Argumentação no Estudo de Geometria
Luiz Carlos Pais
Luiz Carlos Pais
Resumo: Este artigo descreve resultados de uma pesquisa cujo objetivo é caracterizar a argumentação no estudo da Geometria a partir da análise de livros didáticos das séries finais do Ensino Fundamental. Os dados iniciais foram obtidos em livros didáticos brasileiros, publicados nas duas últimas décadas. O referencial utilizado é a Teoria Antropológica do Didático, proposta por Chevallard (2002) para estudar as diferentes maneiras de organizar o estudo da matemática. A noção de vulgata proposta por Chervel (2000) é também usada para analisar os livros didáticos em termos de valorização da argumentação. Uma análise qualitativa foi realizada em páginas reservadas ao estudo da Geometria, apresentando aspectos relacionados ao processo de argumentação típico desse campo de conteúdos da Matemática. Os resultados evidenciam que a argumentação está presente nos livros didáticos. A diferença entre os livros publicados entre 1985 e 1995 e os publicados mais recentemente está no grau de formalidade com que a argumentação é tratada. Os livros revelam ainda a existência de um tipo diferenciado de tarefa e de técnicas para estudar a validade das proposições geométricas. Finalmente, foi possível identificar questões relacionadas à organização do estudo da argumentação que poderão servir de futuros objetos de pesquisa.
Palavras-chave: Argumentação. Ensino da Geometria. Livros Didáticos.
Questão de pesquisa
O interesse em pesquisar a argumentação resulta da convergência de algumas trajetórias. De início, partimos do pressuposto que a argumentação localiza-se no núcleo epistemológico central da Matemática. Em segundo lugar, mesmo constatando mudanças no que diz respeito ao grau de sistematização, a argumentação continua presente entre as tarefas propostas para a educação matemática. Finalmente, o interesse em pesquisar o livro didático justifica-se pelo fato desse tipo de publicação figurar entre os recursos mais usados no estudo da matemática, funcionando como uma referência para a validação dos conhecimentos construídos nesse contexto. Observa-se que, tanto para alunos quanto para professores, o livro didático se constitui em uma fonte de informações para o estudo da matemática, onde a generalidade, a formalidade e particularmente o problema da validação assumem um estatuto diferenciado.
Ao fazer uma leitura cultural da educação escolar, Chervel (1990) observa que o manual didático assume uma importância diferenciada em função da própria natureza da disciplina de referência. No caso da matemática, entendemos que a valorização do livro didático decorre do fato do mesmo servir como parâmetro para construção da objetividade, do rigor, da generalidade e de outras características do saber matemático. Dessa forma, conforme a especificidade de cada área, o livro didático assume diferentes estatutos na condução das praxeologias típicas da disciplina. Por esse motivo, no plano mais amplo de nossa pesquisa, estamos interessados em investigar o tratamento pedagógico induzido pelo livro didático. Isto corresponde a procurar entender como o livro didático funciona como mais uma instituição participante da transposição didática. Não se trata de atribuir uma importância maior a essa fonte de influência do ensino da matemática, mas de investigar a forma como o estudo da argumentação vem sendo proposto nos livros.
O livro didático tem sido uma fonte de dados para motivar pesquisas cujo interesse vem sendo resgatado nos últimos anos. Em parte, esse interesse deve-se à expansão das políticas públicas de distribuição de livros na rede pública, através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). No caso da pesquisa aqui relatada, nossa atenção está voltada para livros publicados nas duas últimas décadas com o objetivo de explicitar tendências atuais do ensino da geometria a partir de uma análise dos conteúdos, das estratégias e recursos propostos. A motivação para sua realização decorre da intenção de compreender parte dos elementos que determinam as relações entre a dimensão conceitual da matemática e as organizações didáticas associadas, entendendo que as técnicas empregadas por professores são parcialmente condicionadas pelas fontes de influência da transposição didática, entre as quais incluímos o livro didático.
A delimitação em torno da geometria justifica-se em face da continuidade de outros trabalhos já realizados, no contexto do nosso próprio grupo de pesquisa, sobre temas correlacionados, tendo em vista alguns sinais de revalorização do ensino da geometria. Por outro lado, esta opção é também uma tentativa de contribuir na retomada do ensino de Geometria que passou por um período recente de abandono no Brasil, conforme esclarece o trabalho de Pavanelo (1993). Este quadro levou-nos a definir a seguinte questão: quais são os elementos apresentados pelos livros didáticos de Matemática, nos últimos anos, para organizar o estudo da argumentação nas proposições geométricas em nível das séries finais do Ensino Fundamental?
Aspectos teóricos
A argumentação é uma das práticas intelectuais mais antigas na história da humanidade, quer seja no plano cultural mais amplo do conhecimento social e científico e mais particularmente na construção do saber matemático. Apresentar aos seus semelhantes argumentos convincentes sempre representou um tipo de poder, um nível de entendimento que promove a inteligência humana, bem como serve de instrumento para efetivar as ações individuais e institucionais. Os matemáticos demonstram teoremas para mostrar que eles são verdadeiros, mesmo que o reconhecimento dessa verdade esteja delimitado ao contexto de uma instituição social. Teorias sobre o processo argumentativo foram sendo construídas, em função da especificidade de cada área. Perelman (1996) observa que a finalidade das teorias argumentativas é o estudo de técnicas discursivas as quais são cultivadas no contexto de cada área, em função da natureza do saber considerado. Esse autor ressalta que as técnicas discursivas têm a finalidade de “provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam ao sentimento”. Esse aspecto do convencimento está entre as tradições preservadas pela disciplina da matemática.
Argumentação e Método
Embora exista uma proximidade entre método e argumentação, no plano didático, estamos utilizando a expressão estratégias de ensino, no sentido de descrever os procedimentos práticos-técnicos referentes a um método de ensino. Dessa maneira, podemos perceber que existe uma dupla interferência da argumentação em relação ao próprio conteúdo da geometria, de um lado os argumentos matemáticos para validar um enunciado e de outro os argumentos que validam uma estratégia de ensino. Por que o professor deve escolher uma ou outra maneira de ensinar? Quando se trata de discutir a questão da metodologia na construção do conhecimento geométrico, a argumentação passa a ser caracterizada de uma forma ainda mais especial. A tradição iniciada por Tales de Mileto parece que está ainda na raiz da questão. Toda estratégia de ensino deveria ser desenvolvida pelo professor, com o objetivo de defender uma forma particular de ensinar ou de argumentar sobre a validade dos saberes com os quais se trabalha. Ao buscar o significado etimológico do termo método, nós encontramos que o seu sentido mais íntimo corresponde à escolha de um caminho para a busca da verdade na qual acreditamos existir. Assim ao utilizar uma determinada estratégia, de certa forma, estamos também praticando a escolha de um método, de um caminho que acreditamos ser o ideal para essa finalidade.
Argumentação na matemática e no quotidiano
As relações entre o saber escolar e os conhecimentos não escolares interferem no estudo da matemática e no caso da argumentação essa interferência é ainda mais complexa. No contexto das organizações matemáticas, uma demonstração consiste de uma seqüência de deduções baseadas em afirmações verdadeiras. Para estar correta é necessário que cada componente dessa seqüência esteja correta. Para isso acontecer é preciso que cada passagem esteja fundamentada em postulados, teoremas, definições e propriedades, os quais são elementos que constituem a organização dedutiva da matemática e que já foram aceitos como válidos. Não se pode passar de uma afirmação para outra sem fazer referência às regras que nada mais são que conteúdos já demonstrados ou aceitos como evidentes, como é o caso dos axiomas. No caso do diálogo usual do quotidiano não é preciso fundamentar cada passagem da argumentação.
A verificação da validade de uma proposição matemática para casos particulares não é suficiente para garantir que ela é sempre válida, entretanto, este tipo de procedimento exerce um papel importante na busca de contra-exemplos que, se encontrados, garantem a não validade da proposição. Basta um contra-exemplo para provar que a propriedade não vale, basta uma exceção para invalidar a regra, enquanto na linguagem do cotidiano, podemos dizer que a exceção confirma a regra. Verifica-se aí um conflito entre o princípio do terceiro excluído, da lógica formal e o da verdade estatística, da língua natural.
Há outras regras do discurso matemático que não obedecem à lógica do cotidiano. A hipótese e a conclusão de um teorema nem sempre são permutáveis enquanto que na lógica do cotidiano, quase sempre, funciona o princípio da simetria, ou seja, uma implicação normalmente subentende a validade de sua recíproca. Em matemática para se provar que é verdade é necessário produzir uma seqüência de implicações verdadeiras, isto é, partir das hipóteses e chegar às conclusões, mediante deduções válidas, enquanto que no cotidiano dizer a verdade significa dizer toda a verdade. Além disso, em as deduções geométricas devem se basear na parte não-ostensiva do saber matemático e não na parte ostensiva, como os desenhos, mesmo que estes tenham sido feitos com o máximo de rigor.
As regras implícitas da “lógica” do cotidiano, freqüentemente, não obedecem aos mesmos princípios do discurso matemático formal, podendo mesmo se configurar em obstáculos à aprendizagem do seu funcionamento. Algumas pesquisas da área de psicologia cognitiva, conforme observa Lévy (1993) quanto às dinâmicas de argumentação do cotidiano, possuem muito menos estrutura do que aquelas características dos textos escritos. É evidente que não se trata de desqualificar o discurso do cotidiano, pois ele é útil na própria dinâmica de fertilização de outras práticas argumentativas. A organização e coerência das afirmações usadas na argumentação cotidiana não seguem os mesmos princípios e regras do discurso científico. Entre esses dois extremos, situa-se a prática da argumentação no saber escolar. O desafio reside na articulação entre a argumentação do cotidiano e aquela de um nível que possa se aproximar, da argumentação matemática.
Argumentação na prática educativa em Matemática
A argumentação científica e a didática embora relacionadas não se situam no mesmo plano epistemológico. Em cada campo científico a argumentação também não tem o mesmo sentido. Ao variar as áreas científicas pode alterar os procedimentos metodológicos da argumentação. Nas praxeologias mais usuais da educação escolar da matemática a argumentação se faz através de procedimentos e com diferentes estatutos. Muitas vezes a validade de uma idéia é argumentada através da simples exibição de uma figura ou da verificação de alguns casos particulares. Evidencia-se aí um conflito entre as lógicas indutiva e dedutiva. Embora a indução – a afirmação da validade de uma proposição geral com base na observação de casos particulares – seja uma prática utilizada no descobrimento de propriedades matemáticas, esta não é uma conduta adequada na fase de formalização do conhecimento, pois não satisfaz a exigência de generalidade da Matemática.
O estatuto das provas e demonstrações se constitui num dos pontos centrais na valorização do estudo da matemática como uma ciência lógico-dedutiva. A construção desta lógica no plano escolar, embora possa ser iniciada com práticas argumentativas do quotidiano, a partir de certo nível deverá haver rupturas. Nas atividades características da cultura escolar não se trabalha somente com o argumento científico. Por exemplo, no estudo da matemática, mesmo que seja legítimo defender a valorização da argumentação lógico-dedutiva, a exemplo do que é feito na apresentação textual do saber matemático, parece mais adequado considerá-lo como ponto de chegada e não de partida. Quanto menor o nível de escolaridade mais válida nos parece essa postura. No âmbito da comunidade escolar, no espaço da sala de aula, é natural explorar formas diferenciadas de argumentação como aquelas representadas pela verificação ou pelas provas não formais. Denominamos de verificação o exercício da comprovação ou não da validade para casos particulares de uma proposição.
Organização do estudo
A escolha de conteúdos, métodos e recursos resultam das fontes de influência que atuam na transposição didática, conforme destaca Chevallard (1991). Tais elementos encontram-se registrados em relatórios, teses, softwares, parâmetros, programas e em outras publicações, entre as quais estão os livros didáticos. Entre os diversos registros textuais do saber, existentes no contexto cultural da escola, nós escolhemos o livro didático para servir como fonte primária de dados da pesquisa aqui relatada. Na evolução das idéias contidas na teoria da transposição didática, encontra-se a teoria antropológica do didático, a qual estabelece elementos para a definição de uma praxeologia para estudar a organização do trabalho do professor de matemática. Em outros termos, ao estudar a prática cultural que se encontra enraizada no trabalho docente, Chevallard (2002) destaca a importância de identificar as tarefas, técnicas, tecnologias e as teorias que proporcionam sustentação dos outros elementos. De maneira geral, qualquer momento de ensino caracteriza-se pela presença de alguma tarefa a ser desenvolvida. Por outro lado, a cultura escolar levou à definição de tarefas resolúveis por técnicas que devem ser ensinadas.
Assim, podemos identificar a existência de um bloco que estabelece uma proximidade importante entre a dimensão prática e técnica da educação matemática. No entanto as técnicas devem ser fundamentadas por alguma teoria que lhes dêem sustentação e essa teoria recebe o nome de tecnologia. Interessa-nos identificar como ocorrem as ligações entre as organizações matemáticas e didáticas induzidas pelos livros didáticos, no caso mais pontual do teorema de Pitágoras e que traduzem elementos básicos da praxeologia do professor de matemática. Em termos dessa teoria, a questão norteadora dessa pesquisa pode ser assim traduzida: como os livros didáticos apresentam as articulações entre as organizações matemáticas e didáticas relativas ao ensino de teoremas básicos de Geometria?
Aspectos metodológicos
Esta pesquisa foi realizada através de uma abordagem fenomenológica, no sentido descrito por Bicudo e Espósito (1994), a partir da análise, da busca das essências contidas nos discursos contidos nos livros didáticos. Focalizamos esse discurso a partir da materialidade contida nas páginas dos livros, na totalidade de seu texto, incluindo figuras, fotos e outros recursos. Estamos supondo que algumas das escolhas feitas pelos autores dos livros acontecem em função de orientações pedagógicas publicadas pela comunidade de educadores matemáticos. Em outros termos, nossa intenção não é analisar tendências do ensino da matemática com base na subjetividade de um grupo de autores, mas identificar aspectos comuns nessas publicações e em que sentido tais orientações caracterizam uma tendência na área de Educação Matemática. Outro argumento para estudar tais tendências consiste no nosso compromisso com a formação de professores.
Os dados da pesquisa foram obtidos de 24 livros didáticos, sendo doze da 7ª série e doze da 8ª série, publicados no Brasil, no período entre 1997 e 2002, os quais estão identificados no anexo I deste artigo por um código onde o primeiro dígito corresponde à série e o segundo ao número de ordem do livro. A escolha do período ocorre em função da implantação do PNLD, em 1995, o que poderia servir como mais uma fonte de influência da transposição didática. Por sua trajetória na história das disciplinas, tal como observa Chervel (1990), o livro didático revela uma parte considerável dos saberes com os quais os agentes da educação estão envolvidos. Isso acontece em relação a todas as disciplinas e em cada área esse tipo de livro assume características particulares. No caso da matemática, em decorrência da influência recebida das raízes positivistas, a estabilidade do texto didático assume um papel importante em vista de seus aspectos formais. Para explicitar a objetividade típica do saber matemático, valoriza-se a publicação de um texto que possa servir de referência na organização didática. Trata-se, por exemplo, de explicitar definições, propriedades, representações, teoremas, processos argumentativos, como as demonstrações que, conjuntamente, expressam o raciocínio lógico típico da disciplina matemática. A partir dessa análise, foi obtido um conjunto de informações em relação à questão da pesquisa. Em seguida, essas unidades foram classificadas e submetidas a um processo de convergência e análise teórica, pelo qual destacamos idéias centrais que permeiam os livros didáticos.
Análise de livros didáticos
Neste parágrafo descrevemos os principais elementos que identificamos no estudo dos ângulos opostos pelo vértice. Em quase todos os livros analisados encontramos a seguinte seqüência: Inicia com apresentação de ângulos formados por duas retas concorrentes e a definição de ângulos opostos pelo vértice a partir da observação de uma figura contendo duas retas e as indicações das medidas dos ângulos. Em seguida o enunciado da propriedade afirmando que ângulos opostos pelo vértice são congruentes (têm a mesma medida). Na seqüência descreve uma seqüência dedutiva indicando os ângulos diretamente sobre a figura e registrando que a soma dos ângulos adjacentes é igual a 180o. Finalizam com uma sessão de exercícios contendo retas concorrentes, nos quais é preciso encontrar o valor da medida de alguns ângulos opostos pelo vértice, normalmente indicados por letras minúsculas. Alguns livros, além do que foi apresentado acima, antes de enunciar a propriedade, sugerem que os alunos meçam os ângulos da figura utilizando instrumentos do desenho (7.4, 7.8, 7.9, 7.11 e 7.12) outros (7.5, 7.11) pedem que os alunos encontrem medidas de ângulos, em casos particulares com medidas dadas. Outros apresentam a notação de congruência (7.5 e 7.6). O livro 7.5 explica o significado dos termos: postulado, teorema e demonstração. O livro 7.7 faz considerações históricas com Tales de Mileto e apresenta um exercício resolvido antes da sessão de exercícios. Os livros 7.8 e 7.12 apresentam figuras do mundo real contendo ângulos opostos pelo vértice (pés de uma tábua de passar roupa e duas espadas de esgrima que se cruzam). O livro 7.8 é o único que apresenta um pequeno texto onde um personagem enuncia a proposição. Os únicos livros que sugerem articulações com outros conteúdos de Geometria são o 7.8 (feixe de paralelas cortadas por uma transversal) e o 7.11 (diagonais de quadriláteros e feixe de paralelas cortadas por transversal).
No que concerne ao teorema de Pitágoras (TP), observamos que alguns livros publicados na última década já apresentam demonstrações utilizando áreas, mas a maioria traz a demonstração clássica usando semelhança de triângulos. Essa diversificação revela também outra componente presente em alguns livros que consiste em relacionar um conteúdo da matemática com outros conteúdos da própria matemática, o que chamamos de articulação interna.
O livro 8.8 (p. 36) anuncia a intenção de construir uma seqüência lógico-dedutiva: “Vamos deduzir o teorema de Pitágoras, isto é, vamos mostrar que ele é verdadeiro”. Dessa maneira, o livro revela a existência de uma tarefa que está na essência epistemológica da matemática, que é a demonstração de teoremas, ligada ao problema da verdade do conhecimento. Em outros termos, este livro vincula, explicitamente, o problema da argumentação com o problema da verdade na construção do conhecimento matemático. Dessa maneira, a dedução é proposta como técnica para realizar uma tarefa, que neste caso, consiste em mostrar que o teorema é verdadeiro. Nos termos adotados por Chevallard (2002), podemos dizer que as demonstrações, tais como aparecem nos livros didáticos, se caracterizam como a realização de um tipo de tarefa.
No contexto das séries finais do Ensino Fundamental surgem as primeiras proposições demonstráveis da geometria. A partir da intenção de mostrar que o teorema é verdadeiro, o livro 8.8 propõe ainda uma articulação entre uma representação gráfica e uma expressão algébrica, o que mostra o seguinte parágrafo: “Na situação da figura, sabemos que: b2 = a.m e c2 = a.n. Vamos somar as duas igualdades: b2 + c2 = a.m + a.n”. Assim, o livro explicita uma parte da técnica empregada para construir a demonstração do teorema, ou seja, operações algébricas são realizadas a partir das igualdades obtidas cuja continuidade depende da aplicação de uma outra técnica, estudada anteriormente, que é a fatoração. Não devemos esquecer que, ao descrever a técnica, o livro lança mão de, no mínimo três tipos de representação: gráfica (desenho de uma figura geométrica), algébrica e também o texto na língua materna, procurando desenvolver certas articulações entre elas.
A proposta de diversificação de linguagem é também uma das tendências mostradas pelos livros didáticos mais recentes. Ao recorrer à aplicação da técnica da fatoração, o texto esclarece: “Agora fatoramos a expressão a.m + a.n, colocando o fator “a” em evidência: b2 + c2 = a.(m + n)”. Mais uma vez aparece uma articulação entre a representação gráfica e a dedução de relações: “Veja na figura que m + n = a. Logo, b2 + c2 = a.a, ou seja, b2 + c2 = a2”. (grifo nosso). Ao esclarecer para o leitor que “deduzimos o teorema de Pitágoras, usando as fórmulas que foram deduzidas com base na semelhança de triângulos”, o texto sintetiza uma das mais fortes características do pensamento lógico-dedutivo que consiste no encadeamento de afirmações e na articulação com conceitos já estudados.
Para exemplificar a presença da lógica argumentativa nos livros didáticos, no que se refere ao ensino da geometria, destacamos uma situação proposta no livro 8.10 (p. 214) na qual o desenho de um personagem é usado para colocar a questão: “Mas como ter certeza que esta proposição é sempre válida?” Assim, além de fazer referência à validação, este livro mostra uma articulação entre uma componente matemática e um dispositivo didático que é o uso de desenhos de personagens para expandir as condições de comunicação com o aluno. Essa situação, tal como aparece no livro levanta o problema da validação no estudo da matemática e que colocada no contexto da resolução de problemas, pode estar associada à apresentação de uma seqüência lógico-dedutiva, mas nem sempre isso acontece.
5. ELEMENTOS DE SÍNTESE
Ao finalizar este artigo, reconhecemos que a vertente aqui iniciada nos proporciona um amplo espectro de questões motivadoras para realizar outras pesquisas. Entretanto, a partir da análise realizada podemos enumerar aqui alguns pontos que se destacam. Em primeiro lugar, constatamos que o tema da argumentação no estudo da geometria está fortemente presente nos livros didáticos e se constitui em uma das categorias epistemológicas e didáticas que tem sido, relativamente, preservada na vulgata da educação matemática. A partir dessa presença, os livros didáticos analisados revelam alterações significativas quanto aos diferentes graus de sistematização na maneira de organizar o estudo da argumentação no estudo da geometria. Observamos ainda que alguns livros didáticos publicados mais recentemente mostram uma tendência que consiste na diversificação das estratégias e dos recursos sugeridos para o ensino da argumentação. Outra constatação revela que, quando o livro adota a estratégia de resolução de problemas, aparentemente, existe um menor grau de formalidade no tratamento conceitual, mas não é possível fazer afirmações genéricas a esse propósito, porque as entrelinhas do texto podem conter aspectos essenciais da construção lógica do saber matemático. Finalmente, constatamos que alguns livros didáticos mais recentes revelam a tendência de complementar a organização lógico-dedutiva da argumentação geométrica por meio da valorização de estratégias indutivas em atividades voltadas para a validação do conhecimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BICUDO, M. ESPÓSITO, V. Pesquisa Qualitativa em Educação, Piracicaba: Editora da Unimep, 1994.
CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Porto Alegre: Teoria e Educação, n.2, p. 177-229, 1990.
CHERVEL, A. La Culture Scolaire. Paris, Editora Belin, 2000.
CHEVALLARD, Y. La Transposition Didactique. Paris: Pensée Souvage, 1991.
CHEVALLARD, Y. et al. Organiser L’étude. Actes de la 11e École d’Été de Didactique des Mathématiques. Grenoble: La Pensée Sauvage, 2002.
LEVY, P. As tecnologias da inteligência. O futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
PAVANELO, R. O Abandono do Ensino da Geometria no Brasil. Zetetiké, n. 01, UNICAMP, Campinas, 1993.
PERELMAN, C. Tratado da argumentação. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
ANEXO I – IDENTIFICAÇÃO DOS LIVROS DIDÁTICOS
CÓDIGOAUTOREDITORAANO
7.1 e 8.1Fernando TrottaScipione1986
7.2 e 8.2Álvaro AndriniBrasil1989
7.3 e 8.3Gelson Iezzi, Oswaldo Dolce, Antônio MachadoAtual1991
7.4 e 8.4José Ruy Giovanni, Castrucci e Giovanni Jr.FTD1992
7.5 e 8.5Edwaldo BianchiniModerna 1993
7.6 e 8.6Scipione Di Pierro NettoScipione1995
7.7 e 8.7Oscar GuelliÁtica1997
7.8 e 8.8Luiz Márcio Imenes e Marcelo LellisScipione1999
7.9 e 8.9José Jakubo, Marcelo Lellis e Marília CenturiónScipione1999
7.10 e 8.10Antônio José Lopes BigodeScipione2000
7.11 e 8.11Célia Carolino Pires, Edda Curi, Ruy PietropaoloAtual2001
7.12 e 8.12José Ruy Giovanni e Eduardo ParenteFTD2002
Palavras-chave: Argumentação. Ensino da Geometria. Livros Didáticos.
Questão de pesquisa
O interesse em pesquisar a argumentação resulta da convergência de algumas trajetórias. De início, partimos do pressuposto que a argumentação localiza-se no núcleo epistemológico central da Matemática. Em segundo lugar, mesmo constatando mudanças no que diz respeito ao grau de sistematização, a argumentação continua presente entre as tarefas propostas para a educação matemática. Finalmente, o interesse em pesquisar o livro didático justifica-se pelo fato desse tipo de publicação figurar entre os recursos mais usados no estudo da matemática, funcionando como uma referência para a validação dos conhecimentos construídos nesse contexto. Observa-se que, tanto para alunos quanto para professores, o livro didático se constitui em uma fonte de informações para o estudo da matemática, onde a generalidade, a formalidade e particularmente o problema da validação assumem um estatuto diferenciado.
Ao fazer uma leitura cultural da educação escolar, Chervel (1990) observa que o manual didático assume uma importância diferenciada em função da própria natureza da disciplina de referência. No caso da matemática, entendemos que a valorização do livro didático decorre do fato do mesmo servir como parâmetro para construção da objetividade, do rigor, da generalidade e de outras características do saber matemático. Dessa forma, conforme a especificidade de cada área, o livro didático assume diferentes estatutos na condução das praxeologias típicas da disciplina. Por esse motivo, no plano mais amplo de nossa pesquisa, estamos interessados em investigar o tratamento pedagógico induzido pelo livro didático. Isto corresponde a procurar entender como o livro didático funciona como mais uma instituição participante da transposição didática. Não se trata de atribuir uma importância maior a essa fonte de influência do ensino da matemática, mas de investigar a forma como o estudo da argumentação vem sendo proposto nos livros.
O livro didático tem sido uma fonte de dados para motivar pesquisas cujo interesse vem sendo resgatado nos últimos anos. Em parte, esse interesse deve-se à expansão das políticas públicas de distribuição de livros na rede pública, através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). No caso da pesquisa aqui relatada, nossa atenção está voltada para livros publicados nas duas últimas décadas com o objetivo de explicitar tendências atuais do ensino da geometria a partir de uma análise dos conteúdos, das estratégias e recursos propostos. A motivação para sua realização decorre da intenção de compreender parte dos elementos que determinam as relações entre a dimensão conceitual da matemática e as organizações didáticas associadas, entendendo que as técnicas empregadas por professores são parcialmente condicionadas pelas fontes de influência da transposição didática, entre as quais incluímos o livro didático.
A delimitação em torno da geometria justifica-se em face da continuidade de outros trabalhos já realizados, no contexto do nosso próprio grupo de pesquisa, sobre temas correlacionados, tendo em vista alguns sinais de revalorização do ensino da geometria. Por outro lado, esta opção é também uma tentativa de contribuir na retomada do ensino de Geometria que passou por um período recente de abandono no Brasil, conforme esclarece o trabalho de Pavanelo (1993). Este quadro levou-nos a definir a seguinte questão: quais são os elementos apresentados pelos livros didáticos de Matemática, nos últimos anos, para organizar o estudo da argumentação nas proposições geométricas em nível das séries finais do Ensino Fundamental?
Aspectos teóricos
A argumentação é uma das práticas intelectuais mais antigas na história da humanidade, quer seja no plano cultural mais amplo do conhecimento social e científico e mais particularmente na construção do saber matemático. Apresentar aos seus semelhantes argumentos convincentes sempre representou um tipo de poder, um nível de entendimento que promove a inteligência humana, bem como serve de instrumento para efetivar as ações individuais e institucionais. Os matemáticos demonstram teoremas para mostrar que eles são verdadeiros, mesmo que o reconhecimento dessa verdade esteja delimitado ao contexto de uma instituição social. Teorias sobre o processo argumentativo foram sendo construídas, em função da especificidade de cada área. Perelman (1996) observa que a finalidade das teorias argumentativas é o estudo de técnicas discursivas as quais são cultivadas no contexto de cada área, em função da natureza do saber considerado. Esse autor ressalta que as técnicas discursivas têm a finalidade de “provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam ao sentimento”. Esse aspecto do convencimento está entre as tradições preservadas pela disciplina da matemática.
Argumentação e Método
Embora exista uma proximidade entre método e argumentação, no plano didático, estamos utilizando a expressão estratégias de ensino, no sentido de descrever os procedimentos práticos-técnicos referentes a um método de ensino. Dessa maneira, podemos perceber que existe uma dupla interferência da argumentação em relação ao próprio conteúdo da geometria, de um lado os argumentos matemáticos para validar um enunciado e de outro os argumentos que validam uma estratégia de ensino. Por que o professor deve escolher uma ou outra maneira de ensinar? Quando se trata de discutir a questão da metodologia na construção do conhecimento geométrico, a argumentação passa a ser caracterizada de uma forma ainda mais especial. A tradição iniciada por Tales de Mileto parece que está ainda na raiz da questão. Toda estratégia de ensino deveria ser desenvolvida pelo professor, com o objetivo de defender uma forma particular de ensinar ou de argumentar sobre a validade dos saberes com os quais se trabalha. Ao buscar o significado etimológico do termo método, nós encontramos que o seu sentido mais íntimo corresponde à escolha de um caminho para a busca da verdade na qual acreditamos existir. Assim ao utilizar uma determinada estratégia, de certa forma, estamos também praticando a escolha de um método, de um caminho que acreditamos ser o ideal para essa finalidade.
Argumentação na matemática e no quotidiano
As relações entre o saber escolar e os conhecimentos não escolares interferem no estudo da matemática e no caso da argumentação essa interferência é ainda mais complexa. No contexto das organizações matemáticas, uma demonstração consiste de uma seqüência de deduções baseadas em afirmações verdadeiras. Para estar correta é necessário que cada componente dessa seqüência esteja correta. Para isso acontecer é preciso que cada passagem esteja fundamentada em postulados, teoremas, definições e propriedades, os quais são elementos que constituem a organização dedutiva da matemática e que já foram aceitos como válidos. Não se pode passar de uma afirmação para outra sem fazer referência às regras que nada mais são que conteúdos já demonstrados ou aceitos como evidentes, como é o caso dos axiomas. No caso do diálogo usual do quotidiano não é preciso fundamentar cada passagem da argumentação.
A verificação da validade de uma proposição matemática para casos particulares não é suficiente para garantir que ela é sempre válida, entretanto, este tipo de procedimento exerce um papel importante na busca de contra-exemplos que, se encontrados, garantem a não validade da proposição. Basta um contra-exemplo para provar que a propriedade não vale, basta uma exceção para invalidar a regra, enquanto na linguagem do cotidiano, podemos dizer que a exceção confirma a regra. Verifica-se aí um conflito entre o princípio do terceiro excluído, da lógica formal e o da verdade estatística, da língua natural.
Há outras regras do discurso matemático que não obedecem à lógica do cotidiano. A hipótese e a conclusão de um teorema nem sempre são permutáveis enquanto que na lógica do cotidiano, quase sempre, funciona o princípio da simetria, ou seja, uma implicação normalmente subentende a validade de sua recíproca. Em matemática para se provar que é verdade é necessário produzir uma seqüência de implicações verdadeiras, isto é, partir das hipóteses e chegar às conclusões, mediante deduções válidas, enquanto que no cotidiano dizer a verdade significa dizer toda a verdade. Além disso, em as deduções geométricas devem se basear na parte não-ostensiva do saber matemático e não na parte ostensiva, como os desenhos, mesmo que estes tenham sido feitos com o máximo de rigor.
As regras implícitas da “lógica” do cotidiano, freqüentemente, não obedecem aos mesmos princípios do discurso matemático formal, podendo mesmo se configurar em obstáculos à aprendizagem do seu funcionamento. Algumas pesquisas da área de psicologia cognitiva, conforme observa Lévy (1993) quanto às dinâmicas de argumentação do cotidiano, possuem muito menos estrutura do que aquelas características dos textos escritos. É evidente que não se trata de desqualificar o discurso do cotidiano, pois ele é útil na própria dinâmica de fertilização de outras práticas argumentativas. A organização e coerência das afirmações usadas na argumentação cotidiana não seguem os mesmos princípios e regras do discurso científico. Entre esses dois extremos, situa-se a prática da argumentação no saber escolar. O desafio reside na articulação entre a argumentação do cotidiano e aquela de um nível que possa se aproximar, da argumentação matemática.
Argumentação na prática educativa em Matemática
A argumentação científica e a didática embora relacionadas não se situam no mesmo plano epistemológico. Em cada campo científico a argumentação também não tem o mesmo sentido. Ao variar as áreas científicas pode alterar os procedimentos metodológicos da argumentação. Nas praxeologias mais usuais da educação escolar da matemática a argumentação se faz através de procedimentos e com diferentes estatutos. Muitas vezes a validade de uma idéia é argumentada através da simples exibição de uma figura ou da verificação de alguns casos particulares. Evidencia-se aí um conflito entre as lógicas indutiva e dedutiva. Embora a indução – a afirmação da validade de uma proposição geral com base na observação de casos particulares – seja uma prática utilizada no descobrimento de propriedades matemáticas, esta não é uma conduta adequada na fase de formalização do conhecimento, pois não satisfaz a exigência de generalidade da Matemática.
O estatuto das provas e demonstrações se constitui num dos pontos centrais na valorização do estudo da matemática como uma ciência lógico-dedutiva. A construção desta lógica no plano escolar, embora possa ser iniciada com práticas argumentativas do quotidiano, a partir de certo nível deverá haver rupturas. Nas atividades características da cultura escolar não se trabalha somente com o argumento científico. Por exemplo, no estudo da matemática, mesmo que seja legítimo defender a valorização da argumentação lógico-dedutiva, a exemplo do que é feito na apresentação textual do saber matemático, parece mais adequado considerá-lo como ponto de chegada e não de partida. Quanto menor o nível de escolaridade mais válida nos parece essa postura. No âmbito da comunidade escolar, no espaço da sala de aula, é natural explorar formas diferenciadas de argumentação como aquelas representadas pela verificação ou pelas provas não formais. Denominamos de verificação o exercício da comprovação ou não da validade para casos particulares de uma proposição.
Organização do estudo
A escolha de conteúdos, métodos e recursos resultam das fontes de influência que atuam na transposição didática, conforme destaca Chevallard (1991). Tais elementos encontram-se registrados em relatórios, teses, softwares, parâmetros, programas e em outras publicações, entre as quais estão os livros didáticos. Entre os diversos registros textuais do saber, existentes no contexto cultural da escola, nós escolhemos o livro didático para servir como fonte primária de dados da pesquisa aqui relatada. Na evolução das idéias contidas na teoria da transposição didática, encontra-se a teoria antropológica do didático, a qual estabelece elementos para a definição de uma praxeologia para estudar a organização do trabalho do professor de matemática. Em outros termos, ao estudar a prática cultural que se encontra enraizada no trabalho docente, Chevallard (2002) destaca a importância de identificar as tarefas, técnicas, tecnologias e as teorias que proporcionam sustentação dos outros elementos. De maneira geral, qualquer momento de ensino caracteriza-se pela presença de alguma tarefa a ser desenvolvida. Por outro lado, a cultura escolar levou à definição de tarefas resolúveis por técnicas que devem ser ensinadas.
Assim, podemos identificar a existência de um bloco que estabelece uma proximidade importante entre a dimensão prática e técnica da educação matemática. No entanto as técnicas devem ser fundamentadas por alguma teoria que lhes dêem sustentação e essa teoria recebe o nome de tecnologia. Interessa-nos identificar como ocorrem as ligações entre as organizações matemáticas e didáticas induzidas pelos livros didáticos, no caso mais pontual do teorema de Pitágoras e que traduzem elementos básicos da praxeologia do professor de matemática. Em termos dessa teoria, a questão norteadora dessa pesquisa pode ser assim traduzida: como os livros didáticos apresentam as articulações entre as organizações matemáticas e didáticas relativas ao ensino de teoremas básicos de Geometria?
Aspectos metodológicos
Esta pesquisa foi realizada através de uma abordagem fenomenológica, no sentido descrito por Bicudo e Espósito (1994), a partir da análise, da busca das essências contidas nos discursos contidos nos livros didáticos. Focalizamos esse discurso a partir da materialidade contida nas páginas dos livros, na totalidade de seu texto, incluindo figuras, fotos e outros recursos. Estamos supondo que algumas das escolhas feitas pelos autores dos livros acontecem em função de orientações pedagógicas publicadas pela comunidade de educadores matemáticos. Em outros termos, nossa intenção não é analisar tendências do ensino da matemática com base na subjetividade de um grupo de autores, mas identificar aspectos comuns nessas publicações e em que sentido tais orientações caracterizam uma tendência na área de Educação Matemática. Outro argumento para estudar tais tendências consiste no nosso compromisso com a formação de professores.
Os dados da pesquisa foram obtidos de 24 livros didáticos, sendo doze da 7ª série e doze da 8ª série, publicados no Brasil, no período entre 1997 e 2002, os quais estão identificados no anexo I deste artigo por um código onde o primeiro dígito corresponde à série e o segundo ao número de ordem do livro. A escolha do período ocorre em função da implantação do PNLD, em 1995, o que poderia servir como mais uma fonte de influência da transposição didática. Por sua trajetória na história das disciplinas, tal como observa Chervel (1990), o livro didático revela uma parte considerável dos saberes com os quais os agentes da educação estão envolvidos. Isso acontece em relação a todas as disciplinas e em cada área esse tipo de livro assume características particulares. No caso da matemática, em decorrência da influência recebida das raízes positivistas, a estabilidade do texto didático assume um papel importante em vista de seus aspectos formais. Para explicitar a objetividade típica do saber matemático, valoriza-se a publicação de um texto que possa servir de referência na organização didática. Trata-se, por exemplo, de explicitar definições, propriedades, representações, teoremas, processos argumentativos, como as demonstrações que, conjuntamente, expressam o raciocínio lógico típico da disciplina matemática. A partir dessa análise, foi obtido um conjunto de informações em relação à questão da pesquisa. Em seguida, essas unidades foram classificadas e submetidas a um processo de convergência e análise teórica, pelo qual destacamos idéias centrais que permeiam os livros didáticos.
Análise de livros didáticos
Neste parágrafo descrevemos os principais elementos que identificamos no estudo dos ângulos opostos pelo vértice. Em quase todos os livros analisados encontramos a seguinte seqüência: Inicia com apresentação de ângulos formados por duas retas concorrentes e a definição de ângulos opostos pelo vértice a partir da observação de uma figura contendo duas retas e as indicações das medidas dos ângulos. Em seguida o enunciado da propriedade afirmando que ângulos opostos pelo vértice são congruentes (têm a mesma medida). Na seqüência descreve uma seqüência dedutiva indicando os ângulos diretamente sobre a figura e registrando que a soma dos ângulos adjacentes é igual a 180o. Finalizam com uma sessão de exercícios contendo retas concorrentes, nos quais é preciso encontrar o valor da medida de alguns ângulos opostos pelo vértice, normalmente indicados por letras minúsculas. Alguns livros, além do que foi apresentado acima, antes de enunciar a propriedade, sugerem que os alunos meçam os ângulos da figura utilizando instrumentos do desenho (7.4, 7.8, 7.9, 7.11 e 7.12) outros (7.5, 7.11) pedem que os alunos encontrem medidas de ângulos, em casos particulares com medidas dadas. Outros apresentam a notação de congruência (7.5 e 7.6). O livro 7.5 explica o significado dos termos: postulado, teorema e demonstração. O livro 7.7 faz considerações históricas com Tales de Mileto e apresenta um exercício resolvido antes da sessão de exercícios. Os livros 7.8 e 7.12 apresentam figuras do mundo real contendo ângulos opostos pelo vértice (pés de uma tábua de passar roupa e duas espadas de esgrima que se cruzam). O livro 7.8 é o único que apresenta um pequeno texto onde um personagem enuncia a proposição. Os únicos livros que sugerem articulações com outros conteúdos de Geometria são o 7.8 (feixe de paralelas cortadas por uma transversal) e o 7.11 (diagonais de quadriláteros e feixe de paralelas cortadas por transversal).
No que concerne ao teorema de Pitágoras (TP), observamos que alguns livros publicados na última década já apresentam demonstrações utilizando áreas, mas a maioria traz a demonstração clássica usando semelhança de triângulos. Essa diversificação revela também outra componente presente em alguns livros que consiste em relacionar um conteúdo da matemática com outros conteúdos da própria matemática, o que chamamos de articulação interna.
O livro 8.8 (p. 36) anuncia a intenção de construir uma seqüência lógico-dedutiva: “Vamos deduzir o teorema de Pitágoras, isto é, vamos mostrar que ele é verdadeiro”. Dessa maneira, o livro revela a existência de uma tarefa que está na essência epistemológica da matemática, que é a demonstração de teoremas, ligada ao problema da verdade do conhecimento. Em outros termos, este livro vincula, explicitamente, o problema da argumentação com o problema da verdade na construção do conhecimento matemático. Dessa maneira, a dedução é proposta como técnica para realizar uma tarefa, que neste caso, consiste em mostrar que o teorema é verdadeiro. Nos termos adotados por Chevallard (2002), podemos dizer que as demonstrações, tais como aparecem nos livros didáticos, se caracterizam como a realização de um tipo de tarefa.
No contexto das séries finais do Ensino Fundamental surgem as primeiras proposições demonstráveis da geometria. A partir da intenção de mostrar que o teorema é verdadeiro, o livro 8.8 propõe ainda uma articulação entre uma representação gráfica e uma expressão algébrica, o que mostra o seguinte parágrafo: “Na situação da figura, sabemos que: b2 = a.m e c2 = a.n. Vamos somar as duas igualdades: b2 + c2 = a.m + a.n”. Assim, o livro explicita uma parte da técnica empregada para construir a demonstração do teorema, ou seja, operações algébricas são realizadas a partir das igualdades obtidas cuja continuidade depende da aplicação de uma outra técnica, estudada anteriormente, que é a fatoração. Não devemos esquecer que, ao descrever a técnica, o livro lança mão de, no mínimo três tipos de representação: gráfica (desenho de uma figura geométrica), algébrica e também o texto na língua materna, procurando desenvolver certas articulações entre elas.
A proposta de diversificação de linguagem é também uma das tendências mostradas pelos livros didáticos mais recentes. Ao recorrer à aplicação da técnica da fatoração, o texto esclarece: “Agora fatoramos a expressão a.m + a.n, colocando o fator “a” em evidência: b2 + c2 = a.(m + n)”. Mais uma vez aparece uma articulação entre a representação gráfica e a dedução de relações: “Veja na figura que m + n = a. Logo, b2 + c2 = a.a, ou seja, b2 + c2 = a2”. (grifo nosso). Ao esclarecer para o leitor que “deduzimos o teorema de Pitágoras, usando as fórmulas que foram deduzidas com base na semelhança de triângulos”, o texto sintetiza uma das mais fortes características do pensamento lógico-dedutivo que consiste no encadeamento de afirmações e na articulação com conceitos já estudados.
Para exemplificar a presença da lógica argumentativa nos livros didáticos, no que se refere ao ensino da geometria, destacamos uma situação proposta no livro 8.10 (p. 214) na qual o desenho de um personagem é usado para colocar a questão: “Mas como ter certeza que esta proposição é sempre válida?” Assim, além de fazer referência à validação, este livro mostra uma articulação entre uma componente matemática e um dispositivo didático que é o uso de desenhos de personagens para expandir as condições de comunicação com o aluno. Essa situação, tal como aparece no livro levanta o problema da validação no estudo da matemática e que colocada no contexto da resolução de problemas, pode estar associada à apresentação de uma seqüência lógico-dedutiva, mas nem sempre isso acontece.
5. ELEMENTOS DE SÍNTESE
Ao finalizar este artigo, reconhecemos que a vertente aqui iniciada nos proporciona um amplo espectro de questões motivadoras para realizar outras pesquisas. Entretanto, a partir da análise realizada podemos enumerar aqui alguns pontos que se destacam. Em primeiro lugar, constatamos que o tema da argumentação no estudo da geometria está fortemente presente nos livros didáticos e se constitui em uma das categorias epistemológicas e didáticas que tem sido, relativamente, preservada na vulgata da educação matemática. A partir dessa presença, os livros didáticos analisados revelam alterações significativas quanto aos diferentes graus de sistematização na maneira de organizar o estudo da argumentação no estudo da geometria. Observamos ainda que alguns livros didáticos publicados mais recentemente mostram uma tendência que consiste na diversificação das estratégias e dos recursos sugeridos para o ensino da argumentação. Outra constatação revela que, quando o livro adota a estratégia de resolução de problemas, aparentemente, existe um menor grau de formalidade no tratamento conceitual, mas não é possível fazer afirmações genéricas a esse propósito, porque as entrelinhas do texto podem conter aspectos essenciais da construção lógica do saber matemático. Finalmente, constatamos que alguns livros didáticos mais recentes revelam a tendência de complementar a organização lógico-dedutiva da argumentação geométrica por meio da valorização de estratégias indutivas em atividades voltadas para a validação do conhecimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BICUDO, M. ESPÓSITO, V. Pesquisa Qualitativa em Educação, Piracicaba: Editora da Unimep, 1994.
CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Porto Alegre: Teoria e Educação, n.2, p. 177-229, 1990.
CHERVEL, A. La Culture Scolaire. Paris, Editora Belin, 2000.
CHEVALLARD, Y. La Transposition Didactique. Paris: Pensée Souvage, 1991.
CHEVALLARD, Y. et al. Organiser L’étude. Actes de la 11e École d’Été de Didactique des Mathématiques. Grenoble: La Pensée Sauvage, 2002.
LEVY, P. As tecnologias da inteligência. O futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
PAVANELO, R. O Abandono do Ensino da Geometria no Brasil. Zetetiké, n. 01, UNICAMP, Campinas, 1993.
PERELMAN, C. Tratado da argumentação. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
ANEXO I – IDENTIFICAÇÃO DOS LIVROS DIDÁTICOS
CÓDIGOAUTOREDITORAANO
7.1 e 8.1Fernando TrottaScipione1986
7.2 e 8.2Álvaro AndriniBrasil1989
7.3 e 8.3Gelson Iezzi, Oswaldo Dolce, Antônio MachadoAtual1991
7.4 e 8.4José Ruy Giovanni, Castrucci e Giovanni Jr.FTD1992
7.5 e 8.5Edwaldo BianchiniModerna 1993
7.6 e 8.6Scipione Di Pierro NettoScipione1995
7.7 e 8.7Oscar GuelliÁtica1997
7.8 e 8.8Luiz Márcio Imenes e Marcelo LellisScipione1999
7.9 e 8.9José Jakubo, Marcelo Lellis e Marília CenturiónScipione1999
7.10 e 8.10Antônio José Lopes BigodeScipione2000
7.11 e 8.11Célia Carolino Pires, Edda Curi, Ruy PietropaoloAtual2001
7.12 e 8.12José Ruy Giovanni e Eduardo ParenteFTD2002