Representações Geométricas
Luiz Carlos Pais
Luiz Carlos Pais
Este artigo trata da problemática específica do processo de ensino e aprendizagem da geometria e o seu objeto de estudo pertence à área de interesse da Educação Matemática. A pesquisa suporte teve como finalidade desvelar alguns aspectos do fenômeno da representação plana de conceitos da geometria euclidiana plana e espacial, procurando melhor precisar o seu o significado epistemológico na construção do conhecimento escolar. Para alcançar esta finalidade foi realizada uma seqüência didática com alunos em nível da 8a série do ensino fundamental e da 1a série do ensino médio, que produziram uma coleção de desenhos em resposta à uma série de atividades que lhes foram propostas. A análise dessas representações, realizadas pelos alunos, foi elaborada a partir de um referencial fundamentado em conceitos estudados pela linha francesa de Didática da Matemática. Os resultados da pesquisa evidenciam dificuldades dos alunos tanto na leitura como na realização das representações principalmente no que se refere ao uso da técnica da perspectiva para colocar em destaque a terceira dimensão do objeto representado. Tais dificuldades indicam a necessidade de uma utilização adequada de recursos didáticos que possam contribuir na superação dos obstáculos existentes na aprendizagem da geometria.
Considerações sobre o desenho
Desde os mais remotos tempos é possível constatar que o desenho é um poderoso instrumento de comunicação, quase sempre presente no contexto cultural de diversas civilizações do ocidente. No princípio, os desenhos primitivos eram encontrados nas rochas e nas cavernas para expressar mensagens e até mesmo o produto da imaginação dos homens daqueles tempos. Hoje, incluindo o fantástico recurso do movimento através de imagens digitais, eles parecem flutuar magicamente nas telas dos computadores. Tanto num caso como no outro, sua função é transmitir algum dado, mensagem ou informação. Com a evolução da tecnologia computacional, podemos constatar, na atualidade, uma presença ainda mais marcante desse recurso principalmente nas páginas dos livros didáticos de matemática reservadas ao estudo da geometria. Além dessa maior presença nos manuais, os desenhos são também encontrados em cartazes publicitários, jogos, revistas infantis e em vários outros suportes da comunicação visual. Assim, por estar tão presente no mundo contemporâneo, o desenho está fortemente incorporado ao contexto cultural. Por essa razão as crianças têm, normalmente, um grande interesse por esse tipo de comunicação, mas, certamente o seu grau de domínio está em função também das diferenças de oportunidade de estímulos sociais. Crianças que desde muito cedo têm um maior estímulo com esse material certamente, terão mais facilidade em compreender o processo de representação dos conceitos geométricos por um desenho, no contexto escolar. O aspecto dessa temática que mais desperta o interesse de nosso estudo é utilização do recurso gráfico como suporte do processo de representação do conhecimento geométrico.
O desenho é também um recurso didático utilizado no transcorrer de quase toda aprendizagem escolar, sendo encontrado em diversas disciplinas do currículo escolar e não é uma exclusividade do ensino da matemática. Mas, com maior razão o desenho está mais próximo da geometria, onde desempenha uma função ainda mais preponderante do ponto de vista cognitivo. Se na maioria das disciplinas ele é usado para representar objetos materiais, em geometria seu uso é bem mais complexo por servir para ilustrar noções abstratas e gerais. Ora, essas noções existem apenas no plano das idéias e não podem ser apreendidas através dos nossos órgãos sensitivos. Por esta razão, lançamos mão desses recursos didáticos que auxiliam na elaboração das idéias, mas não podem, na realidade, substituí-las. É neste ponto que ocorre a gênese da sua função representativa, mudando sua função de representante de objetos materiais para representante de noções abstratas.
Partimos da concepção de que os conceitos e suas representações planas determinam dois aspectos fundamentais do conhecimento geométrico, sendo um de natureza teórica, caracterizado pela abstração e pela generalidade e o outro de natureza experimental, acessível à compreensão humana através da visão. Devido a esta dualidade, quase sempre interpretada como pólos inconciliáveis do saber matemático, torna-se inadequado, do ponto de vista pedagógico, estabelecer uma separação nítida e absoluta entre a representação em si e o processo de conceitualização. No mesmo nível dessa dualidade estão as correlações entre os objetos materiais, associados com freqüência aos sólidos geométricos e as imagens mentais, evidenciando também a relação entre a geometria e a realidade. Se por um lado a generalidade e a abstração têm sido os aspectos mais enfatizados no ensino da geometria, por outro, constata-se que esta aprendizagem recebe influências consideráveis tanto das imagens mentais, como dos desenhos, dos objetos materiais e da própria linguagem. Esses elementos constituem formas diferenciadas de representação do conhecimento geométrico e estabelecem pontos de partida para o que chamamos de relações epistemológicas, as quais esboçam o eixo condutor desse trabalho.
No transcorrer da aprendizagem o desenho passa então, de uma forma lenta e gradual, a representar as noções geométricas. Em decorrência dessa mudança de estatuto, sobretudo, em nível da escolaridade fundamental, é necessário especificar o sentido em que estamos entendendo o processo de representação. A rigor, se os conceitos ainda não estiverem relativamente estruturados, não faz sentido dizer que o desenho representa tais noções. É preciso portanto admitir a existência de um contínuo e permanente processo de evolução da função representativa do desenho. A medida que o indivíduo consegue aprimorar mais o seu nível de formalização conceitual cresce a justificativa dessa função representativa. Em outros termos, se o sujeito já tem incorporado um certo nível conceitual, logo pode lançar mão de um desenho como um dispositivo de representação plana desse conhecimento. Por outro lado, se não existe ainda um nível razoável na elaboração das idéias, não tem também o próprio objeto da representação. Num nível bem primário da aprendizagem pode ocorrer até mesmo uma identificação do conceito com a sua representação. É o caso, por exemplo, em que um simples traço no papel passaria a ser, indevidamente, a própria reta, ou ainda, no caso mais geral da geometria plana onde as figuras geométricas são, por um abuso de linguagem, identificadas aos próprios desenhos. Do ponto de vista pedagógico não podemos, num nível bem elementar, alimentar a esperança de tentar diferenciar para a criança, por exemplo, o desenho de um triângulo do próprio triângulo. Este tipo de correlação, embora sendo uma passagem obrigatória, somente pode ser elaborada através de um processo essencialmente dialético e evolutivo. Essas são algumas das razões que mostram o papel desempenhado pelas representações na aprendizagem da geometria.
Nas últimas décadas o ensino da geometria - e em particular o uso do desenho -passou por um bom período de esquecimento. A geometria mereceu um lugar bem obscuro no currículo escolar motivado principalmente pelo chamado movimento da matemática moderna. Esse movimento, que coincidiu aproximadamente com o período de influência do tecnicismo na educação brasileira, acabou determinando mudanças profundas tanto no processo de formação de professores, na redação dos livros didáticos e de uma maneira geral na valorização educativa do conteúdo matemático. Parece ser oportuno destacar que um dos poucos aspectos positivos do movimento da matemática moderna foi lançar uma situação tão caótica no ensino da matemática que, na realidade, veio a contribuir para a consolidação da Educação Matemática enquanto área de pesquisa.
A ênfase principal desse período foi dada mais aos aspectos estruturais do conhecimento tais como a teoria dos conjuntos, as propriedades algébricas e uma geometria mais "topológica". Uma análise dos livros didáticos dessa época mostra que a geometria euclidiana dedutiva foi quase totalmente esquecida ficando, muitas vezes, reduzida simplesmente à utilização do desenho das figuras geométricas e ao uso de algumas propriedades. Foi esta situação que certamente motivou o interesse pela realização de algumas pesquisas tais como Perez [1991 ] e Pavanelo [1993] mostrando que, no Brasil, nos últimos anos, houve um relativo abandono do ensino da geometria. Por outro lado, parece que a situação atual já pode ser considerada um pouco diferente. Se não podemos ainda falar de um ensino mais universalizado, já é possível destacar uma tentativa de revalorização desse conteúdo. É evidente que muitos trabalhos ainda estão restritos ao nível da pesquisa, mas se constituem como a teorização necessária para uma possível melhoria da realidade atual. Essa reação pode ser observada em alguns novos livros didáticos e programas curriculares que deixam transparecer uma retomada da geometria. É neste contexto que nasce também a necessidade de uma reflexão mais específica sobre a temática da representação plana.
Mas para que possamos melhor defender os valores educativos da geometria e justificar a sua presença no currículo de primeiro e segundo graus, é necessário que o seu ensino possa desenvolver no aluno um relativo domínio do espaço. Esse domínio possibilitaria uma certa habilidade de confrontação dos objetos reais com suas representações. Essa finalidade somente pode ser alcançada através de um trabalho didático que possibilite uma forte interação do aluno com uma diversidade de situações envolvendo as correlações que se estabelecem entre a realidade e os recursos representativos. Esse trabalho pedagógico deve sobretudo priorizar o contato com aquelas situações que envolvam algum tipo de representação em perspectiva. O que se espera é que essas situações permitam ao aluno confrontar, no plano racional, tais desenhos com os objetos representados e extrair dessa leitura as informações necessárias. A defesa dessa finalidade do ensino da geometria não pode excluir o aspecto demonstrativo que deve ser igualmente valorizado. Pois, um dos argumentos principais para justificar o ensino da geometria tem sido a afirmação de que tal conteúdo poderia servir como um modelo de ciência dedutiva. Sua aprendizagem possibilitaria o desenvolvimento de um raciocínio lógico e cultivaria o espírito científico. Na prática a realidade tem mostrado que esses objetivos nem sempre são alcançados de forma satisfatória e que, de um modo geral, há ainda um grande vazio pedagógico a ser trabalhado. Esse desafio é mais realçado quando passamos a considerar os problemas de formação da grande maioria de nossos professores de matemática. Uma compreensão melhor desse problema fica mais evidente quando confrontamos a prática pedagógica com o discurso do professor. É possível perceber que, de uma forma geral, há uma tentativa de valorização da geometria dedutiva, mas na realidade, esse discurso fica mais no plano das intenções (PAIS, 1999).
Considerações teóricas
O significado de uma representação plana para o aluno não é evidentemente o mesmo do contexto teórico em que ela pode ser definida. No plano cognitivo, a representação tem um grau de complexidade bem diferente da formalidade exigida pelo contexto científico. Com isso queremos destacar que, mesmo sendo possível definir precisamente uma projeção geométrica, no contexto da aprendizagem, as determinações epistemológicas têm um interesse didático mais preponderante. Essa é uma questão fundamental, pois de nada adiantaria defender uma formalização teórica do desenho em detrimento da necessidade que temos de conhecer o seu real significado para o aluno.
Essa é a mesma questão do significado dos conceitos científicos estudada por Vergnaud [1990] através de sua teoria dos campos conceituais. Trata-se de uma noção didática que visa a construção do significado do saber matemático para aluno. Com essa finalidade Vergnaud destaca que o conhecimento deve ser considerado em situações não muito delimitadas, mas ao contrário, deve ser compreendido pelo aluno em áreas bem amplas correspondente ao que ele chama de espaço de situações problemas. Essa é sem dúvida uma abordagem extremamente pertinente à Didática da Matemática por possibilitar uma melhor compreensão do problema do significado do conhecimento matemático. Astolfi [1990] descrevendo a importância dessa noção afirma que esta maneira de conceber os campos conceituais é de grande utilidade para o ensino das ciências experimentais. O contexto da evolução do conhecimento das ciências experimentais é diferente das características da matemática. Mas a necessidade de possibilitar ao aluno a descoberta de um significado é comum a todas as áreas do conhecimento. Vergnaud [1990] define a noção de conceito da seguinte forma: "Um conceito é uma tríade que envolve um conjunto de situações que dão sentido ao conceito; um conjunto de invariantes operatórios associados ao conceito e um conjunto de significantes que podem representar os conceitos e as situações que permitem aprendê-los."
Assim um conceito não se forma com um só tipo de situação da mesma forma que uma situação não se analisa com um só conceito. A busca desse significado não pode desconhecer a natureza dos desenhos que são amplamente utilizados no ensino da geometria. As representações planas de muitos conceitos são apresentadas nos livros didáticos através de certas figuras particulares que podem ser chamadas de configurações geométricas. Tais figuras têm uma importância diferenciada na aprendizagem da geometria e por este motivo devem ser melhor estudadas na didática da matemática. Uma configuração geométrica ou figura fundamental nada mais é do que um desenho que apresenta as seguintes características: ilustra um conceito ou uma propriedade importante; possui fortes condicionantes de equilíbrio e trata-se de um desenho que aparece freqüentemente num certo contexto científico. Uma configuração não é, portanto, um conceito geométrico, é, antes de tudo, uma noção didática que visa incrementar uma melhor compreensão do fenômeno da aprendizagem. Este tipo particular de desenho contribui para a formação de boas imagens mentais e assim possibilita um conhecimento mais operacional tanto na formação de conceitos como na resolução de problemas, permitindo uma manipulação de informações de uma forma mais eficiente.
As regras básicas do desenho geralmente não tem sido objeto do ensino da geometria a nível da educação fundamental. Em particular as questões mais precisas da representação em perspectiva igualmente não são tratadas de uma forma explícita. Os livros didáticos também não abordam questões referentes ao próprio traçado quer seja no que se refere a sua produção ou a sua leitura. A prática tradicional tem mostrado que esses aspectos devem ser apreendidos por uma forma empírica através do contato direto com as figuras. Por outro lado uma análise mais detalhada revela que há uma série de detalhes cujo significado não é nada evidente para o aluno. Essas regras não podem ser aprendidas simplesmente de uma forma espontânea.
A natureza experimental do conhecimento geométrico exige uma técnica mínima e um relativo domínio dos instrumentos de desenho tais como a régua, o compasso, o transferidor e o esquadro. Essa habilidade é de interesse essencialmente educacional e certamente ultrapassa os limites da escola. Não se trata de defender o ensino de um desenho técnico que estaria num outro nível de interesse. Estamos defendendo apenas o ensino de algumas regras básicas envolvendo a representação em perspectiva cavaleira. As questões didáticas em torno dessas regras são defendidas por Audibert G. [1990] mostrando a possibilidade de adotá-las no ensino fundamental.
As questões pedagógicas da representação também são abordadas por Parzyz [1988] que destaca as relações entre aquilo que é visto pelo aluno e o que consiste a essência do saber geométrico. Trata-se de uma abordagem epistemológica estabelecendo as relações ente o "ver" e o "saber". Esse estudo descreve o caracter representativo das figuras como um conhecimento acessível pela visão humana. É evidente que há um nível bem mais preciso do que a visão em que pode ser formalizado o saber científico enquanto conhecimento acumulado pelo homem; mas é, sobretudo, através da visão que nasce a semente desse conhecimento racional. Do ponto de vista didático o maior desafio está na transposição entre aquilo é simplesmente visto e o que deve vir a se transformar. Aquilo que é visto são as representações que estão impregnadas de um caracter subjetivo, enquanto que o objeto do verdadeiro conhecimento é o saber geométrico.
Alguns aspectos importantes das representações são também estudas por Baldy [1987] através da análise da leitura de desenhos em perspectiva cavaleira por adultos em cursos profissionalizantes na França. Seus trabalhos indicam a influência do fator cultural no procedimento dessas leituras, revelando que indivíduos imigrantes trabalhando naquele país, com baixo nível de escolaridade, mostraram grandes dificuldades na leitura das representações em perspectiva cavaleira. Uma de suas pesquisas consistiu em solicitar a tais sujeitos que associassem um certo número de objetos materiais – construídos a partir da colagem de alguns pequenos cubos de madeira - às suas respectivas representações.
Essas considerações mostram que a complexidade do fenômeno é ampla e certamente extrapola os limites da sala de aula. Suas raízes estariam portanto também vinculadas aos aspectos sociais, econômicos e culturais determinantes da realidade educacional. Acreditamos que esta questão está fortemente relacionada com o tipo de abordagem feita pela Etnomatemática entendida como é descrita no trabalho de D'Ambrósio [1990]. No caso das representações planas consideramos a análise da influência desses determinantes culturais que com certeza revelaria fatores de interesse didático para o ensino da geometria.
Uma análise mais detalhada das representações existentes nos livros didáticos revela que há uma série de regras, relativas à construção do próprio desenho, que permanecem implícitos ao contrato didático. Isto não ocorre somente nos livros e mesmo alguns professores declaram que nunca se preocuparam na explicitação de tais regras. Estes fatos nos levam a uma reflexão em torno da noção de contrato didático, devida a Brousseau [1986]. Esta noção sintetiza as relações constituídas pelo professor, aluno e conhecimento específico como sendo um sistema regido por um conjunto de regras implícitas ou explícitas que devem ser estudadas para um melhor domínio do processo de ensino-aprendizagem. As múltiplas relações existentes nesse processo podem ser estudadas à luz do conjunto dessas regras. O contrato didático se assemelha às regras de um contrato comum com a diferença de que no meio escolar as regras implícitas parece ser predominantes quando comparadas com as exigências explícitas.
O desconhecimento dessas regras, tanto por parte do professor como dos alunos, pode levar ao fracasso da aprendizagem. De um forma bem geral o professor planeja e executa as atividades que supostamente deveriam assegurar o êxito escolar. Compete também a ele verificar a ocorrência ou não da aprendizagem, e o seu redirecionamento quando se fizer necessário. No que se refere à problemática das representações o contrato didático[1] também acaba determinando um procedimento particular. A adoção de regras implícitas e o uso de desenhos incorretos do ponto de vista técnico, principalmente nos livros didáticos, comprometem o significado da aprendizagem.
As representações se constituem num suporte do raciocínio e devem pouco a pouco serem superadas no transcorrer da aprendizagem. Se o conhecimento geométrico ficar restrito ao seu aspecto visual ocorre o que podemos chamar de obstáculo epistemológico. Para a didática da matemática a noção de obstáculo epistemológico se constitui num suporte de fundamental importância. Bachelard [1989] observa que: "a passagem de um estado de espírito pré-científico a um estado de espírito científico passa pela rejeição do conhecimento usual e se choca a um certo número de obstáculos".
A análise desses obstáculos no caso específico da matemática tem que ser realizada com uma atenção também particular. A matemática, segundo as observações desse autor, conheceria períodos de paradas em sua evolução mais ela não conheceria períodos de erros. Dessa forma, somos motivados a estudar, na aprendizagem da geometria, certas situações em que o desenho teria a possibilidade de vir a funcionar como um desses obstáculos. Este é o caso quando, por exemplo, pode ocorrer na leitura de uma perspectiva quando o aluno pode fixar sua atenção somente sobre o conjunto gráfico e não consegue decodificar informações de natureza geométrica.
Representação plana feita pelo aluno
Na resolução de problemas envolvendo uma situação geométrica o aluno quase sempre faz um uso importante do desenho para desenvolver seu raciocínio. Toda a lógica de resolução está em estreita relação com o desenho. O aluno tem normalmente uma boa receptividade com relação ao desenho seja do ponto de vista da sua leitura ou da sua realização. Neste caso o significado destacado pelo procedimento do aluno mostra uma característica puramente experimental da representação plana.
Neste uso é possível distinguir três fases de valorização do desenho no transcorrer da aprendizagem. Num primeiro momento o aluno está fortemente preso ao próprio desenho, ele fixa sua atenção em aspectos bem particulares e a abstração ainda é bem embrionária. Numa segunda fase o aluno passa a usar determinadas situações geométricas onde o desenho pode estar inserido num contexto mais preciso. Quando é possível fazer variar essas situações, segundo a teoria dos campos conceituais, ocorre uma evolução na formalização das noções geométricas. Finalmente, numa terceira fase, que coincide com o final do segundo grau, o aluno passa a utilizar o desenho mais no sentido de um simples esboço. É o início da consolidação da abstração onde desenho atinge um nível mais aprimorado de sua função representativa.
Para representar um objeto em forma de um cubo ou de um paralelepípedo o aluno dá uma preferência especial à perspectiva cavaleira em relação à perspectiva linear. É evidente que em muitos casos trata-se apenas de uma tentativa de realização de uma perspectiva cavaleira. Mas, mesmo nesses casos, é possível perceber através a preservação do paralelismo contido no objeto. A justificativa por essa preferência deve ter suas raízes também vinculadas ao aspecto cultural. A preservação da posição paralela pode representar para o aluno uma situação de equilíbrio. Numa situação de pesquisa de solução de um problema, dizemos que o aluno atinge uma posição de equilíbrio se os resultados que ele conseguiu estruturar tem tendência a se estabilizar. Na prática, é possível constatar que para resolver problemas de geometria no espaço, o aluno quase sempre tem a necessidade de lançar mão de uma representação na qual as três dimensões sejam evidenciadas por meio de uma perspectiva. Entre a perspectiva linear e a cavaleira esta última é amplamente mais usada pelo aluno. Mas pelo fato de não haver uma correspondência biunívoca entre o desenho e o objeto representado o aluno pode mostrar muitas dificuldades em coordenar as relações entre esses dois níveis do conhecimento.
Em determinadas situações o desenho pode representar um obstáculo epistemológico. Este é o caso ilustrado pelo seguinte exemplo: mesmo tendo sob seus olhos um objeto em forma cilíndrica e a sua representação por uma perspectiva cavaleira, o aluno pode ter dificuldades para compreender que os círculos de base do cilindro são representados por elipses. Ao serem indagados sobre tal situação alguns alunos deixam transparecer uma grande insegurança. Fixando a atenção somente sobre a elipse o aluno não percebe que essa curva representa um círculo em perspectiva.
Elementos de Síntese
Na análise epistemológica da geometria do espaço é possível destacar três aspectos fundamentais do conhecimento geométrico: o intuitivo, o experimental e o teórico. A intuição é uma forma de conhecimento subjetivo sempre disponível no espírito das pessoas cuja explicitação não exige uma dedução racional. Um conhecimento baseado na intuição se caracteriza por uma funcionalidade imediata quando comparada com o raciocínio lógico. Os axiomas da geometria euclidiana, que são proposições primitivas evidentes por si mesmo, podem ser aceitos com base nesta forma de conhecimento. A todo rigor não se pode conceber um desses três aspectos totalmente isolado dos outros dois. É possível ainda estabelecer uma correlação do conhecimento experimental com as representações planas, que juntamente com os objetos materiais, funcionam como suportes à aprendizagem. A linguagem, o desenho, a imagem mental e os objetos materiais podem ser concebidos como formas de representação de conceitos, trazendo as imprecisões do processo representativo mostrando que não há como exprimir essa questão em termos precisos e definitivo.
Em síntese, a representação plana é um recurso importante ao processo de construção do conhecimento geométrico e funciona como um suporte ao raciocínio dedutivo. Sua natureza visual, juntamente com a intuição, contribuem na elaboração teórica. A visualização através das representações e dos objetos materiais levam a um uso cuidadoso dos materiais didáticos, pois em determinados casos, podem servir como obstáculos para a aprendizagem. Na prática pedagógica deve ser atribuído um uso correto das representações priorizando as configurações geométricas que desempenham um papel fundamental no processo de ensino-aprendizagem da geometria. O contrato didático, subjacente a essa prática, exige o uso de representações corretas e legíveis para o aluno. Finalmente, é necessário trabalhar com as regras básicas da representação do espaço pela perspectiva cavaleira. É importante destacar que tanto a Espistemologia com a História da Matemática se constituem em conhecimentos fundamentais e necessários à elaboração de um referencial para a consolidação teórica da Didática da Matemática
Bibliografia
ASTOLFI, J.P. e DEVELAY M. (1990) A Didática das Ciências. Papirus, Campinas
AUDIBERT G.(1990) La Perspective Cavalière. Publication APMEP, n.75, Paris
BACHELARD G. (1989) La Formation de l’esprit Scientifique. Publicação da Editora Librairie Philosopfique, J. Vrin, 14ª edição, Paris.
BALDY, R. e DUVAL, J. (1987) Lecture, écriture et comparaisons de volumes in PC.
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BONAFE F. (1988) Quelques hypothèses et résultats sur l’enseignement de la géométrie de l’espace à partir de la représentation en perspective cavalière. Boletim da APMEP, Paris, no 363 pp 151-164.
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D'AMBRÓSIO, U. (1990) Etnomatemática. Editora Ática, São Paulo.
GONSETH F.(1945) La Géométrie et le problème de l’espace. Ed.Griffon, Neuchatel.
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PAIS L.C. (1996) Intuição, Experiência e Teoria Geométria. Revista Zetetiké no 6.
Vol 04, Unicamp, Campinas.
PAIS, L.C. e FREITAS J.L.M. Um estudo dos processos de Provas no Ensino e na
Aprendizagem da geometria no Ensino Fundamental. In Bolema. N.13, UNESP,
Rio Claro, 1999.
PARZYZ, B. (1988) La Représentation du " perçu" et du " su" dans les dessins de la
géométrie de l'espace. Bulletin de l'APMEP N. 364, Paris
PAVANELO, R.M. (1993) Abandono do Ensino da Geometria no Brasil: causas e
conseqüências. Revista Zetetiké n.01 ano 01, Unicamp, Campinas
PEREZ, G. (1991) Pressupostos e Reflexões Teóricas e Metodológicas da Pesquisa
Participante no Ensino de Geometria para as Camadas Populares. Tese de doutorado, Unicamp, Campinas.
VERGNAUD, G. (1990) La théorie des champs conceptuels. RDM vol 10, 2-3, França
DENIS M. (1989) Image et Cognition. Publicação da PUF - Presse Universitaire Française, Paris.
Considerações sobre o desenho
Desde os mais remotos tempos é possível constatar que o desenho é um poderoso instrumento de comunicação, quase sempre presente no contexto cultural de diversas civilizações do ocidente. No princípio, os desenhos primitivos eram encontrados nas rochas e nas cavernas para expressar mensagens e até mesmo o produto da imaginação dos homens daqueles tempos. Hoje, incluindo o fantástico recurso do movimento através de imagens digitais, eles parecem flutuar magicamente nas telas dos computadores. Tanto num caso como no outro, sua função é transmitir algum dado, mensagem ou informação. Com a evolução da tecnologia computacional, podemos constatar, na atualidade, uma presença ainda mais marcante desse recurso principalmente nas páginas dos livros didáticos de matemática reservadas ao estudo da geometria. Além dessa maior presença nos manuais, os desenhos são também encontrados em cartazes publicitários, jogos, revistas infantis e em vários outros suportes da comunicação visual. Assim, por estar tão presente no mundo contemporâneo, o desenho está fortemente incorporado ao contexto cultural. Por essa razão as crianças têm, normalmente, um grande interesse por esse tipo de comunicação, mas, certamente o seu grau de domínio está em função também das diferenças de oportunidade de estímulos sociais. Crianças que desde muito cedo têm um maior estímulo com esse material certamente, terão mais facilidade em compreender o processo de representação dos conceitos geométricos por um desenho, no contexto escolar. O aspecto dessa temática que mais desperta o interesse de nosso estudo é utilização do recurso gráfico como suporte do processo de representação do conhecimento geométrico.
O desenho é também um recurso didático utilizado no transcorrer de quase toda aprendizagem escolar, sendo encontrado em diversas disciplinas do currículo escolar e não é uma exclusividade do ensino da matemática. Mas, com maior razão o desenho está mais próximo da geometria, onde desempenha uma função ainda mais preponderante do ponto de vista cognitivo. Se na maioria das disciplinas ele é usado para representar objetos materiais, em geometria seu uso é bem mais complexo por servir para ilustrar noções abstratas e gerais. Ora, essas noções existem apenas no plano das idéias e não podem ser apreendidas através dos nossos órgãos sensitivos. Por esta razão, lançamos mão desses recursos didáticos que auxiliam na elaboração das idéias, mas não podem, na realidade, substituí-las. É neste ponto que ocorre a gênese da sua função representativa, mudando sua função de representante de objetos materiais para representante de noções abstratas.
Partimos da concepção de que os conceitos e suas representações planas determinam dois aspectos fundamentais do conhecimento geométrico, sendo um de natureza teórica, caracterizado pela abstração e pela generalidade e o outro de natureza experimental, acessível à compreensão humana através da visão. Devido a esta dualidade, quase sempre interpretada como pólos inconciliáveis do saber matemático, torna-se inadequado, do ponto de vista pedagógico, estabelecer uma separação nítida e absoluta entre a representação em si e o processo de conceitualização. No mesmo nível dessa dualidade estão as correlações entre os objetos materiais, associados com freqüência aos sólidos geométricos e as imagens mentais, evidenciando também a relação entre a geometria e a realidade. Se por um lado a generalidade e a abstração têm sido os aspectos mais enfatizados no ensino da geometria, por outro, constata-se que esta aprendizagem recebe influências consideráveis tanto das imagens mentais, como dos desenhos, dos objetos materiais e da própria linguagem. Esses elementos constituem formas diferenciadas de representação do conhecimento geométrico e estabelecem pontos de partida para o que chamamos de relações epistemológicas, as quais esboçam o eixo condutor desse trabalho.
No transcorrer da aprendizagem o desenho passa então, de uma forma lenta e gradual, a representar as noções geométricas. Em decorrência dessa mudança de estatuto, sobretudo, em nível da escolaridade fundamental, é necessário especificar o sentido em que estamos entendendo o processo de representação. A rigor, se os conceitos ainda não estiverem relativamente estruturados, não faz sentido dizer que o desenho representa tais noções. É preciso portanto admitir a existência de um contínuo e permanente processo de evolução da função representativa do desenho. A medida que o indivíduo consegue aprimorar mais o seu nível de formalização conceitual cresce a justificativa dessa função representativa. Em outros termos, se o sujeito já tem incorporado um certo nível conceitual, logo pode lançar mão de um desenho como um dispositivo de representação plana desse conhecimento. Por outro lado, se não existe ainda um nível razoável na elaboração das idéias, não tem também o próprio objeto da representação. Num nível bem primário da aprendizagem pode ocorrer até mesmo uma identificação do conceito com a sua representação. É o caso, por exemplo, em que um simples traço no papel passaria a ser, indevidamente, a própria reta, ou ainda, no caso mais geral da geometria plana onde as figuras geométricas são, por um abuso de linguagem, identificadas aos próprios desenhos. Do ponto de vista pedagógico não podemos, num nível bem elementar, alimentar a esperança de tentar diferenciar para a criança, por exemplo, o desenho de um triângulo do próprio triângulo. Este tipo de correlação, embora sendo uma passagem obrigatória, somente pode ser elaborada através de um processo essencialmente dialético e evolutivo. Essas são algumas das razões que mostram o papel desempenhado pelas representações na aprendizagem da geometria.
Nas últimas décadas o ensino da geometria - e em particular o uso do desenho -passou por um bom período de esquecimento. A geometria mereceu um lugar bem obscuro no currículo escolar motivado principalmente pelo chamado movimento da matemática moderna. Esse movimento, que coincidiu aproximadamente com o período de influência do tecnicismo na educação brasileira, acabou determinando mudanças profundas tanto no processo de formação de professores, na redação dos livros didáticos e de uma maneira geral na valorização educativa do conteúdo matemático. Parece ser oportuno destacar que um dos poucos aspectos positivos do movimento da matemática moderna foi lançar uma situação tão caótica no ensino da matemática que, na realidade, veio a contribuir para a consolidação da Educação Matemática enquanto área de pesquisa.
A ênfase principal desse período foi dada mais aos aspectos estruturais do conhecimento tais como a teoria dos conjuntos, as propriedades algébricas e uma geometria mais "topológica". Uma análise dos livros didáticos dessa época mostra que a geometria euclidiana dedutiva foi quase totalmente esquecida ficando, muitas vezes, reduzida simplesmente à utilização do desenho das figuras geométricas e ao uso de algumas propriedades. Foi esta situação que certamente motivou o interesse pela realização de algumas pesquisas tais como Perez [1991 ] e Pavanelo [1993] mostrando que, no Brasil, nos últimos anos, houve um relativo abandono do ensino da geometria. Por outro lado, parece que a situação atual já pode ser considerada um pouco diferente. Se não podemos ainda falar de um ensino mais universalizado, já é possível destacar uma tentativa de revalorização desse conteúdo. É evidente que muitos trabalhos ainda estão restritos ao nível da pesquisa, mas se constituem como a teorização necessária para uma possível melhoria da realidade atual. Essa reação pode ser observada em alguns novos livros didáticos e programas curriculares que deixam transparecer uma retomada da geometria. É neste contexto que nasce também a necessidade de uma reflexão mais específica sobre a temática da representação plana.
Mas para que possamos melhor defender os valores educativos da geometria e justificar a sua presença no currículo de primeiro e segundo graus, é necessário que o seu ensino possa desenvolver no aluno um relativo domínio do espaço. Esse domínio possibilitaria uma certa habilidade de confrontação dos objetos reais com suas representações. Essa finalidade somente pode ser alcançada através de um trabalho didático que possibilite uma forte interação do aluno com uma diversidade de situações envolvendo as correlações que se estabelecem entre a realidade e os recursos representativos. Esse trabalho pedagógico deve sobretudo priorizar o contato com aquelas situações que envolvam algum tipo de representação em perspectiva. O que se espera é que essas situações permitam ao aluno confrontar, no plano racional, tais desenhos com os objetos representados e extrair dessa leitura as informações necessárias. A defesa dessa finalidade do ensino da geometria não pode excluir o aspecto demonstrativo que deve ser igualmente valorizado. Pois, um dos argumentos principais para justificar o ensino da geometria tem sido a afirmação de que tal conteúdo poderia servir como um modelo de ciência dedutiva. Sua aprendizagem possibilitaria o desenvolvimento de um raciocínio lógico e cultivaria o espírito científico. Na prática a realidade tem mostrado que esses objetivos nem sempre são alcançados de forma satisfatória e que, de um modo geral, há ainda um grande vazio pedagógico a ser trabalhado. Esse desafio é mais realçado quando passamos a considerar os problemas de formação da grande maioria de nossos professores de matemática. Uma compreensão melhor desse problema fica mais evidente quando confrontamos a prática pedagógica com o discurso do professor. É possível perceber que, de uma forma geral, há uma tentativa de valorização da geometria dedutiva, mas na realidade, esse discurso fica mais no plano das intenções (PAIS, 1999).
Considerações teóricas
O significado de uma representação plana para o aluno não é evidentemente o mesmo do contexto teórico em que ela pode ser definida. No plano cognitivo, a representação tem um grau de complexidade bem diferente da formalidade exigida pelo contexto científico. Com isso queremos destacar que, mesmo sendo possível definir precisamente uma projeção geométrica, no contexto da aprendizagem, as determinações epistemológicas têm um interesse didático mais preponderante. Essa é uma questão fundamental, pois de nada adiantaria defender uma formalização teórica do desenho em detrimento da necessidade que temos de conhecer o seu real significado para o aluno.
Essa é a mesma questão do significado dos conceitos científicos estudada por Vergnaud [1990] através de sua teoria dos campos conceituais. Trata-se de uma noção didática que visa a construção do significado do saber matemático para aluno. Com essa finalidade Vergnaud destaca que o conhecimento deve ser considerado em situações não muito delimitadas, mas ao contrário, deve ser compreendido pelo aluno em áreas bem amplas correspondente ao que ele chama de espaço de situações problemas. Essa é sem dúvida uma abordagem extremamente pertinente à Didática da Matemática por possibilitar uma melhor compreensão do problema do significado do conhecimento matemático. Astolfi [1990] descrevendo a importância dessa noção afirma que esta maneira de conceber os campos conceituais é de grande utilidade para o ensino das ciências experimentais. O contexto da evolução do conhecimento das ciências experimentais é diferente das características da matemática. Mas a necessidade de possibilitar ao aluno a descoberta de um significado é comum a todas as áreas do conhecimento. Vergnaud [1990] define a noção de conceito da seguinte forma: "Um conceito é uma tríade que envolve um conjunto de situações que dão sentido ao conceito; um conjunto de invariantes operatórios associados ao conceito e um conjunto de significantes que podem representar os conceitos e as situações que permitem aprendê-los."
Assim um conceito não se forma com um só tipo de situação da mesma forma que uma situação não se analisa com um só conceito. A busca desse significado não pode desconhecer a natureza dos desenhos que são amplamente utilizados no ensino da geometria. As representações planas de muitos conceitos são apresentadas nos livros didáticos através de certas figuras particulares que podem ser chamadas de configurações geométricas. Tais figuras têm uma importância diferenciada na aprendizagem da geometria e por este motivo devem ser melhor estudadas na didática da matemática. Uma configuração geométrica ou figura fundamental nada mais é do que um desenho que apresenta as seguintes características: ilustra um conceito ou uma propriedade importante; possui fortes condicionantes de equilíbrio e trata-se de um desenho que aparece freqüentemente num certo contexto científico. Uma configuração não é, portanto, um conceito geométrico, é, antes de tudo, uma noção didática que visa incrementar uma melhor compreensão do fenômeno da aprendizagem. Este tipo particular de desenho contribui para a formação de boas imagens mentais e assim possibilita um conhecimento mais operacional tanto na formação de conceitos como na resolução de problemas, permitindo uma manipulação de informações de uma forma mais eficiente.
As regras básicas do desenho geralmente não tem sido objeto do ensino da geometria a nível da educação fundamental. Em particular as questões mais precisas da representação em perspectiva igualmente não são tratadas de uma forma explícita. Os livros didáticos também não abordam questões referentes ao próprio traçado quer seja no que se refere a sua produção ou a sua leitura. A prática tradicional tem mostrado que esses aspectos devem ser apreendidos por uma forma empírica através do contato direto com as figuras. Por outro lado uma análise mais detalhada revela que há uma série de detalhes cujo significado não é nada evidente para o aluno. Essas regras não podem ser aprendidas simplesmente de uma forma espontânea.
A natureza experimental do conhecimento geométrico exige uma técnica mínima e um relativo domínio dos instrumentos de desenho tais como a régua, o compasso, o transferidor e o esquadro. Essa habilidade é de interesse essencialmente educacional e certamente ultrapassa os limites da escola. Não se trata de defender o ensino de um desenho técnico que estaria num outro nível de interesse. Estamos defendendo apenas o ensino de algumas regras básicas envolvendo a representação em perspectiva cavaleira. As questões didáticas em torno dessas regras são defendidas por Audibert G. [1990] mostrando a possibilidade de adotá-las no ensino fundamental.
As questões pedagógicas da representação também são abordadas por Parzyz [1988] que destaca as relações entre aquilo que é visto pelo aluno e o que consiste a essência do saber geométrico. Trata-se de uma abordagem epistemológica estabelecendo as relações ente o "ver" e o "saber". Esse estudo descreve o caracter representativo das figuras como um conhecimento acessível pela visão humana. É evidente que há um nível bem mais preciso do que a visão em que pode ser formalizado o saber científico enquanto conhecimento acumulado pelo homem; mas é, sobretudo, através da visão que nasce a semente desse conhecimento racional. Do ponto de vista didático o maior desafio está na transposição entre aquilo é simplesmente visto e o que deve vir a se transformar. Aquilo que é visto são as representações que estão impregnadas de um caracter subjetivo, enquanto que o objeto do verdadeiro conhecimento é o saber geométrico.
Alguns aspectos importantes das representações são também estudas por Baldy [1987] através da análise da leitura de desenhos em perspectiva cavaleira por adultos em cursos profissionalizantes na França. Seus trabalhos indicam a influência do fator cultural no procedimento dessas leituras, revelando que indivíduos imigrantes trabalhando naquele país, com baixo nível de escolaridade, mostraram grandes dificuldades na leitura das representações em perspectiva cavaleira. Uma de suas pesquisas consistiu em solicitar a tais sujeitos que associassem um certo número de objetos materiais – construídos a partir da colagem de alguns pequenos cubos de madeira - às suas respectivas representações.
Essas considerações mostram que a complexidade do fenômeno é ampla e certamente extrapola os limites da sala de aula. Suas raízes estariam portanto também vinculadas aos aspectos sociais, econômicos e culturais determinantes da realidade educacional. Acreditamos que esta questão está fortemente relacionada com o tipo de abordagem feita pela Etnomatemática entendida como é descrita no trabalho de D'Ambrósio [1990]. No caso das representações planas consideramos a análise da influência desses determinantes culturais que com certeza revelaria fatores de interesse didático para o ensino da geometria.
Uma análise mais detalhada das representações existentes nos livros didáticos revela que há uma série de regras, relativas à construção do próprio desenho, que permanecem implícitos ao contrato didático. Isto não ocorre somente nos livros e mesmo alguns professores declaram que nunca se preocuparam na explicitação de tais regras. Estes fatos nos levam a uma reflexão em torno da noção de contrato didático, devida a Brousseau [1986]. Esta noção sintetiza as relações constituídas pelo professor, aluno e conhecimento específico como sendo um sistema regido por um conjunto de regras implícitas ou explícitas que devem ser estudadas para um melhor domínio do processo de ensino-aprendizagem. As múltiplas relações existentes nesse processo podem ser estudadas à luz do conjunto dessas regras. O contrato didático se assemelha às regras de um contrato comum com a diferença de que no meio escolar as regras implícitas parece ser predominantes quando comparadas com as exigências explícitas.
O desconhecimento dessas regras, tanto por parte do professor como dos alunos, pode levar ao fracasso da aprendizagem. De um forma bem geral o professor planeja e executa as atividades que supostamente deveriam assegurar o êxito escolar. Compete também a ele verificar a ocorrência ou não da aprendizagem, e o seu redirecionamento quando se fizer necessário. No que se refere à problemática das representações o contrato didático[1] também acaba determinando um procedimento particular. A adoção de regras implícitas e o uso de desenhos incorretos do ponto de vista técnico, principalmente nos livros didáticos, comprometem o significado da aprendizagem.
As representações se constituem num suporte do raciocínio e devem pouco a pouco serem superadas no transcorrer da aprendizagem. Se o conhecimento geométrico ficar restrito ao seu aspecto visual ocorre o que podemos chamar de obstáculo epistemológico. Para a didática da matemática a noção de obstáculo epistemológico se constitui num suporte de fundamental importância. Bachelard [1989] observa que: "a passagem de um estado de espírito pré-científico a um estado de espírito científico passa pela rejeição do conhecimento usual e se choca a um certo número de obstáculos".
A análise desses obstáculos no caso específico da matemática tem que ser realizada com uma atenção também particular. A matemática, segundo as observações desse autor, conheceria períodos de paradas em sua evolução mais ela não conheceria períodos de erros. Dessa forma, somos motivados a estudar, na aprendizagem da geometria, certas situações em que o desenho teria a possibilidade de vir a funcionar como um desses obstáculos. Este é o caso quando, por exemplo, pode ocorrer na leitura de uma perspectiva quando o aluno pode fixar sua atenção somente sobre o conjunto gráfico e não consegue decodificar informações de natureza geométrica.
Representação plana feita pelo aluno
Na resolução de problemas envolvendo uma situação geométrica o aluno quase sempre faz um uso importante do desenho para desenvolver seu raciocínio. Toda a lógica de resolução está em estreita relação com o desenho. O aluno tem normalmente uma boa receptividade com relação ao desenho seja do ponto de vista da sua leitura ou da sua realização. Neste caso o significado destacado pelo procedimento do aluno mostra uma característica puramente experimental da representação plana.
Neste uso é possível distinguir três fases de valorização do desenho no transcorrer da aprendizagem. Num primeiro momento o aluno está fortemente preso ao próprio desenho, ele fixa sua atenção em aspectos bem particulares e a abstração ainda é bem embrionária. Numa segunda fase o aluno passa a usar determinadas situações geométricas onde o desenho pode estar inserido num contexto mais preciso. Quando é possível fazer variar essas situações, segundo a teoria dos campos conceituais, ocorre uma evolução na formalização das noções geométricas. Finalmente, numa terceira fase, que coincide com o final do segundo grau, o aluno passa a utilizar o desenho mais no sentido de um simples esboço. É o início da consolidação da abstração onde desenho atinge um nível mais aprimorado de sua função representativa.
Para representar um objeto em forma de um cubo ou de um paralelepípedo o aluno dá uma preferência especial à perspectiva cavaleira em relação à perspectiva linear. É evidente que em muitos casos trata-se apenas de uma tentativa de realização de uma perspectiva cavaleira. Mas, mesmo nesses casos, é possível perceber através a preservação do paralelismo contido no objeto. A justificativa por essa preferência deve ter suas raízes também vinculadas ao aspecto cultural. A preservação da posição paralela pode representar para o aluno uma situação de equilíbrio. Numa situação de pesquisa de solução de um problema, dizemos que o aluno atinge uma posição de equilíbrio se os resultados que ele conseguiu estruturar tem tendência a se estabilizar. Na prática, é possível constatar que para resolver problemas de geometria no espaço, o aluno quase sempre tem a necessidade de lançar mão de uma representação na qual as três dimensões sejam evidenciadas por meio de uma perspectiva. Entre a perspectiva linear e a cavaleira esta última é amplamente mais usada pelo aluno. Mas pelo fato de não haver uma correspondência biunívoca entre o desenho e o objeto representado o aluno pode mostrar muitas dificuldades em coordenar as relações entre esses dois níveis do conhecimento.
Em determinadas situações o desenho pode representar um obstáculo epistemológico. Este é o caso ilustrado pelo seguinte exemplo: mesmo tendo sob seus olhos um objeto em forma cilíndrica e a sua representação por uma perspectiva cavaleira, o aluno pode ter dificuldades para compreender que os círculos de base do cilindro são representados por elipses. Ao serem indagados sobre tal situação alguns alunos deixam transparecer uma grande insegurança. Fixando a atenção somente sobre a elipse o aluno não percebe que essa curva representa um círculo em perspectiva.
Elementos de Síntese
Na análise epistemológica da geometria do espaço é possível destacar três aspectos fundamentais do conhecimento geométrico: o intuitivo, o experimental e o teórico. A intuição é uma forma de conhecimento subjetivo sempre disponível no espírito das pessoas cuja explicitação não exige uma dedução racional. Um conhecimento baseado na intuição se caracteriza por uma funcionalidade imediata quando comparada com o raciocínio lógico. Os axiomas da geometria euclidiana, que são proposições primitivas evidentes por si mesmo, podem ser aceitos com base nesta forma de conhecimento. A todo rigor não se pode conceber um desses três aspectos totalmente isolado dos outros dois. É possível ainda estabelecer uma correlação do conhecimento experimental com as representações planas, que juntamente com os objetos materiais, funcionam como suportes à aprendizagem. A linguagem, o desenho, a imagem mental e os objetos materiais podem ser concebidos como formas de representação de conceitos, trazendo as imprecisões do processo representativo mostrando que não há como exprimir essa questão em termos precisos e definitivo.
Em síntese, a representação plana é um recurso importante ao processo de construção do conhecimento geométrico e funciona como um suporte ao raciocínio dedutivo. Sua natureza visual, juntamente com a intuição, contribuem na elaboração teórica. A visualização através das representações e dos objetos materiais levam a um uso cuidadoso dos materiais didáticos, pois em determinados casos, podem servir como obstáculos para a aprendizagem. Na prática pedagógica deve ser atribuído um uso correto das representações priorizando as configurações geométricas que desempenham um papel fundamental no processo de ensino-aprendizagem da geometria. O contrato didático, subjacente a essa prática, exige o uso de representações corretas e legíveis para o aluno. Finalmente, é necessário trabalhar com as regras básicas da representação do espaço pela perspectiva cavaleira. É importante destacar que tanto a Espistemologia com a História da Matemática se constituem em conhecimentos fundamentais e necessários à elaboração de um referencial para a consolidação teórica da Didática da Matemática
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