizagem nos leva à necessidade de melhor refletir a reunião desses dois termos. Essa reunião consistirá em compreender o sujeito e o objeto com seres coextensíveis ou seremos obrigados a sempre reduzir um deles no outro: ou tudo é consciência ou tudo é objeto. Nesse sentido associa-se a preocupação de Merleau Ponty que consiste em provocar uma reflexão que leve tanto a ciência como a filosofia se questionarem exatamente no que se refere aos seus conceitos fundamentais tais como a relação entre sujeito e objeto, fato e essência, ser e consciência, realidade e aparência. Merleau-Ponty (Pensadores...)
 
No que se refere em especial ao ensino de ciências e matemática não se pode deixar de considerar a análise das relações que se estabelecem entre as dimensões particular e geral de suas idéias. A compreensão da generalidade de um teorema e consideração de casos particulares quase apresenta dificuldades para alunos até mesmo em nível universitário. A generalidade estudada nas ciências e na matemática é essencialmente própria a essas áreas de conhecimentos. O entendimento comum daquilo "que é geral" no sentido da linguagem do quotidiano difere do sentido dado à generalidade nas ciências. Até mesmo entre as próprias ciências o sentido em que a idéia de generalidade é aplicada apresenta considerações particulares. A generalidade envolvida em afirmações de um conhecimento natural, tendo em vista a existência de casos anômalos, difere do sentido dado pelo pensamento geral em matemática.
 
Outras dialéticas cuja análise merece um destaque principalmente no que se refere à aprendizagem matemática são aquelas que destacam as relações entre o aspecto concreto dos objetos materiais e a natureza abstrata das idéias, entre as dimensões pessoal e social da aprendizagem, as relações que se estabelecem entre os símbolos e seus significados, entre a consciência e o mundo e outras. Nesse contexto se insere toda a problemática do trabalho com materiais didáticos para o ensino da matemática. O trabalho pedagógico exige a passagem do concreto para o abstrato é, por certo, o desafio maior dessa utilização. Se a atividade se restringe à materialidade do recurso didático perde-se então os objetivos do ensino da matemática. Por mais que possamos valorizar o uso dos materiais concretos é necessário reconhecer que se tratam apenas de recursos momentâneos que devem ser deixados de lado. Em fim os recursos materiais podem somente ser concebidos como instrumentos mas não como finalidade em si da prática didática.
 
Uma outra dialética que também não pode ser desconsiderada é a condição do conhecimento em seus aspectos objetivo e subjetivo. A princípio, todo o esforço se direciona na elaboração de um conhecimento que seja objetivo sem no entanto desprezar a sua dimensão subjetiva. O conhecimento que se propõe alcançar sua universalidade não pode deixar de ser solidamente objetivo. Entretanto, o excesso de uma busca descontrolada de um objetivismo estéril foi talvez o principal motivo da chamada "crise das ciências" extensivamente analisada por Husserl na Quarta etapa de sua obra. Embora a meta seja a elaboração de um conhecimento essencialmente objetivo não se pode esquecer que essa elaboração se faz por condições subjetivas.
 
Uma das questões cruciais que ocorre na construção do conhecimento no plano pessoal e subjetivo é o fato do sujeito que aprende ter a sua disposição um determinado tipo de controle quando à verdade daquilo que está sendo por ele elaborado. Por que é necessário esse controle? O problema da objetividade da ciência exige que todo o esforço de construção pessoal seja direcionado para algo que seja compartilhado com os outros. Não é possível admitir a construção pessoal desprovida dessa preocupação de objetividade. É evidente que todo conhecimento não nasce de forma objetiva, trata-se de uma construção evolutiva, direcionada para a elaboração teórica que possa ser compartilhada com as outras formas de aprendizagem.
 
Surge aí uma questão da qual não podemos deixar de analisar. Hoje, no contexto dessa imensa diversidade e complexidade de informações que está posto ao mundo pelos mais variados meios das multimídias como é possível o sujeito cognoscente ter esse relativo controle no processo de sua construção pessoal do conhecimento? Em outras palavras, corre-se o risco de, sem esse controle mínimo, as pessoas estarem dispostas a uma enorme quantidade de informações que, na realidade, não contribuem quase nada na elaboração de um conhecimento mais científico. Essa é uma questão que nos parece crucial. Tudo indica que seja mais possível, nos dias de hoje, a elaboração de algo que funcionasse de forma equivalente aos antigos tratados científicos ou enciclopédias, onde se buscava a verdade do conhecimento. Nesses livros estavam a "verdadeira" fonte da verdade. A verdade dos saberes já constituídos, filtrados por toda uma estrutura social e histórica.
 
 
2.8  O conhecimento Didático
 
A abordagem fenomenológica na pesquisa educacional permite reconhecer com maior evidência uma dupla relação na construção do conhecimento principalmente quando se trata do fenômeno da aprendizagem. Essa é a situação, quando, por exemplo, o pesquisador se propõe a investigar o processo de aprendizagem escolar. Nesse caso, o aluno e pesquisador são sujeitos de distintos processos de aprendizagem: o aluno diante do conteúdo escolar (o objeto sendo o próprio saber escolar ) e o pesquisador ao buscar uma compreensão dessa aprendizagem também se faz sujeito  que busca apreender o objeto didático (aprendizagem de um determinado conceito)
 
O problema da construção de um conhecimento didático para a área de Educação Matemática está duplamente inserido no conjunto das questões básicas da epistemologia.  Em primeiro lugar, para propor qualquer tipo de indicação didática é necessário ter relativamente claro os elementos básicos da epistemologia do saber científico específico. Essa é uma condição necessária porém não suficiente à educação. Em segundo lugar, por que os métodos e a validade do conjunto conhecimentos inerentes à própria didática está também vinculado à questão epistemológica. A aprendizagem e o conhecimento são noções que se originam imbricadas uma à outra e assim permanecem no transcorrer de toda a sua evolução. Conhecer e aprender são habilidades fundamentais à sobrevivência. Sem elas, por certo, não teria havido ocorrido o sucesso na preservação da espécie humana, na mesma dimensão que hoje, frente aos desafios do mundo contemporâneo dificilmente o homem se adapta sem repensar novas dimensões dessas habilidades.
 
Há uma diversidade de fatores que determinam uma complexa estrutura do processo de construção do conhecimento científico. São fatores históricos, psicológicos, científicos, sociais e outros que atingem até mesmo a vida quotidiana daqueles que trabalham na elaboração desse conhecimento. Não é relativamente fácil determinar até que ponto esses fatores são interdependentes. A construção do conhecimento científico pode ser concebida como sendo o próprio fenômeno da aprendizagem quando se destaca suas características pessoais, subjetivas e particulares. É evidente que poderíamos também abordar essa construção do ponto de vista mais global, sem levar em conta os limites impostos pela dimensão pessoal. Acreditamos que nesse sentido é recomendável fazer uma diferenciação do sentido que pode ser atribuído  entre o saber e o próprio conhecimento.
 
 
Além desse contexto geral da evolução do saber, faz sentido ainda falar da transposição dos saberes restrita ao plano da elaboração pessoal e subjetiva. É nesse nível que se esboça toda a complexidade da problemática da aprendizagem. Assim, quando nos referimos à produção de um saber, quer seja no contexto geral, ou no plano pessoal, somos levados a reconhecer a existência de um processo evolutivo que caracteriza a idéia de transposição. É por esta razão que, ao iniciar o estudo da transposição didática, julgamos conveniente destacar uma diferença que pode ser estabelecida entre o saber e o conhecimento. Mesmo que na prática não se use realçar essa diferença, pensamos que para fazer uma análise didática, somos levados a revelar sentidos mais precisos para esses termos.
 
Na linguagem usada no meio científico, o saber é quase sempre caracterizado por ser relativamente descontextualizado, despersonalizado e mais associado a um contexto histórico e cultural. Por outro lado o conhecimento sempre diz respeito ao contexto mais individual e subjetivo, revelando algum aspecto com o qual o sujeito tem uma experiência direta e pessoal. Nessa concepção o conhecimento está mais associado ao caráter experimental. É evidente que não se pode estabelecer um limite nítido entre a experiência e a teoria. Entretanto, é bom lembrar que entre as várias formas de valorização  do pensamento a mais tradicional procura quase sempre distinguir o conhecimento racional do conhecimento sensorial e essa distinção certamente está baseada numa visão dualista da concepção platônica.
 
No contexto do ensino da matemática, Brousseau (1988, p.316) faz uma distinção entre conhecimento e saber colocando em evidência o aspecto da utilidade e remetendo a questão para a análise das situações didáticas envolvidas em cada caso. Nessa análise o saber aparece associado ao problema da validação do conhecimento, que no caso da matemática trata-se do raciocínio lógico-dedutivo. Ainda na análise de Brousseau, o conhecimento aparece vinculado mais ao aspecto experimental, envolvendo algum tipo de ação com a qual o sujeito tenha um contato mais pessoal.
 
A evidência dada por Brousseau ao aspecto da utilidade para caracterizar as situações didáticas nos leva a indagar em que sentido pode entender a influência do pensamento pragmático na determinação dessas idéias?
 
O recurso de associar o caráter de utilidade para diferenciar conhecimento e saber é retomado no trabalho de Conne (1996, p.225). Para esse autor, que desenvolve uma análise do ponto de vista cognitivo, o saber é considerado como um tipo especial de conhecimento cuja utilidade se faz com um relativo grau de operacionalidade. A utilidade do saber permite ao sujeito um referencial de análise capaz de lhe proporcionar um olhar mais amplo e indagador. É exatamente essa possibilidade de transformação, que permite uma espécie de transposição interna do saber sobre o seu próprio campo epistemológico. Em suma, quando o sujeito passa a ter um relativo domínio sobre um determinado saber, torna-se possível desencadear uma praxis transformadora e também geradora de novos saberes.
 
Em toda atividade que visa uma aprendizagem as relações que se estabelecem entre o sujeito e o conhecimento passam necessariamente pelas questões da linguagem. Em particular quando se trata da aprendizagem escolar, mesmo a nível das séries iniciais, esses problemas se intensificam de maneira considerável. Muitas vezes a linguagem passa de um potencial instrumento facilitador para se constituir num obstáculo no transcurso da aprendizagem. A colocação prematura das questões relacionadas à linguagem pode contribuir de forma acentuada para complicar o processo educativo. Em particular, no caso da aprendizagem matemática, principalmente nas séries iniciais do ensino fundamental, o emprego de uma linguagem excessivamente carregada pode se constituir num fator indesejável à evolução na busca do conhecimento. Os obstáculos linguísticos devem ser melhor conhecidos do ponto de vista didática.
 
2.9  Postura fenomenológica
 
Por mais esforço intelectual que possamos imaginar ao homem não é facultado a capacidade de prever o futuro, principalmente quando se trata das complexas perspectivas que envolve o fenômeno educacional. Os modelos teóricos na realidade funcionam como uma tentativa de predição dos fatos ainda não acontecidos. As teorias são construídas a partir das experiências obtidas dos conhecimentos já elaborados. Servem , portanto, não só para explicar os fatos já observados mas também para a tentativa de predizer o futuro. Entretanto, quando se solicita para deixar as teorias em suspensão, na investigação inicial dos fenômenos, de fato, não podemos honestamente fazer nenhum tipo de pré-suposição principalmente quando tentamos abordar as questões da educação. Mas o que devemos fazer é exatamente, a partir daquilo que já foi efetivamente vivenciado, fomentar o espírito de reflexão para apreender o objeto intencionado. Qual são os fundamentos do conhecimento educacional? Uma vez colocadas essa questão podemos dizer que a tarefa primeira do pensamento educacional deve ser a busca de respostas a essa questão uma vez que sem ela todas as demais observações que façamos ficam prejudicas em suas bases.
 
A tentativa de compreensão das questões educacionais e em particular aquelas relacionadas ao conhecimento científico pode ser ilustrada pela imagem grega da busca de uma "clareira" no meio de uma escuridão. Nessa escuridão temos a esperança de surgir uma possibilidade de compreensão dos fenômenos intencionados por nós. O uso dessa imagem da clareira é extremamente apropriado pelo fato de que em si mesma o termo "clareira" não tem o sentido de uma fonte de luz. Ela está associada tanto à da existência da luz quando à existência de sombra próxima da região investigada. Portanto, a busca dessa clareira já nos coloca em evidência uma dicotomia entre a clareza e escuridão na busca do conhecimento. Estamos assim sempre procurando alguma luz que possa iluminar o caminho do nosso conhecimento. Buscar uma clareira para a compreensão dos saberes implica necessariamente também estar disponível para conviver com o incompreendido. Essa disponibilidade é inclusive uma das condições básicas para o ato pedagógico. As limitações inerentes à natureza humana nos condiciona a essa permanente convivência com a dúvida. Não só as nossas próprias dúvidas como também com as dúvidas dos outros. Não se trata de aceitá-las, conviver com a dúvida no sentido de estar sempre disposto a enfrentá-la.
 
Estaremos assim, ao buscar novas aprendizagens, em permanente contato com o desconhecido que estará sempre nos instigando a descobri-lo, porém será uma fonte inesgotável de revelações. Os filósofos pré-socráticos faziam uso dessa imagem da clareira a qual deram o nome de alétheia. Um significado que pode aproximar do termo "alétheia" é aquele dado pelo "desvelamento" Com todas as limitações descritas acima esse desvelamento é então a primeira tarefa do pensamento. O sentido da "alétheia" trás portanto o problema da verdade no sentido da busca do essencial que fundamenta tanto a filosofia como as ciências.
 
O pensamento de Platão permanece determinante na busca dessa verdade em quase toda a história da filosofia, nas expressões utilizadas por Heidegger " A metafísica é platonismo" e " Toda metafísica fala a linguagem de Platão".  Heidegger diz ainda que justamente a forma de compreensão da verdade que caracteriza, no pensamento de Platão, o começo da metafísica. "Platão postula a identificação entre ser e idéia enquanto é a idéia o fundamento de toda a realidade". O mundo das idéias constitui para Platão a realidade, e o que seria então esse mundo real que temos acesso pela nossa sensação? Apenas uma sensação? Sensação de que? Atrás da sensação "árvore" o que restaria?
 
 
2.13  Retificação do conhecimento
 
Para interpretar o sentido mais próximo do real é preciso ultrapassar os níveis mais elementares envolvidos no próprio significado semântico, aquele no qual estão mergulhadas as palavras. Trata-se evidentemente de um nível necessário que consiste na busca de um significado primeiro das palavras. Nesse nível ainda não se pode falar devidamente em conceito formado, mas trata-se da simples identificação de certos termos a determinados objetos. Por mais elementar que possa parecer esse nível da identificação semântica dos objetos, mesmo no nível da escolaridade superior, encontra-se alunos com dificuldades de nomear corretamente determinadas noções estudadas há vários anos atrás. A partir do sentido primário dessas noções estabelece-se um permanente processo de aprimoramento do significado conceitual. Portanto é preciso desdobrar os diversos níveis de significação implícitos nas formas simbólicas de representação das idéias.