Estudo do Teorema de Pitágoras
Luiz Carlos Pais
Luiz Carlos Pais
Resumo – Este artigo descreve os resultados de uma pesquisa realizada com objetivo de caracterizar aspectos didáticos relativos ao ensino do Teorema de Pitágoras, a partir de uma análise de doze livros didáticos brasileiros, da oitava série do Ensino Fundamental, publicados nas duas últimas décadas. O referencial teórico fundamenta-se na Teoria Antropológica do Didático, proposta por Chevallard (2002) para estudar os elementos que interferem na organização do trabalho do professor. A noção de vulgata, proposta por Chervel (1990), é também utilizada para caracterizar o que tem sido preservado no ensino da geometria quer seja em termos conceituais ou pedagógicos. Uma análise qualitativa foi realizada nas páginas reservadas ao estudo do referido teorema. Os resultados evidenciam que o Teorema de Pitágoras pertence ao núcleo dos conteúdos preservados no ensino da geometria e essa presença destaca-se por um diferenciado grau de formalização em relação a outros conteúdos. Constata-se ainda uma tendência de valorizar articulações entre aspectos matemáticos e pedagógicos o que implica na diversificação das estratégias de ensino e dos recursos. Estratégias baseadas no pensamento indutivo aparecem intercaladas à utilização de problemas e de procedimentos lógico-dedutivos. A pesquisa revelou a existência de uma expansão significativa do uso de recursos visuais, por meio de desenhos, esquemas gráficos e fotos.
Palavras-chave: Teorema de Pitágoras. Ensino da Geometria. Livros Didáticos.
Considerações iniciais
Partimos do pressuposto que o livro didático é um dos recursos mais usados no ensino da matemática onde funciona como referência na organização do estudo. Quer seja por parte de alunos ou de professores, se constitui em uma fonte de informações para a elaboração de um saber, onde a generalidade, a formalidade e a abstração assumem um estatuto diferenciado. Chervel (1990) observa a existência dessa particularidade da matemática em relação às outras disciplinas. Considerando a especificidade de cada área, percebemos os diferentes estatutos que o livro didático pode assumir na condução do trabalho docente. Por outro lado, o livro didático tem sido uma importante fonte de dados para motivar pesquisas cujo interesse vem sendo resgatado nos últimos anos.
Em parte, esse interesse deve-se à expansão das políticas públicas para a análise, compra e distribuição de livros na rede pública, através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). No caso da pesquisa relatada neste artigo, a atenção volta-se para livros publicados nas duas últimas décadas com o objetivo de explicitar tendências atuais do ensino da geometria a partir de uma análise dos conteúdos, estratégias e recursos. A delimitação em torno do Teorema de Pitágoras, representado nas próximas páginas pelas letras TP, justifica-se em face da continuidade de outros trabalhos já realizados, tendo em vista alguns sinais de revalorização do ensino da geometria. Por outro lado, esta opção é também uma tentativa de contribuir na revalorização da geometria que passou por um período recente de abandono no Brasil, conforme esclarece o trabalho de Pavanelo (1993). O quadro que acabamos de delinear levou-nos a definir a seguinte questão: quais são as tendências atuais do ensino do TP, no que diz respeito aos aspectos conceituais e metodológicos indicados pelos livros didáticos de matemática, publicados no Brasil, no transcorrer das duas últimas décadas?
Referencial teórico
Estamos admitindo que a avaliação implementada pelo PNLD, baseada em parâmetros pedagógicos definidos no contexto das próprias áreas disciplinares, tem condições de motivar reflexões em torno das estratégias de ensino e dos recursos adotados. As referências pedagógicas implementadas circulam do espaço mais amplo dos parâmetros curriculares até ao território mais localizado da sala de aula. Como compete ao professor escolher as opções metodológicas, o livro não determina, mas condiciona a escolha das estratégias. Muitas vezes, as orientações contidas no livro didático são, até mesmo, reproduzidas pelo professor. Por outro lado, percebemos que o poder de influência do livro didático na definição das atividades realizadas em sala parece ser mais intenso na matemática do que em outras disciplinas. Nossa atuação como formadores de professores, permite-nos verificar a forte influência exercida pelo livro na maneira de conduzir a aula, sobretudo, na fase inicial da carreira. Por certo, a maturidade profissional permite ao professor maior liberdade para diversificar suas estratégias e ter um olhar mais crítico sobre as qualidades desse dispositivo.
Nessa pesquisa pretendemos caracterizar orientações propostas para o ensino do TP a partir da análise de livros didáticos. Para isso visamos identificar a presença desse conteúdo em relação ao núcleo dos conceitos apresentados nos livros e a partir dessa identificação, analisar elementos que definem as estratégias propostas. Segundo nosso entendimento, a identificação dos conteúdos comuns aos livros didáticos fornece uma visão preliminar da parte conceitual que tem sido preservada. Tendo apresentado uma visão geral dos conceitos, passamos a identificar os recursos associados a essas noções, tais como definições, representações, propriedades e deduções, uma vez que tais elementos podem ser classificados em função do significado assumido no contexto matemático. Em paralelo, nossa intenção é levantar criações didáticas, sendo esta expressão aqui entendida como uma das noções desenvolvidas na teoria da transposição didática, proposta de Chevallard (1991).
A escolha do período de duas décadas ocorre em função da implantação da avaliação do PNLD, nos meados da década de 1990, o que poderia servir como mais uma fonte de influência na composição da transposição didática. Por sua longa trajetória na história da educação e mais particularmente na constituição da idéia de disciplina escolar, tal como desenvolve Chervel (1990), o livro didático revela uma parte considerável dos saberes com os quais os agentes da educação estão diretamente envolvidos. Isso acontece em relação a todas as disciplinas e dentro de cada área de conhecimento o manual escolar assume suas próprias características. No caso da educação matemática, em decorrência da influência recebida de suas raízes positivistas, estimamos que a estabilidade do texto didático assuma um papel mais preponderante em vista de seus aspectos formais. Em outros termos, para explicitar a objetividade e a generalidade previstas na elaboração do saber matemático, valoriza-se a publicação de um texto que possa servir de referência na condução do ensino. Trata-se, por exemplo, em explicitar definições, propriedades, representações, teoremas, demonstrações e problemas que, conjuntamente, expressam a estruturação lógica típica dessa disciplina.
Uma noção que revela uma analogia com a textualização do saber escolar é o conceito de vulgata, proposto por Chervel (1990) para estudar a constituição das disciplinas escolares. Uma vulgata reúne o que existe de comum, em dado momento, em torno das práticas usuais de uma disciplina escolar, sendo formada pelos conteúdos, objetivos, métodos e problemas típicos que predominam como os elementos que devem ser considerados pelo professor. Uma parte da vulgata aparece nos livros didáticos de uma determinada época, fazendo com que os mesmos tenham algo em comum ou que, de certa forma, sejam muito semelhantes uns com os outros.
A escolha de conteúdos, métodos e recursos resultam das fontes de influência que atuam na transposição didática, conforme destaca Chevallard (1991). Tais elementos encontram-se registrados em livros destinados aos professores, relatórios, teses, softwares, parâmetros, programas, em diferentes tipos de exame e em outras fontes, entre as quais os livros didáticos. São registros publicados para defender a validade do saber a ser ensinado e também da forma como eles devem ser conduzidos pelos professores. Entre os diversos registros textuais do saber, existentes no contexto escolar, nós escolhemos o livro didático para servir como fonte primária de dados da pesquisa aqui relatada. Um dos argumentos para a defesa dessa escolha consiste no fato da influência que esse recurso normalmente exerce na prática de ensino, como fonte de referência e de validação do saber a ser ensinado.
Ao estudar a prática cultural que se encontra enraizada no trabalho docente, Chevallard (2002) destaca a importância de identificar as tarefas, técnicas, tecnologias e teorias que proporcionam sustentação dos outros elementos. De maneira geral, todos os momentos de ensino caracterizam-se pela presença de alguma tarefa a ser desenvolvida. Por um lado existem as tarefas dos alunos e, por outro, as tarefas do professor. São tarefas interligadas que conjuntamente formam as diferentes maneiras de organizar o estudo da matemática. Por outro lado, a cultura escolar levou à definição de tarefas resolúveis por técnicas que devem ser explicitamente ensinadas. Assim, podemos identificar a existência de um bloco que estabelece uma proximidade importante entre a dimensão prática e técnica da educação matemática.
Estamos interessados em identificar como ocorrem as ligações entre as organizações matemáticas e didáticas induzidas pelos livros didáticos, no caso mais pontual do teorema de Pitágoras. Tais organizações induzem, em parte, os elementos da praxeologia do professor de matemática. Em termos dessa teoria, nossa questão de pesquisa pode ser assim traduzida: como os livros didáticos apresentam as articulações entre as organizações matemáticas e didáticas relativas ao ensino do teorema de Pitágoras? Quais são as principais tarefas e técnicas relativas ao ensino do teorema de Pitágoras que aparecem nos livros didáticos? Tendo em foco essas questões, entendemos que elas poderão lançar luzes sobre as praxeologias dos professores de matemática podem e devem produzir em suas práticas escolares.
Aspectos metodológicos
Esta pesquisa foi realizada através de uma abordagem fenomenológica, no sentido descrito por Bicudo e Espósito (1994), a partir da análise, da interpretação e da busca das essências contidas nos discursos contidos nos livros didáticos. Focalizamos esse discurso a partir da materialidade contida nas páginas dos livros, na totalidade de seu texto, incluindo figuras, fotos e outros recursos. Estamos supondo que algumas das escolhas feitas pelos autores dos livros acontecem em função de orientações pedagógicas publicadas no discurso mais amplo da comunidade de educadores matemáticos. Não temos intenção de proceder a uma análise crítica desse material e sim contribuir no processo de identificação das tendências. Outro argumento para estudar tais tendências consiste no nosso compromisso individual e coletivo para formar futuros professores. Os dados foram obtidos de doze livros destinados à oitava série do Ensino Fundamental, publicados no Brasil, no período compreendido entre 1985 e 2002. Esses livros são identificados no anexo I deste artigo. A análise realizada concentrou-se no entrelaçamento entre aspectos conceituais e didáticos. A partir dessa análise, foi obtido um conjunto de unidades que permitem informações em relação à questão da pesquisa. Em seguida, essas unidades foram submetidas a um processo de convergência e análise teórica, pelo qual destacamos as idéias centrais que sinalizam o que existe de comum nos livros didáticos, atualmente, no ensino do referido conteúdo geométrico.
Análise de livros didáticos
Para caracterizar o ensino do TP procuramos verificar qual é a importância da presença desse conteúdo nos livros. Em seguida, destacamos os principais elementos apresentados para organizar os aspectos conceituais e didáticos. Esses elementos são interpretados como constituintes das diferentes organizações praxeológicas induzidas pelos livros. Nesse sentido, estamos considerando o livro didático como uma das fontes indutoras dessa organização do estudo, pois, à rigor, compete ao professor decidir pela definição dos recursos e das estratégias a serem adotadas. Foi com base no destaque desses elementos que nós demos início à análise descrita nos próximos parágrafos.
Uma presença importante
Uma primeira análise revelou que o TP pertence ao núcleo de conteúdos que aparecem em todos os livros analisados. Mesmo que haja sinais de alterações na organização didática, tal conteúdo permanece presente nos livros. Mesmo que essa constatação possa parecer óbvia, é importante observar que tal teorema se revela como um dos conteúdos onde a sistematização tem sido relativamente preservada, fornecendo indícios de um ponto importante na caracterização dos conteúdos mais expressivos do ensino da matemática. Assim, ao estudar o estatuto do TP, reencontramos uma questão mais ampla. Embora não tenhamos critérios puramente objetivos para mensurar a sistematização própria da educação matemática, esta constatação sinaliza para um tema merecedor de mais estudos. Do ponto de vista pedagógico, como entender a componente da sistematização que se localiza nas raízes do saber matemático? Desse modo, podemos dizer que embora o TP pertença, pelo menos no transcorrer das duas últimas décadas, à vulgata do ensino da matemática resta-nos identificar os principais sinais de alterações nas organizações didáticas.
Aspectos conceituais e didáticos
Nas páginas reservadas ao TP podem ser identificados diferentes elementos que fornecem subsídios de resposta à questão norteadora dessa pesquisa. Alguns desses elementos são relativos aos aspectos epistemológicos, outros são voltados mais para aspectos didáticos, lembrando ainda que alguns se localizam na interseção dessas duas dimensões. Para identificar esses elementos, usamos as noções de organizações matemáticas e de organizações didáticas, propostas por Chevallard (2002), no quadro da teoria antropológica do didático. Entretanto, como esses aspectos encontram-se associados, qualquer categorização deve ser realizada, levando em consideração essa articulação entre o plano conceitual e didático. No que se refere às características específicas do saber matemático, no contexto do ensino do TP, destacamos as seguintes convergências: definição, dedução, representação, expressão algébrica, notação, demonstração, enunciado e aproximação. Segundo nosso entendimento, tais categorias têm um significado ancorado mais no território do saber científico, pois, de modo geral, a cultura matemática tem referências objetivas para expressar, por exemplo, o que é uma definição, uma expressão algébrica ou um enunciado. Por outro lado, os livros didáticos trazem diversos recursos associados ao TP, interpretados, por nós, como elementos da organização didática. Entre esses elementos destacamos os seguintes: aspectos históricos, articulações entre conceitos, articulações com outras disciplinas, articulações entre os campos de conteúdos da matemática, desenhos e fotos, exercícios, problemas e aplicações. Na continuidade, detalhamos alguns desses elementos, fazendo algumas observações de natureza epistemológica e didática.
4.3 Representação de conceitos
Destacamos a existência da categoria representação para incluir as situações em que o livro didático lança mão de desenhos para ilustrar um conceito da geometria plana ou espacial. No caso da pesquisa aqui relatada, trata-se de representações referentes ao TP. Entretanto, como não há uma identificação entre a abstração conceitual e a materialidade do desenho, o uso desse tipo de representação, embora sendo um recurso quase indispensável, pode se constituir também como fonte de algumas dificuldades na organização do estudo. Toda representação fornece apenas indícios do conceito, mas não tem a mínima possibilidade de substituí-lo. Se em nível das séries iniciais podemos admitir certa identificação do desenho com o conceito, no estrito espaço da concepção do jovem aluno, mas pelo lado da concepção docente isso não deve acontecer. Em certas situações, podemos observar que o desenho pode, até mesmo, constituir-se em um obstáculo, quando o aluno se prende, pontualmente, em alguns aspectos materiais do próprio grafismo e ainda não consegue fazer uma articulação correta com o conceito representado. Uma alternativa didática para superar essa dificuldade é a diversificação de recursos e talvez esta seja uma das componentes mais expressivas da atualidade: diversificar os caminhos para expandir as condições de ensino e de aprendizagem. Analisando a presença das representações gráficas, constatamos a existência do uso expressivo desse recurso em todos os livros. De modo geral, existe uma quantidade expressiva de tais representações, quer seja para ilustrar definições, propriedades, exercícios ou outros conceitos relacionados. Esse expressivo número revela a importância da presença do desenho no ensino da geometria, conforme comprovam os trabalhos de Audibert (1990) e Bonafé (1988).
Diferentes articulações
Ao analisar a presença do TP nos livros didáticos, podemos constatar que uma das tendências consiste em valorizar diferentes articulações que contribuem na organização do estudo. Trata-se de procurar entrelaçar aspectos pedagógicos e matemáticos, visando expandir as condições de estudo. Nesse sentido, tal tendência pode ser interpretada como uma tentativa de manter indissociáveis as organizações matemáticas e didáticas. Com base nessas concepções identificamos a presença de diferentes tipos de articulação. Em primeiro lugar, destacamos a existência de articulações de conceitos, realizadas com a finalidade de associar os diferentes conceitos que participam da própria estrutura lógica de composição do TP. Como se fosse um destaque ao material básico com o qual será edificada, no contexto do livro, uma nova noção matemática. Em seguida, destacamos o que estamos denominando de articulações internas, nas quais, pelo menos dois campos de conteúdos da matemática encontram-se relacionados entre si. Um terceiro tipo é aquele das articulações entre disciplinas, caracterizado por situações onde um conteúdo matemático encontra-se relacionado com outras disciplinas. Conforme podemos constatar, a valorização das articulações entre conceitos, por ser mais próxima da poderosa dimensão epistemológica, aparecem igualmente nos livros didáticos das duas décadas que foram objeto de nossa pesquisa. Por outro lado, os livros publicados mais recentemente tendem a valorizar mais as articulações internas e as articulações entre disciplinas, embora essa não seja uma regra geral. Nesse sentido, registramos aqui a presença de alguns sinais da tentativa de expandir a contextualização do ensino da geometria, pois de um setor conceitual mais isolado, passa-se a valorizar ligações com outros campos de conteúdos da matemática e também com outras disciplinas.
Articulação de conceitos
Para ilustrar uma articulação de conceitos recorremos a um exemplo retirado do livro 8.1 (p. 137) que inicia o estudo do TP com uma representação do triângulo retângulo, dando destaque para seus principais elementos e chamando a atenção do aluno para a importância de considerar suas medidas. Os conceitos de hipotenusa, catetos e alturas são relembrados para, em seguida, definir as projeções ortogonais dos catetos sobre a hipotenusa. O destaque dessas noções serve ainda de base para relembrar o conceito de semelhança de triângulos cuja essência será usada na demonstração do TP. Esta recorrência a conceitos anteriormente estudados e o destaque da sua ligação com um novo conceito que está sendo estudado naquele momento é o que caracteriza as articulações de conceitos. Trata-se de um entrelaçamento das organizações matemática e didática, pois, do ponto de vista epistemológico esta recorrência participa efetivamente na elaboração de um novo conceito e por outro lado é uma estratégia pedagógica com a finalidade de expandir as condições de ensino e de aprendizagem. Um segundo exemplo de articulação de conceitos pode ser retirado do livro 8.4 (p. 178) que no início do parágrafo reservado ao TP, relembra a definição de triângulo retângulo e de seus elementos: hipotenusa e catetos, usando para isso uma representação gráfica. De maneira geral, todos os livros analisados fazem uma utilização importante da articulação de conceitos. Por esse motivo podemos dizer que esta técnica localiza-se no território comum dos aspectos epistemológicos e didáticos.
Articulações internas
O livro didático realiza uma articulação interna quando ele propõe situações nas quais o estudo de um conteúdo encontra-se explicitamente relacionado a conteúdos de um outro campo da própria disciplina de matemática. Um exemplo de articulação interna aparece no livro 8.8 (p. 36), ao explicar o significado do termo teorema, na construção lógica da geometria, destacando que se trata de uma afirmação passível de ser objeto de uma demonstração e que os teoremas aparecem também no estudo da álgebra. Na continuidade, esse mesmo livro observa ainda a existência de um aspecto que unifica os campos da álgebra e da geometria, que é o pensamento lógico dedutivo. Esse tipo de articulação permite destacar a inseparabilidade das organizações didáticas e matemáticas, adotando aqui os conceitos propostos na abordagem antropológica da didática. Os livros publicados a partir dos meados da década de 1990 começam a dar maior ênfase a atividades, problemas ou até mesmo orientações explícitas, propondo esse tipo de articulação dos conceitos geométricos com conteúdos algébricos, numéricos ou medidas. A valorização de articulações entre conceitos pertencentes às áreas internas da matemática é uma estratégia cada vez mais presente nos livros didáticos. Até mesmo uma leitura mais rápida dos índices dos livros permite constatar uma tendência de mudança no que diz respeito a esse tipo de articulação. Esse é um dos aspectos mais significativos, quando comparamos os livros do primeiro período com os mais recentes. Alguns livros publicados a partir de 1995 reservam parágrafos inteiros cujos títulos expressam essa intenção de articular da geometria com outros campos da própria matemática. Esse é o caso do livro 8.10 (pp. 94-108) que reserva um capítulo para tratar de Relações entre álgebra e geometria, mostrando como é possível expressar algebricamente as relações entre as medidas geométricas.
Articulação entre disciplinas
Para contemplar a articulação da matemática com outras disciplinas alguns livros didáticos, por exemplo, sugerem a aplicação do TP para calcular a distância entre dois pontos ou duas cidades, destacando aspectos geográficos, astronômicos ou ainda falando da agrimensura. A ênfase dada à articulação da matemática com outras disciplinas depende da importância dada aos valores instrumentais do saber escolar. Quanto a este aspecto, o livro 8.10 (p. 227) apresenta um texto contendo, além de aspectos históricos sobre Pitágoras, a reprodução de uma obra de arte, pois essa valorização da arte acontece em diversas páginas dessa obra. Este mesmo livro (p. 222) propõe uma atividade com o uso de uma calculadora e articula o TP com as atividades profissionais de um topógrafo ou de agrimensor. O livro 8.12 (p. 119) ressalta a importância da aplicação do triângulo retângulo em atividades ligadas à astronomia ou à medição de terras, observando que tal aplicação já vem de muito tempo atrás. Finalmente, constatamos que essa organização didática para estudar geometria aparece com maior ênfase em livros didáticos publicados no transcorrer da última década em relação àqueles publicados na década anterior.
4.5 Diversificação das estratégias de ensino
Os livros didáticos mostram uma tendência de diversificação das estratégias de ensino. Para comprovar isso, optamos por definir uma tipologia das estratégias de aparecem no estudo do TP. Para trabalhar esse conteúdo quase todos os livros apresentam pelo menos uma representação, uma dedução e o enunciado da proposição. Além desses elementos, aparecem outros que servem para implementar as estratégias. Seguindo este caminho, de maneira geral, identificamos três estratégias.
Em primeiro lugar, destacamos a Estratégia Lógico-dedutiva, na qual o texto apresenta, a partir de uma representação, o enunciado da proposição a ser demonstrada e descreve uma seqüência lógico-dedutiva. Essa dedução é feita, quase sempre, com base na noção de semelhança de triângulos e conclui com o enunciado da proposição. Nos livros publicados antes de 1995 predomina esse tipo de estratégia, a qual começa a ser alterada nos livros publicados posteriormente. Assim sendo, neste período, destacamos os primeiros sinais de mudança organização didática, evidenciando os primeiros traços de uma possível redefinição na vulgata do ensino da geometria. Em suma, não é o conteúdo em si que tende a mudar e sim a parte referente às organizações didáticas implementadas no estudo.
Uma outra maneira de tratar da validação das proposições é através da Estratégia Indutivo-dedutiva, na qual o texto propõe, inicialmente, um procedimento experimental, a partir do tratamento de casos particulares, quase sempre fazendo uso de representações para orientar as atividades a serem feitas pelos alunos. No caso do TP essa abordagem consiste em, por exemplo, levar o aluno a calcular as áreas dos quadrados construídos sobre os lados de um triângulo retângulo e somá-las para verificação da relação de Pitágoras. Após essa verificação prática, a proposição em estudo é enunciada e geralmente se faz uma dedução para demonstrar sua validade, finalizando com a proposição de alguns exercícios ou problemas de aplicação. Em alguns casos, a seqüência lógico-dedutiva pode preceder o enunciado da proposição. Embora essa estratégia já apareça em livros mais antigos, nos mais recentes há uma tendência em diversificá-la, revelando dessa maneira sinais de alteração na vulgata do livro didático de matemática, na parte específica da geometria.
Finalmente, destacamos a Estratégia Resolução de Problemas, pela qual o livro propõe, logo de início, a resolução de um problema no qual incide o TP. Ao propor esse problema, o autor, geralmente, fornece algumas sugestões, destaca alguns aspectos, para motivar a interação do aluno com o problema e com os conceitos visados. Na continuidade, o livro pode, em alguns casos, retomar a apresentação de alguns procedimentos formais, quer seja envolvendo representações, uma dedução lógica e o enunciado da proposição. Essa estratégia é uma opção bem menos freqüente, mas os livros que a utilizam são todos publicados mais recentemente. Seria essa uma estratégia que tende a caracterizar o livro didático de matemática da atualidade? Ao comparar as datas de publicação dos livros, percebemos que as estratégias Lógico-dedutiva e Indutivo-dedutiva já aparecem na década de 1985 a 1995, enquanto que a Estratégia de Resolução de Problemas aparece nos livros mais recentes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUDIBERT, G. La Perspective Cavaliere. Paris:Publicação n. 75 da APMEP: 1990
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BKOUCHE, R. Axiomatique, formalisme et théorie. Lille: IREM de Lille no 23, 1983.
BONAFÉ, F. Quelques hypothèse et résultats sur l’enseignement de la géometrie de l’espace. Paris: Boletim da APMEP: 1988.
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CHEVALLARD, Y. La Transposition Didactique. Paris: Pensée Souvage, 1991.
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PAIS, L. e FREITAS, J.L. Um estudo dos processos de Provas no Ensino da Geometria. Rio Claro: Bolema No 13, 1999.
PAIS, L. Intuição, Experiência e Teoria. Campinas: Revista Zetetiké n. 6, 1996.
PAVANELO, R. O Abandono do Ensino da Geometria no Brasil. Zetetiké, n. 01, UNICAMP, Campinas, 1993.
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VALENTE, W. A elaboração de uma nova vulgata para a modernização do ensino da matemática: aprendendo com a história da Educação Matemática no Brasil. Bolema 17. UNESP. Rio Claro: 2002.
ANEXO I – IDENTIFICAÇÃO DOS LIVROS DIDÁTICOS
CÓDIDO AUTOR EDITORA ANO
8.1 Fernando Trotta Scipione 1986
8.2 Álvaro Andrini Brasil 1989
8.3 Gelson Iezzi, Oswaldo Dolce, Antônio Machado Atual 1991
8.4 José Ruy Giovanni, Benedito Castrucci e Giovanni Jr. FTD 1992
8.5 Edwaldo Bianchini Moderna 1993
8.6 Scipione Di Pierro Netto Scipione 1995
8.7 Oscar Guelli Ática 1997
8.8 Luiz Márcio Imenes e Marcelo Lellis Scipione 1999
8.9 José Jakubo, Marcelo Lellis e Marília Centurión Scipione 1999
8.10 Antônio José Lopes Bigode Scipione 2000
8.11 Célia Carolino Pires, Edda Curi, Ruy Pietropaolo Atual 2001
8.12 José Ruy Giovanni e Eduardo Parente FTD 2002
Palavras-chave: Teorema de Pitágoras. Ensino da Geometria. Livros Didáticos.
Considerações iniciais
Partimos do pressuposto que o livro didático é um dos recursos mais usados no ensino da matemática onde funciona como referência na organização do estudo. Quer seja por parte de alunos ou de professores, se constitui em uma fonte de informações para a elaboração de um saber, onde a generalidade, a formalidade e a abstração assumem um estatuto diferenciado. Chervel (1990) observa a existência dessa particularidade da matemática em relação às outras disciplinas. Considerando a especificidade de cada área, percebemos os diferentes estatutos que o livro didático pode assumir na condução do trabalho docente. Por outro lado, o livro didático tem sido uma importante fonte de dados para motivar pesquisas cujo interesse vem sendo resgatado nos últimos anos.
Em parte, esse interesse deve-se à expansão das políticas públicas para a análise, compra e distribuição de livros na rede pública, através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). No caso da pesquisa relatada neste artigo, a atenção volta-se para livros publicados nas duas últimas décadas com o objetivo de explicitar tendências atuais do ensino da geometria a partir de uma análise dos conteúdos, estratégias e recursos. A delimitação em torno do Teorema de Pitágoras, representado nas próximas páginas pelas letras TP, justifica-se em face da continuidade de outros trabalhos já realizados, tendo em vista alguns sinais de revalorização do ensino da geometria. Por outro lado, esta opção é também uma tentativa de contribuir na revalorização da geometria que passou por um período recente de abandono no Brasil, conforme esclarece o trabalho de Pavanelo (1993). O quadro que acabamos de delinear levou-nos a definir a seguinte questão: quais são as tendências atuais do ensino do TP, no que diz respeito aos aspectos conceituais e metodológicos indicados pelos livros didáticos de matemática, publicados no Brasil, no transcorrer das duas últimas décadas?
Referencial teórico
Estamos admitindo que a avaliação implementada pelo PNLD, baseada em parâmetros pedagógicos definidos no contexto das próprias áreas disciplinares, tem condições de motivar reflexões em torno das estratégias de ensino e dos recursos adotados. As referências pedagógicas implementadas circulam do espaço mais amplo dos parâmetros curriculares até ao território mais localizado da sala de aula. Como compete ao professor escolher as opções metodológicas, o livro não determina, mas condiciona a escolha das estratégias. Muitas vezes, as orientações contidas no livro didático são, até mesmo, reproduzidas pelo professor. Por outro lado, percebemos que o poder de influência do livro didático na definição das atividades realizadas em sala parece ser mais intenso na matemática do que em outras disciplinas. Nossa atuação como formadores de professores, permite-nos verificar a forte influência exercida pelo livro na maneira de conduzir a aula, sobretudo, na fase inicial da carreira. Por certo, a maturidade profissional permite ao professor maior liberdade para diversificar suas estratégias e ter um olhar mais crítico sobre as qualidades desse dispositivo.
Nessa pesquisa pretendemos caracterizar orientações propostas para o ensino do TP a partir da análise de livros didáticos. Para isso visamos identificar a presença desse conteúdo em relação ao núcleo dos conceitos apresentados nos livros e a partir dessa identificação, analisar elementos que definem as estratégias propostas. Segundo nosso entendimento, a identificação dos conteúdos comuns aos livros didáticos fornece uma visão preliminar da parte conceitual que tem sido preservada. Tendo apresentado uma visão geral dos conceitos, passamos a identificar os recursos associados a essas noções, tais como definições, representações, propriedades e deduções, uma vez que tais elementos podem ser classificados em função do significado assumido no contexto matemático. Em paralelo, nossa intenção é levantar criações didáticas, sendo esta expressão aqui entendida como uma das noções desenvolvidas na teoria da transposição didática, proposta de Chevallard (1991).
A escolha do período de duas décadas ocorre em função da implantação da avaliação do PNLD, nos meados da década de 1990, o que poderia servir como mais uma fonte de influência na composição da transposição didática. Por sua longa trajetória na história da educação e mais particularmente na constituição da idéia de disciplina escolar, tal como desenvolve Chervel (1990), o livro didático revela uma parte considerável dos saberes com os quais os agentes da educação estão diretamente envolvidos. Isso acontece em relação a todas as disciplinas e dentro de cada área de conhecimento o manual escolar assume suas próprias características. No caso da educação matemática, em decorrência da influência recebida de suas raízes positivistas, estimamos que a estabilidade do texto didático assuma um papel mais preponderante em vista de seus aspectos formais. Em outros termos, para explicitar a objetividade e a generalidade previstas na elaboração do saber matemático, valoriza-se a publicação de um texto que possa servir de referência na condução do ensino. Trata-se, por exemplo, em explicitar definições, propriedades, representações, teoremas, demonstrações e problemas que, conjuntamente, expressam a estruturação lógica típica dessa disciplina.
Uma noção que revela uma analogia com a textualização do saber escolar é o conceito de vulgata, proposto por Chervel (1990) para estudar a constituição das disciplinas escolares. Uma vulgata reúne o que existe de comum, em dado momento, em torno das práticas usuais de uma disciplina escolar, sendo formada pelos conteúdos, objetivos, métodos e problemas típicos que predominam como os elementos que devem ser considerados pelo professor. Uma parte da vulgata aparece nos livros didáticos de uma determinada época, fazendo com que os mesmos tenham algo em comum ou que, de certa forma, sejam muito semelhantes uns com os outros.
A escolha de conteúdos, métodos e recursos resultam das fontes de influência que atuam na transposição didática, conforme destaca Chevallard (1991). Tais elementos encontram-se registrados em livros destinados aos professores, relatórios, teses, softwares, parâmetros, programas, em diferentes tipos de exame e em outras fontes, entre as quais os livros didáticos. São registros publicados para defender a validade do saber a ser ensinado e também da forma como eles devem ser conduzidos pelos professores. Entre os diversos registros textuais do saber, existentes no contexto escolar, nós escolhemos o livro didático para servir como fonte primária de dados da pesquisa aqui relatada. Um dos argumentos para a defesa dessa escolha consiste no fato da influência que esse recurso normalmente exerce na prática de ensino, como fonte de referência e de validação do saber a ser ensinado.
Ao estudar a prática cultural que se encontra enraizada no trabalho docente, Chevallard (2002) destaca a importância de identificar as tarefas, técnicas, tecnologias e teorias que proporcionam sustentação dos outros elementos. De maneira geral, todos os momentos de ensino caracterizam-se pela presença de alguma tarefa a ser desenvolvida. Por um lado existem as tarefas dos alunos e, por outro, as tarefas do professor. São tarefas interligadas que conjuntamente formam as diferentes maneiras de organizar o estudo da matemática. Por outro lado, a cultura escolar levou à definição de tarefas resolúveis por técnicas que devem ser explicitamente ensinadas. Assim, podemos identificar a existência de um bloco que estabelece uma proximidade importante entre a dimensão prática e técnica da educação matemática.
Estamos interessados em identificar como ocorrem as ligações entre as organizações matemáticas e didáticas induzidas pelos livros didáticos, no caso mais pontual do teorema de Pitágoras. Tais organizações induzem, em parte, os elementos da praxeologia do professor de matemática. Em termos dessa teoria, nossa questão de pesquisa pode ser assim traduzida: como os livros didáticos apresentam as articulações entre as organizações matemáticas e didáticas relativas ao ensino do teorema de Pitágoras? Quais são as principais tarefas e técnicas relativas ao ensino do teorema de Pitágoras que aparecem nos livros didáticos? Tendo em foco essas questões, entendemos que elas poderão lançar luzes sobre as praxeologias dos professores de matemática podem e devem produzir em suas práticas escolares.
Aspectos metodológicos
Esta pesquisa foi realizada através de uma abordagem fenomenológica, no sentido descrito por Bicudo e Espósito (1994), a partir da análise, da interpretação e da busca das essências contidas nos discursos contidos nos livros didáticos. Focalizamos esse discurso a partir da materialidade contida nas páginas dos livros, na totalidade de seu texto, incluindo figuras, fotos e outros recursos. Estamos supondo que algumas das escolhas feitas pelos autores dos livros acontecem em função de orientações pedagógicas publicadas no discurso mais amplo da comunidade de educadores matemáticos. Não temos intenção de proceder a uma análise crítica desse material e sim contribuir no processo de identificação das tendências. Outro argumento para estudar tais tendências consiste no nosso compromisso individual e coletivo para formar futuros professores. Os dados foram obtidos de doze livros destinados à oitava série do Ensino Fundamental, publicados no Brasil, no período compreendido entre 1985 e 2002. Esses livros são identificados no anexo I deste artigo. A análise realizada concentrou-se no entrelaçamento entre aspectos conceituais e didáticos. A partir dessa análise, foi obtido um conjunto de unidades que permitem informações em relação à questão da pesquisa. Em seguida, essas unidades foram submetidas a um processo de convergência e análise teórica, pelo qual destacamos as idéias centrais que sinalizam o que existe de comum nos livros didáticos, atualmente, no ensino do referido conteúdo geométrico.
Análise de livros didáticos
Para caracterizar o ensino do TP procuramos verificar qual é a importância da presença desse conteúdo nos livros. Em seguida, destacamos os principais elementos apresentados para organizar os aspectos conceituais e didáticos. Esses elementos são interpretados como constituintes das diferentes organizações praxeológicas induzidas pelos livros. Nesse sentido, estamos considerando o livro didático como uma das fontes indutoras dessa organização do estudo, pois, à rigor, compete ao professor decidir pela definição dos recursos e das estratégias a serem adotadas. Foi com base no destaque desses elementos que nós demos início à análise descrita nos próximos parágrafos.
Uma presença importante
Uma primeira análise revelou que o TP pertence ao núcleo de conteúdos que aparecem em todos os livros analisados. Mesmo que haja sinais de alterações na organização didática, tal conteúdo permanece presente nos livros. Mesmo que essa constatação possa parecer óbvia, é importante observar que tal teorema se revela como um dos conteúdos onde a sistematização tem sido relativamente preservada, fornecendo indícios de um ponto importante na caracterização dos conteúdos mais expressivos do ensino da matemática. Assim, ao estudar o estatuto do TP, reencontramos uma questão mais ampla. Embora não tenhamos critérios puramente objetivos para mensurar a sistematização própria da educação matemática, esta constatação sinaliza para um tema merecedor de mais estudos. Do ponto de vista pedagógico, como entender a componente da sistematização que se localiza nas raízes do saber matemático? Desse modo, podemos dizer que embora o TP pertença, pelo menos no transcorrer das duas últimas décadas, à vulgata do ensino da matemática resta-nos identificar os principais sinais de alterações nas organizações didáticas.
Aspectos conceituais e didáticos
Nas páginas reservadas ao TP podem ser identificados diferentes elementos que fornecem subsídios de resposta à questão norteadora dessa pesquisa. Alguns desses elementos são relativos aos aspectos epistemológicos, outros são voltados mais para aspectos didáticos, lembrando ainda que alguns se localizam na interseção dessas duas dimensões. Para identificar esses elementos, usamos as noções de organizações matemáticas e de organizações didáticas, propostas por Chevallard (2002), no quadro da teoria antropológica do didático. Entretanto, como esses aspectos encontram-se associados, qualquer categorização deve ser realizada, levando em consideração essa articulação entre o plano conceitual e didático. No que se refere às características específicas do saber matemático, no contexto do ensino do TP, destacamos as seguintes convergências: definição, dedução, representação, expressão algébrica, notação, demonstração, enunciado e aproximação. Segundo nosso entendimento, tais categorias têm um significado ancorado mais no território do saber científico, pois, de modo geral, a cultura matemática tem referências objetivas para expressar, por exemplo, o que é uma definição, uma expressão algébrica ou um enunciado. Por outro lado, os livros didáticos trazem diversos recursos associados ao TP, interpretados, por nós, como elementos da organização didática. Entre esses elementos destacamos os seguintes: aspectos históricos, articulações entre conceitos, articulações com outras disciplinas, articulações entre os campos de conteúdos da matemática, desenhos e fotos, exercícios, problemas e aplicações. Na continuidade, detalhamos alguns desses elementos, fazendo algumas observações de natureza epistemológica e didática.
4.3 Representação de conceitos
Destacamos a existência da categoria representação para incluir as situações em que o livro didático lança mão de desenhos para ilustrar um conceito da geometria plana ou espacial. No caso da pesquisa aqui relatada, trata-se de representações referentes ao TP. Entretanto, como não há uma identificação entre a abstração conceitual e a materialidade do desenho, o uso desse tipo de representação, embora sendo um recurso quase indispensável, pode se constituir também como fonte de algumas dificuldades na organização do estudo. Toda representação fornece apenas indícios do conceito, mas não tem a mínima possibilidade de substituí-lo. Se em nível das séries iniciais podemos admitir certa identificação do desenho com o conceito, no estrito espaço da concepção do jovem aluno, mas pelo lado da concepção docente isso não deve acontecer. Em certas situações, podemos observar que o desenho pode, até mesmo, constituir-se em um obstáculo, quando o aluno se prende, pontualmente, em alguns aspectos materiais do próprio grafismo e ainda não consegue fazer uma articulação correta com o conceito representado. Uma alternativa didática para superar essa dificuldade é a diversificação de recursos e talvez esta seja uma das componentes mais expressivas da atualidade: diversificar os caminhos para expandir as condições de ensino e de aprendizagem. Analisando a presença das representações gráficas, constatamos a existência do uso expressivo desse recurso em todos os livros. De modo geral, existe uma quantidade expressiva de tais representações, quer seja para ilustrar definições, propriedades, exercícios ou outros conceitos relacionados. Esse expressivo número revela a importância da presença do desenho no ensino da geometria, conforme comprovam os trabalhos de Audibert (1990) e Bonafé (1988).
Diferentes articulações
Ao analisar a presença do TP nos livros didáticos, podemos constatar que uma das tendências consiste em valorizar diferentes articulações que contribuem na organização do estudo. Trata-se de procurar entrelaçar aspectos pedagógicos e matemáticos, visando expandir as condições de estudo. Nesse sentido, tal tendência pode ser interpretada como uma tentativa de manter indissociáveis as organizações matemáticas e didáticas. Com base nessas concepções identificamos a presença de diferentes tipos de articulação. Em primeiro lugar, destacamos a existência de articulações de conceitos, realizadas com a finalidade de associar os diferentes conceitos que participam da própria estrutura lógica de composição do TP. Como se fosse um destaque ao material básico com o qual será edificada, no contexto do livro, uma nova noção matemática. Em seguida, destacamos o que estamos denominando de articulações internas, nas quais, pelo menos dois campos de conteúdos da matemática encontram-se relacionados entre si. Um terceiro tipo é aquele das articulações entre disciplinas, caracterizado por situações onde um conteúdo matemático encontra-se relacionado com outras disciplinas. Conforme podemos constatar, a valorização das articulações entre conceitos, por ser mais próxima da poderosa dimensão epistemológica, aparecem igualmente nos livros didáticos das duas décadas que foram objeto de nossa pesquisa. Por outro lado, os livros publicados mais recentemente tendem a valorizar mais as articulações internas e as articulações entre disciplinas, embora essa não seja uma regra geral. Nesse sentido, registramos aqui a presença de alguns sinais da tentativa de expandir a contextualização do ensino da geometria, pois de um setor conceitual mais isolado, passa-se a valorizar ligações com outros campos de conteúdos da matemática e também com outras disciplinas.
Articulação de conceitos
Para ilustrar uma articulação de conceitos recorremos a um exemplo retirado do livro 8.1 (p. 137) que inicia o estudo do TP com uma representação do triângulo retângulo, dando destaque para seus principais elementos e chamando a atenção do aluno para a importância de considerar suas medidas. Os conceitos de hipotenusa, catetos e alturas são relembrados para, em seguida, definir as projeções ortogonais dos catetos sobre a hipotenusa. O destaque dessas noções serve ainda de base para relembrar o conceito de semelhança de triângulos cuja essência será usada na demonstração do TP. Esta recorrência a conceitos anteriormente estudados e o destaque da sua ligação com um novo conceito que está sendo estudado naquele momento é o que caracteriza as articulações de conceitos. Trata-se de um entrelaçamento das organizações matemática e didática, pois, do ponto de vista epistemológico esta recorrência participa efetivamente na elaboração de um novo conceito e por outro lado é uma estratégia pedagógica com a finalidade de expandir as condições de ensino e de aprendizagem. Um segundo exemplo de articulação de conceitos pode ser retirado do livro 8.4 (p. 178) que no início do parágrafo reservado ao TP, relembra a definição de triângulo retângulo e de seus elementos: hipotenusa e catetos, usando para isso uma representação gráfica. De maneira geral, todos os livros analisados fazem uma utilização importante da articulação de conceitos. Por esse motivo podemos dizer que esta técnica localiza-se no território comum dos aspectos epistemológicos e didáticos.
Articulações internas
O livro didático realiza uma articulação interna quando ele propõe situações nas quais o estudo de um conteúdo encontra-se explicitamente relacionado a conteúdos de um outro campo da própria disciplina de matemática. Um exemplo de articulação interna aparece no livro 8.8 (p. 36), ao explicar o significado do termo teorema, na construção lógica da geometria, destacando que se trata de uma afirmação passível de ser objeto de uma demonstração e que os teoremas aparecem também no estudo da álgebra. Na continuidade, esse mesmo livro observa ainda a existência de um aspecto que unifica os campos da álgebra e da geometria, que é o pensamento lógico dedutivo. Esse tipo de articulação permite destacar a inseparabilidade das organizações didáticas e matemáticas, adotando aqui os conceitos propostos na abordagem antropológica da didática. Os livros publicados a partir dos meados da década de 1990 começam a dar maior ênfase a atividades, problemas ou até mesmo orientações explícitas, propondo esse tipo de articulação dos conceitos geométricos com conteúdos algébricos, numéricos ou medidas. A valorização de articulações entre conceitos pertencentes às áreas internas da matemática é uma estratégia cada vez mais presente nos livros didáticos. Até mesmo uma leitura mais rápida dos índices dos livros permite constatar uma tendência de mudança no que diz respeito a esse tipo de articulação. Esse é um dos aspectos mais significativos, quando comparamos os livros do primeiro período com os mais recentes. Alguns livros publicados a partir de 1995 reservam parágrafos inteiros cujos títulos expressam essa intenção de articular da geometria com outros campos da própria matemática. Esse é o caso do livro 8.10 (pp. 94-108) que reserva um capítulo para tratar de Relações entre álgebra e geometria, mostrando como é possível expressar algebricamente as relações entre as medidas geométricas.
Articulação entre disciplinas
Para contemplar a articulação da matemática com outras disciplinas alguns livros didáticos, por exemplo, sugerem a aplicação do TP para calcular a distância entre dois pontos ou duas cidades, destacando aspectos geográficos, astronômicos ou ainda falando da agrimensura. A ênfase dada à articulação da matemática com outras disciplinas depende da importância dada aos valores instrumentais do saber escolar. Quanto a este aspecto, o livro 8.10 (p. 227) apresenta um texto contendo, além de aspectos históricos sobre Pitágoras, a reprodução de uma obra de arte, pois essa valorização da arte acontece em diversas páginas dessa obra. Este mesmo livro (p. 222) propõe uma atividade com o uso de uma calculadora e articula o TP com as atividades profissionais de um topógrafo ou de agrimensor. O livro 8.12 (p. 119) ressalta a importância da aplicação do triângulo retângulo em atividades ligadas à astronomia ou à medição de terras, observando que tal aplicação já vem de muito tempo atrás. Finalmente, constatamos que essa organização didática para estudar geometria aparece com maior ênfase em livros didáticos publicados no transcorrer da última década em relação àqueles publicados na década anterior.
4.5 Diversificação das estratégias de ensino
Os livros didáticos mostram uma tendência de diversificação das estratégias de ensino. Para comprovar isso, optamos por definir uma tipologia das estratégias de aparecem no estudo do TP. Para trabalhar esse conteúdo quase todos os livros apresentam pelo menos uma representação, uma dedução e o enunciado da proposição. Além desses elementos, aparecem outros que servem para implementar as estratégias. Seguindo este caminho, de maneira geral, identificamos três estratégias.
Em primeiro lugar, destacamos a Estratégia Lógico-dedutiva, na qual o texto apresenta, a partir de uma representação, o enunciado da proposição a ser demonstrada e descreve uma seqüência lógico-dedutiva. Essa dedução é feita, quase sempre, com base na noção de semelhança de triângulos e conclui com o enunciado da proposição. Nos livros publicados antes de 1995 predomina esse tipo de estratégia, a qual começa a ser alterada nos livros publicados posteriormente. Assim sendo, neste período, destacamos os primeiros sinais de mudança organização didática, evidenciando os primeiros traços de uma possível redefinição na vulgata do ensino da geometria. Em suma, não é o conteúdo em si que tende a mudar e sim a parte referente às organizações didáticas implementadas no estudo.
Uma outra maneira de tratar da validação das proposições é através da Estratégia Indutivo-dedutiva, na qual o texto propõe, inicialmente, um procedimento experimental, a partir do tratamento de casos particulares, quase sempre fazendo uso de representações para orientar as atividades a serem feitas pelos alunos. No caso do TP essa abordagem consiste em, por exemplo, levar o aluno a calcular as áreas dos quadrados construídos sobre os lados de um triângulo retângulo e somá-las para verificação da relação de Pitágoras. Após essa verificação prática, a proposição em estudo é enunciada e geralmente se faz uma dedução para demonstrar sua validade, finalizando com a proposição de alguns exercícios ou problemas de aplicação. Em alguns casos, a seqüência lógico-dedutiva pode preceder o enunciado da proposição. Embora essa estratégia já apareça em livros mais antigos, nos mais recentes há uma tendência em diversificá-la, revelando dessa maneira sinais de alteração na vulgata do livro didático de matemática, na parte específica da geometria.
Finalmente, destacamos a Estratégia Resolução de Problemas, pela qual o livro propõe, logo de início, a resolução de um problema no qual incide o TP. Ao propor esse problema, o autor, geralmente, fornece algumas sugestões, destaca alguns aspectos, para motivar a interação do aluno com o problema e com os conceitos visados. Na continuidade, o livro pode, em alguns casos, retomar a apresentação de alguns procedimentos formais, quer seja envolvendo representações, uma dedução lógica e o enunciado da proposição. Essa estratégia é uma opção bem menos freqüente, mas os livros que a utilizam são todos publicados mais recentemente. Seria essa uma estratégia que tende a caracterizar o livro didático de matemática da atualidade? Ao comparar as datas de publicação dos livros, percebemos que as estratégias Lógico-dedutiva e Indutivo-dedutiva já aparecem na década de 1985 a 1995, enquanto que a Estratégia de Resolução de Problemas aparece nos livros mais recentes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ANEXO I – IDENTIFICAÇÃO DOS LIVROS DIDÁTICOS
CÓDIDO AUTOR EDITORA ANO
8.1 Fernando Trotta Scipione 1986
8.2 Álvaro Andrini Brasil 1989
8.3 Gelson Iezzi, Oswaldo Dolce, Antônio Machado Atual 1991
8.4 José Ruy Giovanni, Benedito Castrucci e Giovanni Jr. FTD 1992
8.5 Edwaldo Bianchini Moderna 1993
8.6 Scipione Di Pierro Netto Scipione 1995
8.7 Oscar Guelli Ática 1997
8.8 Luiz Márcio Imenes e Marcelo Lellis Scipione 1999
8.9 José Jakubo, Marcelo Lellis e Marília Centurión Scipione 1999
8.10 Antônio José Lopes Bigode Scipione 2000
8.11 Célia Carolino Pires, Edda Curi, Ruy Pietropaolo Atual 2001
8.12 José Ruy Giovanni e Eduardo Parente FTD 2002