TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA
 
Luiz Carlos Pais
 
O objetivo deste artigo é relatar os resultados parciais de uma pesquisa teórica realizada com a finalidade de destacar o significado da noção de transposição didática para a prática pedagógica do professor de matemática. Ao indagar a propósito da possibilidade dessa aplicação estamos abordando duplamente o problema da transposição. Pois, trata-se da transposição da própria noção de transposição didática do plano teórico para o contexto da formação continuada do professor. As observações aqui descritas nasceram a partir da observação do trabalho de um grupo de vinte professores de matemática empenhados numa proposta coletiva de iniciação à prática da pesquisa educacional. O enfoque adotado nessa análise tem assim uma certa finalidade pragmática que procura sintetizar as dimensões teóricas e prática da questão didática.

1. Uma concepção da pesquisa educacional

A visão empreendida nessa análise procura defender a idéia da possibilidade de engajamento do professor de matemática no processo de sua própria formação através do envolvimento com a prática de pesquisa educacional. Essa convicção está guiada por um inconformismo diante das incongruências existentes no atual processo de formação do professor; mas é orientada também por um consciente otimismo que acredita na possibilidade de transformação dessa situação. Acreditamos que o passo inicial que deve ser dado é, sem dúvida, a decisão de envolvimento do próprio professor visto enquanto sujeito principal da ação pedagógica. Isso requer o seu verdadeiro e autêntico engajamento revelando o projeto com que cada um deve estar compromissado. A necessidade desse compromisso é lembrando por Sartre (1978, p.15) dizendo que o destino do homem está antes de tudo em suas próprias mãos e é somente pela ação que se torna possível a construção de um projeto mais significativo para ele mesmo e para a sociedade.

As dificuldades gerais que normalmente o professor encontra ao dar os primeiros passos na direção da pesquisa educacional pode ser claramente percebida até mesmo no nível introdutório dos cursos de pós graduação em educação. É evidente que esta questão está relacionada aos desafios da formação básica do professor, mas o enfoque que abordamos aqui procura destacar uma outra dimensão do problema. Quando se busca compreender a essência dessas dificuldades, no âmbito da área da Educação Matemática, se faz necessário olhar também para a questão da especificidade do saber matemático concebido a partir de seus valores educacionais. Com isso queremos dizer que, além dos obstáculos inerentes às questões gerais da formação do professor, a forma de conceber o próprio saber científico pode complicar ainda mais a natureza dessas dificuldades iniciais na pesquisa em educação. Partimos da convicção de que é possível acreditar na inserção do professor num processo de formação que o leve a desenvolver uma prática reflexiva baseada em sua própria ação pedagógica. A formalização dessa reflexão, realizada segundo um método adequado, permitiria por conseguinte uma iniciação à pesquisa educacional compreendida segundo a concepção tratada nesse texto.

Nessa perspectiva é conveniente destacar a visão descrita por Bicudo (1992) que diferencia o sentido que se pode atribuir às expressões fazer pesquisa e fazer ciência, apresentando a seguinte definição: “Pesquisar é andar em torno do interrogado, buscando, de modo sistemático e rigoroso pelo perguntado.” Por acreditar que essa concepção de pesquisa permite uma fundamentação à questão aqui tratada julgamos conveniente realçar sua amplitude e ao mesmo tempo o compromisso nela implícitos. Por essa razão destacamos em sua estrutura três unidades de significado cuja descrição acreditamos poder contribuir para a elucidação do sentido que pretendemos dar à pesquisa educacional.
A primeira dessas unidades se resume na expressão andar em torno do interrogado. O seu sentido essencial mostra que a busca do conhecimento não se processa de uma forma direta e imediata. Mesmo que o sujeito interrogue diretamente o fenômeno visado, uma descrição autêntica somente se torna possível por um envolvimento bem mais profundo do que aquele revelado pela aparência exterior. Há um processo de busca que não se esgota em si mesmo, que se caracteriza por um contato mais denso e duradouro, permanente num certo período do tempo e que se traduz como o resultado de um amadurecimento. Todas as experiências prévias do pesquisador, que foram autenticamente vivenciadas no período anterior à realização daquela reflexão, contribuem significativamente para tornar possível esse contato com a essência do objeto. Não se trata, portanto, de um sujeito estranho tentando apreender um objeto também estranho. Sujeito e objeto se comungam no espectro de um mesmo mundo. Os vínculos que os unem ultrapassam aquele simples momento de reflexão. Isso somente se torna possível através de um envolvimento mais íntimo que toca a própria esfera existencial do sujeito que guiado pela sua consciência busca uma forma de compreender o todo contido naquele objeto.

          A segunda unidade que destacamos é aquela contida na expressão modo sistemático que deve também caracterizar a pesquisa. Isso quer dizer que todos os procedimentos, desde a interrogação inicial, passando pelas diversas descrições e pelas devidas convergências, devem ocorrer obedecendo a uma certa estrutura que permita um relativo controle sobre aquilo com que se trabalha. A obtenção dos primeiros discursos que se constituem nos dados iniciais da pesquisa, as diversas leituras e re-leituras que se fazem necessárias, a busca das convergências ou divergências devem obedecer a uma certa organização que permita revelar claramente os limites da abordagem adotada pelo pesquisador. É a sistematização que contribui para tornar inteligível e comunicável toda a essência da análise realizada.

A terceira unidade destacada refere-se ao rigor necessário na realização da pesquisa. Todos os procedimentos que visam a apreensão do objeto devem ser conduzidos de um modo rigoroso. Entretanto, como a noção de rigor tem uma especificidade própria na estruturação do saber matemático, pensamos ser conveniente delinear mais precisamente o sentido que lhe atribuímos quando se refere à pesquisa educacional. Acreditamos que esta seja uma questão de fundamental importância no contexto do tema aqui abordado. Pois, o rigor matemático pode funcionar como um obstáculo epistemológico dificultando inclusive a visualização de toda a amplitude das questões pertinentes à área da educação. Antes de tudo, o rigor na prática da pesquisa educacional trata-se de buscar de uma permanente clareza e precisão no tratamento de todos os dados referentes aos discursos envolvidos. Deve-se persistir sempre na busca da fidelidade do sentido essencial de todas as manifestações do fenômeno captadas em cada uma das etapas da investigação.

Além disso, não se pode confundir o rigor necessário à realização da pesquisa educacional com o rigor inerente ao pensamento matemático. Com isso queremos destacar que há pelo menos duas formas de conceber a própria noção de rigor. Por exemplo, o papel do rigor no desenvolvimento do pensamento matemático é um dos temas investigados por Maurice Loi (1989) que mostra inclusive que, mesmo internamente à essa área de saber, não é possível ação de um único sentido a essa noção. Mesmo lembrando que por muito tempo a matemática serviu como um verdadeiro modelo de pensamento científico há de se destacar que estamos apostando na possibilidade de conceber o mundo numa visão que busca priorizar a existência em relação aquilo que o homem pode tornar-a-ser. Por certo, esta é uma fonte de dificuldade para aqueles que se iniciam na prática da pesquisa em educação matemática, pois num primeiro momento, o professor pode estar ainda fortemente impregnado pelo rigor e pelas demais características inerentes ao próprio saber matemático.

Em particular não se pode confundir o rigor metodológico referente à elaboração do saber matemático com aquele que se utiliza no desenvolvimento da pesquisa educacional. Acreditamos que uma reflexão em torno dessa questão indica, de início, que tanto a prática educativa como a prática da pesquisa devem suscitar uma permanente busca de coerência entre as diferentes formas de conceber a ciência e a educação. Tudo indica que, a rigor, não se pode ter uma concepção de ciência radicalmente distinta daquela de educação. Essa identificação pode mais prejudicar do que contribuir os que se iniciam na pesquisa. Nesse início é preciso entender que as primeiras indagações podem apenas estar voltadas para uma intencionalidade científica sem no entanto se caracterizarem ainda pelas condicionantes da ciência.

As dificuldades impostas pela necessidade de maior clareza quanto às primeiras definições não são exclusivas daqueles que se iniciam na pesquisa, pois, em parte, são relativas a própria área da Educação Matemática. Acreditamos que o caráter educacional da área não permite mesmo a admissão de uma única forma de conceber os elementos que estruturam uma ciência no que diz respeito à unicidade de seu objeto, método e valores. A própria educação se estrutura a partir de uma diversidade de olhares. Para melhor compreender o processo histórico por que passa a evolução da Educação Matemática enquanto área de conhecimento, Chevallard (1991, p.12) lembra que é necessário reconhecer que a situação da área é verdadeiramente pré-científica. Mas, na realidade o que pretendemos levantar aqui não é exatamente esse aspecto da cientificidade da área e sim as diversas formas de ver e conceber a pesquisa educacional. Não se trata aqui de levantar uma questão maniqueista de saber se a área da Educação Matemática tem ou não o estatuto de uma ciência. A questão proposta é muito mais essencial e procura somente delinear as condições mínimas de envolvimento do professor num processo de iniciação da pesquisa a partir de um certa coerência metodológica.

Fazer ciência implica necessariamente em fazer pesquisa, mas a recíproca nem sempre é verdadeira, ou seja, é possível se estabelecer uma forma de pesquisar que mesmo ainda não sendo possível considerá-la científica estaria apenas voltada para o conhecimento científico. O que se visa, portanto, é a possibilidade de conceber a pesquisa sem ter, num momento inicial, exatamente as mesmas condicionantes exigidas na prática da ciência. A ciência está, portanto, contida no universo das pesquisas, mas, é obvio que isso não quer dizer que muitas pesquisas já estejam bem caracterizadas, desde o seu início, de um caráter essencialmente científico. Quanto a essa questão Bicudo (1992, p. 8) afirma que:
 
“Fazer ciência é pesquisar um tema, é tematizar um assunto para ser investigado com rigor e, também, é expressar tal investigação em um discurso onde as idéias, construídas na investigação, são articuladas, isto é, são encadeadas de maneira lógica.”
 
Percebe-se então que o rigor e a sistematização devem estar presentes tanto na prática da pesquisa como na prática científica, de onde se pode concluir que o essencial da diferença entre a pesquisa e a ciência está no domínio que se tem em relação a um determinado tema e na forma de teorizar os resultados obtidos pela investigação.
 
A noção de transposição didática.
 
A noção de transposição didática permite uma visão panorâmica do ensino da matemática sobretudo do ponto de vista do processo evolutivo por que passa a formação do seu objeto de ensino. Na análise dessa evolução é possível identificar variadas fontes de influências que acabam determinando a verdadeira essência do saber ensinado na escola. Aqui procuramos destacar essa noção como um recurso teórico capaz de contribuir decisivamente na formação do professor de matemática despertando nele um olhar voltado para a prática da pesquisa. Pensamos que essa prática quando cultivada pelo professor-pesquisador que pode contribuir fortemente para um conhecimento mais autêntico da especificidade inerente ao saber escolar.
          As idéias de transposição didática e do saber escolar estão intimamente interligadas. Toda vez que se refere à transposição didática está implícito um certo movimento evolutivo em torno de um determinado saber específico. Da mesma forma, quando se faz referência a um determinado saber ensinado na escola é natural pensar num movimento evolutivo que caracteriza sua transposição didática. Assim, quando nos referimos à produção de um saber, quer seja no contexto geral, ou no plano pessoal da aprendizagem, somos levados a reconhecer a existência de um processo evolutivo que caracteriza a idéia de transposição.

Por esta razão, ao iniciar o estudo da transposição didática é conveniente destacar uma diferença que pode ser estabelecida entre o saber e o conhecimento. Mesmo que na prática não se use realçar essa diferença, pensamos que para fazer uma análise didática, somos levados a revelar o sentido mais preciso desses termos. Na linguagem usada no meio científico, o saber é quase sempre caracterizado por ser relativamente descontextualizado, despersonalizado e mais associado a um contexto histórico e cultural do que ao nível pessoal. Por outro lado, o conhecimento pode se referir mais ao contexto individual e subjetivo, revelando algum aspecto com o qual o sujeito tem uma experiência mais direta. Nessa concepção o conhecimento está mais associado ao caráter experimental e envolve uma dimensão na própria aprendizagem.

Quando estudamos a transposição didática reconhecemos a existência da noosfera, termo adotado por Chevallard para caracterizar o conjunto das fontes de interferências no processo seletivo dos conteúdos constituintes dos programas escolares. O conjunto final desses conteúdos podem ser também chamados de saber escolar cuja a fonte primária é o saber científico. Entretanto, através dos efeitos do processo evolutivo, ocorrem transformações determinando características bem específicas ao saber escolar. A noção de transposição visa estudar esse processo seletivo realizado através de uma longa cadeia de influências envolvendo diversos segmentos do sistema educacional. Assim, o saber escolar é o resultado de um longo processo de seleção e transformações sucessivas que vai desde a sua produção no contexto da história da ciência até ser efetivamente ensinado em sala de aula. Diversas etapas desse transcurso podem ser delimitadas como áreas quase intransponíveis às demais. O resultado dessa seleção se resume não só na determinação dos conteúdos, como também determina os próprios valores, objetivos e métodos que conduzem o ensino da matemática
 
          No transcorrer da prática pedagógica em educação matemática se faz necessário estar duplamente atento para se cultivar um permanente espírito de vigilância intelectual no sentido de não confundir o objeto educacional com o objeto científico. Aquilo que é específico ao saber científico não necessariamente representa o essencial para a prática educativa e vice versa. Esse aspecto é confirmado por Astolfi (1990, p.48) quando destaca a existência de uma epistemologia inerente à própria prática docente que na realidade está relacionada com a ciência mas que não pode de fato ser identificada a ela. Essa epistemologia que emana da prática pedagógica tradicional do professor de matemática revela, em seu interior, concepções de natureza sincrética onde não se diferencia o educacional do científico.
         
Quanto ao saber a ensinar há também toda uma diversidade de aspectos cuja análise é essencial à questão educacional. Em primeiro lugar trata-se de um saber ligado a uma forma didática que serve para apresentar o saber ao aluno. Em seguida, ocorre uma mudança considerável não só no conteúdo como também nos objetivos de sua utilização educacional. Na passagem do saber científico ao saber a ser ensinado ocorre a criação de uma teoria didática que ultrapassa os próprios limites do saber específico. A partir dessa teoria surgem os materiais pedagógicos que visam contribuir com a intenção de ensino. Nessa perspectiva é preciso destacar que, enquanto a descoberta da ciência está vinculada ao saber acadêmico, o trabalho do professor envolve mais uma simulação de descoberta do saber. Enquanto o saber científico é apresentado à comunidade científica através de artigos, teses e livros especializados; o saber a ensinar se limita quase sempre ao nível dos livros didáticos, programas e de outros materiais de apoio.

         
O processo de ensino resulta finalmente no verdadeiro objeto do saber ensinado que é aquele registrado no plano de aula do professor e que, não necessariamente, coincide com a intenção prevista nos objetivos programados ao nível do saber a ensinar. A análise do saber ensinado coloca em evidência os desafios da realização prática de uma metodologia de ensino que, por sua vez, não pode ser dissociada da questão dos valores educacionais e do próprio objeto específico da aprendizagem.

         
Por outro lado, não há garantia de que, no nível individual, o resultado da aprendizagem corresponda exatamente ao conteúdo ensinado. Assim, pode-se chegar à informações bem distantes ao saber original. Nos casos extremos, permanecem apenas alguns vestígios do significado original. Por esta razão, na prática educativa, o conteúdo não pode ser concebido apenas como uma simplificação do saber científico. Pois, se de um lado temos uma metodologia científica, do outro, os objetivos educacionais conduzem a uma metodologia de ensino essencialmente diferente. Enquanto o saber científico é validado pelos seus paradigmas internos o saber ensinado está mais diretamente sob o controle de um contrato pedagógico implícito que rege as relações entre professor, aluno e saber.

         
O saber matemático que é o resultado de um trabalho especializado desenvolvido pelos matemáticos, embora não tendo a mesma finalidade educacional da atividade pedagógica, exerce uma influência decisiva na prática de ensino do professor de matemática e no tipo de o trabalho realizado pelo aluno. Entretanto, como não há uma única forma de conceber a matemática as influências decorrentes podem ser também bem diferenciadas entre si. Assim, em relação ao problema da existência e da realidade das idéias matemáticas, o formalismo e o platonismo se constituem em duas posições extremas, contraditórias e predominantes na prática científica da matemática. Essas posições tem portanto influências diferenciadas na prática pedagógica. Por essa razão é preciso destacar a relação que há entre o trabalho do professor de matemática e o trabalho do matemático que acaba determinando uma influência considerável na prática pedagógica. Enquanto o matemático elimina as condições contextuais de sua pesquisa e busca níveis mais amplos de abstração e generalidade, o professor de matemática, ao contrário, deve recontextualizar o conteúdo, tentando relacioná-lo a uma situação mais significativa para o aluno. Todavia o contexto reconstituído nunca é o mesmo daquele em que o saber foi elaborado, pois, no meio científico prevalece uma realidade distinta daquela da escola. Enquanto para o pesquisador o saber é o objeto principal, na prática escolar, o conhecimento é um instrumento educacional, com natureza própria. Essas diferenças fazem com que na sala de aula prevaleça sempre a existência de uma situação didática com toda sua especificidade pedagógica.

         
Toda proposta educativa normalmente pressupõe a existência de uma preparação prévia de um texto que deve delinear o saber a ser abordado. A textualização do saber é um processo de preparação por que passa o conteúdo a ser ensinado e sua realização ocorre sob o balizamento de certas regras que estruturam uma forma didática. Entre os elementos constitutivos do texto do saber Chevallard (1991, p.57) destaca duas variáveis fundamentais: o tempo didático e tempo de aprendizagem.

         
O tempo didático, que é aquele marcado pelo planejamento escolar em vista de uma exigência legal, prevê um caráter cumulativo para a elaboração do saber. Isso implica no pressuposto de que seja sempre possível delimitar o tempo de aprendizagem. Na prática pedagógica tradicional, normalmente acredita-se que o tempo didático seja o mesmo da aprendizagem e esta seria sempre possível de ser elaborada através de uma seqüência lógica e linear dos conteúdos como se fosse simplesmente a própria apresentação formal do conteúdo.

         
O tempo de aprendizagem está diretamente vinculado aos conflitos entre o aluno e o objeto do conhecimento. Diz respeito ao fenômeno da aprendizagem em si, a qual exige uma permanente reorganização das informações, caracterizando toda a complexidade do ato de aprender. Trata-se de um tempo que não é seqüencial e nem pode ser linear na medida em que é sempre necessário retomar outros conhecimentos anteriores para poder transformá-los. Na comparação entre o tempo didático e o tempo de aprendizagem, deve se considerar que a temporalidade subjetiva não pode ser igualada às exigências do planejamento didático. São duas noções que marcam um ponto crucial na avaliação.

 
3. Elementos de uma síntese
 
A dinâmica do processo de formação continuada do professor pode ser aprimorado através de um trabalho em equipe visando a realização de pesquisas a partir da própria prática pedagógica. A compreensão da especificidade da educação matemática deve ser buscada de forma integrada em relação aos vários aspectos que constituem esse fenômeno educacional. Isso se torna possível através de uma visão educacional mais ampla obtida, de preferência, por meio de uma abordagem interdisciplinar, cultivando as condições para uma disponibilidade maior para as transformações necessárias. Deve-se persistir no sentido de que a prática reflexiva conduza à elaboração de um referencial teórico-metodológico permitindo uma concepção de educação significativa e coerente com o mundo no qual estão inseridos os sujeitos envolvidos.
A definição de um tema de pesquisa que conduza o trabalho em equipe começa a ser elaborada quando se torna possível estruturar uma indagação em torno de um objeto de interesse comum aos participantes do grupo. Essa indagação já tem em si uma importância considerável por representar um primeiro nível de síntese cognitiva superior em relação ao estado caótico em que as dúvidas iniciais estão inseridas. Mas, ao indagar sobre um determinado assunto pode ser que ainda não se tenha uma percepção clara da totalidade de um tema estruturador para a pesquisa. Assim essa indagação inicial deve, portanto, possibilitar no mínimo um direcionamento a ser seguido pelo pesquisador.
Essa forma de se lançar numa investigação educacional se associa com a noção de retificação sucessiva do conhecimento que consiste em admitir um permanente e evolutivo processo de aproximação do conhecimento científico. Essa noção ocupou um espaço considerável na obra de Bachelard[1] para o qual a noção de retificação do conhecimento serviu como o próprio objeto que conduziu boa parte de sua obra.

No que se refere mais precisamente à iniciação na prática da pesquisa em educação matemática é conveniente estar sempre vigilante para o fato de não se permitir que o hábito de trabalhar com a sistematização e com o rigor, inerentes ao pensamento matemático, contagie a prática da pesquisa educacional. De forma correlata isso já ocorre na prática pedagógica tradicional onde as dimensões da generalidade, abstração, rigor e coerência lógica passam da ciência em si para a condução dos procedimentos pedagógicos. Não se pode, por exemplo, confundir o rigor necessário à realização da pesquisa educacional com o sentido matemático desse termo. Por certo, para o professor de matemática esta é uma fonte adicional de dificuldade sobretudo para aqueles que se iniciam na prática da pesquisa em educação, pois num primeiro momento, pode ele estar ainda impregnado pelo rigor e pelas demais características do próprio saber matemático. Nesse sentido há um conjunto de noções inerentes ao conhecimento matemática que pode funcionar como um obstáculo epistemológico à uma visão educacional.

Assim, no que se refere à prática tradicional do professor de matemática ocorre o que pode ser chamado de contágio epistemológico entre a natureza específica do saber científico com as concepções que traduzem sua ação pedagógica. A natureza do conhecimento matemático influencia indevidamente as finalidades maiores dos valores educacionais. Um exemplo, nesse sentido, é o uso quase exclusivo do método axiomático no ensino da matemática que fornece apenas uma forma de apresentação do conteúdo, mas as questões mais desafiadoras da construção do conhecimento não são por ele alcançadas. Além disso, esse enfoque desconsidera as questões inerentes ao desenvolvimento do saber e normalmente se apaga os vínculos com as práticas de referências. A análise da transposição didática possibilita a restituição dessa perda de significado buscando compreender as questões educacionais de uma forma mais contextual e científica.

A análise da evolução do saber através da transposição didática possibilita a fundamentação de uma prática pedagógica mais reflexiva, a qual permite ao professor uma melhor compreensão da especificidade do saber escolar com que ele trabalha. Isso ocorre principalmente no que se refere aos valores educativos do saber científico. Essa atitude pedagógica conduzida através de um trabalho em grupo, de forma sistemática e rigorosa pode servir de base para uma iniciação à pesquisa na própria sala de aula.

A essência contida na noção de transposição didática significa uma maneira de expressar o verdadeiro espírito de vigilância intelectual na prática educativa sobretudo quando enriquecida por um trabalho em equipe de preferência interdisciplinar. Nesse sentido é necessário um esforço permanente de pesquisa que vise a identificação das inquestionáveis questões específicas da educação matemática. Somente assim, poderemos melhor conhecer o que é específico no sistema didático do ensino da matemática. Finalmente, é preciso admitir um permanente espírito de retificação das idéias na direção da objetividade, da abstração e da generalidade que visem o aprimoramento do aspecto científico do conhecimento didático que queremos construir.

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[1] Em 1928 quando Bachelard publica sua tese “Ensaio sobre o Conhecimento Aproximado” a noção de retificação já aparece pela primeira vez, mas em diversas outras de suas obras essa idéia toma novas dimensões. “Uma retificação, ainda que o termo evoque apenas um ajuste, uma acomodação mais ou menos dispensável, é uma modificação do pensamento que, por mínimo que seja o seu pretexto, qualitativamente, comporta uma mudança de perspectiva sobre a natureza do objeto.” QUILLET (1977, p. 43).