Fatoração Algébrica

Luiz Carlos Pais
Resumo: Este artigo descreve os resultados de uma pesquisa cujo objetivo é caracterizar aspectos relativos ao estudo da fatoração de expressões algébricas, a partir de uma análise de livros didáticos brasileiros, da sétima série do Ensino Fundamental, publicados nas duas últimas décadas. O referencial teórico fundamenta-se na abordagem antropológica em didática da matemática, proposta por Chevallard (2002) para estudar as diferentes formar de organizar o estudo. A noção de vulgata, proposta por Chervel (1990), é também utilizada para caracterizar como esses conteúdos algébricos têm sido preservados. Uma análise qualitativa foi realizada nas páginas reservadas ao estudo dos produtos notáveis e das técnicas de fatoração. Os resultados evidenciam que a fatoração pertence ao núcleo dos conteúdos preservados nos livros didáticos. Porém, o tratamento dado a esse conteúdo caracteriza-se por diferentes graus de formalização. Há uma tendência, revelada em alguns livros publicados mais recentemente, de reduzir a ênfase dada ao ensino explícito das técnicas e das explicações associadas a essas técnicas, conforme pode ser comprovado pela apresentação de um número cada vez mais reduzido dos casos de fatoração. A fatoração de expressões algébricas com um fator em comum em todos os seus termos é o único caso que aparece em todos os livros didáticos, ao passo que os casos de fatoração, envolvendo o cubo de uma expressão algébrica, aparecem quase que, somente nos livros mais antigos do período considerado na análise. Percebemos ainda uma tendência de diversificar a linguagem usada para o ensino da fatoração, usando simbologia algébrica, representações geométricas, números e ainda explicações fornecidas na língua materna.
Palavras-chave: Ensino da Álgebra. Fatoração. Produtos notáveis. Livros Didáticos. Praxeologia.
Considerações iniciais
Diferentes dificuldades de aprendizagem da álgebra elementar tem sido objeto de estudo de pesquisadores tanto no Brasil quanto em outros países. Nesse sentido, nos últimos anos, houve uma significativa expansão do número de trabalhos dedicados a esse assunto. A pesquisa relatada neste artigo faz parte dessa ampla temática de estudo e insere-se em um contexto mais amplo, no qual pesquisadores franceses e brasileiros têm atuado em parceria. Resultados sobre concepções em torno de equações do primeiro grau e sobre teoremas em ação envolvendo a fatoração de expressões algébricas podem ser encontrados, por exemplo, nos trabalhos de Bittar at all (2005), Nicaud at all (2005) e Croset (2005). O estudo diagnóstico de concepções tem como objetivo ajudar o aluno a superar concepções errôneas elaboradas por ele mesmo.
Uma vez identificadas essas dificuldades, para elaborar situações que permitam a construção do conhecimento, é necessário compreender a origem dessas concepções, o que pode ser visto, em parte, por meio da análise de livros didáticos adotados nas escolas. Por esse motivo, partimos do pressuposto que o livro didático se constitui em uma fonte de dados para analisar as organizações didáticas que conduzem à prática educativa da matemática. Usando a linguagem proposta por Chevallard (2002) falamos em termos das praxeologias implementadas pelo professor. E o livro didático está sendo considerado como uma das fontes indutoras das praxeologias docentes, no caso específico do ensino da fatoração e dos produtos notáveis no contexto cultural e educacional do Brasil.
O interesse em pesquisar o livro didático vem sendo resgatado nos últimos anos, no Brasil. Esse interesse decorre, em parte, da expansão das políticas públicas do Ministério da Educação, voltadas para a avaliação, compra e distribuição de livros didáticos para alunos da escola pública, através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Se o livro didático está presente entre os recursos usuais das disciplinas escolares, no contexto da Educação Matemática, ele exerce uma função mais diferenciada, por servir como referência do rigor, da formalidade e das demais características do saber matemático. Este é o quadro inicial da pesquisa relatada neste, a qual teve início a partir da seguinte questão: Quais são os principais elementos didáticos e conceituais relativos ao estudo dos produtos notáveis e da fatoração algébrica apresentados por livros didáticos brasileiros, em nível da sétima série do Ensino Fundamental, no transcorrer das últimas duas décadas?
Aspectos teóricos
Para abordar a questão acima definida, lançamos mão de noções definidas na teoria antropológica do didático, proposta por Chevallard (2002). Em particular, aplicamos as noções de organização didática e organização matemática para destacar como os produtos notáveis e a fatoração são apresentados nos livros. Como nosso interesse é usar dados de livros didáticos, cuja valorização toma corpo em uma linha cultural e histórica, fizemos opção em lançar mão das noções integradas de vulgata e de cultura escolar que são propostas por Chervel (1990) para estudar as disciplinas escolares. Assim sendo, dedicaremos os próximos parágrafos para fazer uma descrição sucinta dessas idéias.
Teoria antropológica do didático
Uma maneira de iniciar o estudo da teoria antropológica do didático é procurar entender o significado do termo didático. Segundo Chevallard (2002) o adjetivo didático é utilizado de forma associada ao substantivo estudo e ao verbo estudar. A raiz grega didaktikos refere-se ao que é próprio para instruir ou ao que é relativo ao ensino. Em suma, essa teoria tem como objeto de estudo a didática. Nessa linha teórica, encontramos a noção de praxeologia, representado por [T,τ,θ,Θ] que consiste de um conjunto composto de um tipo de tarefas, T, de técnicas, τ, que permitem diferentes formas de cumprir as tarefas; de tecnologias, θ, sendo estas entendidas como o discurso que justifica a validade de uma técnica e de teorias, Θ, que justificam as explicações fornecidas por uma tecnologia.
O pressuposto de base consiste em admitir que toda atividade humana realizada regularmente possa ser expressa em termos de uma organização praxeológica. O prefixo “práxis” significa prática e remete a um bloco prático-técnico, constituído ao menos por um tipo de tarefas e por pelo menos uma técnica. Enquanto que o sufixo logos significa razão, discurso racional, e remete ao bloco tecnológico-teórico. Em decorrência dessa definição, podemos deduzir que a teoria praxeológica tem a vantagem de destacar um aspecto essencial do ensino da matemática que é a necessidade do professor ter um domínio simultâneo, tanto dos aspectos teóricos como dos aspectos práticos dos conteúdos ensinados. Nos termos usados por Chevallard, podemos ainda dizer que “não existe práxis sem logos; não existe logos isento de implicações práticas”.
Daí, a importância de analisar as tarefas que predominam no ensino da matemática e suas articulações com a dimensão teórica do saber matemático. Como estamos engajados no grande desafio coletivo da formação docente, entendemos que o domínio das técnicas pelo professor tem uma conotação bem diferenciada, em relação às aplicações realizadas pelo aluno. Nesse sentido, a teoria proposta por Chevallard oferece um referencial abrangente no sentido de esclarecer dimensões importantes do ponto de vista da formação docente, sobretudo quanto às competências esperadas na prática de ensino. Assim, o professor deve exercer um domínio satisfatório quer seja na composição do bloco tecnológico-teórico ou no bloco prático-técnico, não admitindo separações entre esses dois blocos interligados. No contexto de nossa pesquisa, estamos delimitando nosso olhar para as técnicas de fatoração que aparecem nos livros didáticos, entendendo que restaria ainda um empreendimento significativo que seria analisar as tarefas que tais livros apresentam.
Organizações didáticas e praxeologias induzidas
A noção de organização didática é usada para analisar as diferentes maneiras de organizar o estudo da matemática. Como estamos engajados na grande tarefa de contribuir na formação dos professores de matemática, temos interesse em projetar essa noção no contexto escolar, pois, à princípio, é possível concebe-la no contexto social mais amplo das atividades humanas. Assim, é preciso lembrar que as referências culturais do currículo escolar fazem com que as organizações didáticas estejam fortemente associadas aos objetos matemáticos. Segundo nosso entendimento, trata-se de uma noção muito importante porque expressa uma parte essencial do trabalho docente no território vivo da sala de aula, sem reduzir a importância das referências conceituais e pedagógicas.
Essa noção é retomada por Bosch e Gascón (2001, p. 32), ao dizer que: “O princípio fundador da didática é valorizar não somente o que é transmitido, mas também as ferramentas com as quais se pretende realizar essa transmissão, mais ainda que as organizações de transmissão, isto é, as organizações didáticas”. Esses autores reforçam a integração existente entre a dimensão didática e conceitual, dizendo que as organizações didáticas “se configuram de maneira fortemente associada à estrutura do que é ensinado”. Assim sendo, as organizações didáticas dependem das organizações ensinadas, ou seja, das organizações matemáticas. Dessa maneira, ao pesquisar os produtos notáveis e a fatoração em livros didáticos, pretendemos estar atentos para essa articulação entre a dimensão didática e epistemológica, no caso mais localizado desse setor de estudo da álgebra em nível das séries finais do ensino fundamental.
No contexto da pesquisa aqui relatada, falamos em praxeologias induzidas pelos livros porque, em última instância, compete ao professor definir as organizações didáticas a serem implementadas em sala de aula. Isto não quer dizer que o professor tenha liberdade absoluta para criar métodos, recursos ou escolher conteúdos com base somente em sua consciência individual, ainda mais quando se trata dos sistemas apostilados cuja tendência é padronizar os passos metodológicos. Os limites das escolhas docentes estão delineados pelas indicações da cultura escolar. Isto não quer dizer que o professor deva aceitar tudo o que é imposto pela instituição escolar, nem tão pouco que ele deva se debater com a realidade na qual atua. Se, de um lado da questão está a instituição escolar, do outro, existe também uma outra instituição que pode ser denominada de corpo docente.
Chervel (1990) fala dessa verdadeira instituição que é o corpo docente, que convive com a instituição escolar, tem laços de fraternidade com ela, mas de forma alguma reproduz automaticamente o que é imposto em termos de prática pedagógica. Se por um lado idealizamos um professor, bem formado, com relativa independência intelectual, por outro, deve se ter também o bom senso na realização das escolhas dentro dos elementos culturais de uma vulgata, contra a qual o professor não pode bater de frente e nem entrar no barco da reprodução não refletida. Por esse motivo falamos em praxeologias induzidas ou apenas sugeridas pelo livro didático, das quais o professor pode lançar mão para definir finalmente a parte essencial de sua prática pedagógica.
Livro didático como fonte de pesquisa
A origem do ensino da Matemática no Brasil está fortemente associada à própria história dos livros didáticos. Esta é uma das conclusões dos estudos empreendidos por Valente (2003a), ao mostrar também a existência de uma relação de dependência entre o enfoque dado a um curso de Matemática e as características do livro adotado. Assim, consideramos ser um pressuposto plausível admitir que o livro didático exerça uma importância considerável nas atuais tendências da Educação Matemática. Mesmo que o enfoque dado ao nosso estudo não seja de natureza histórica, compete-nos estar sempre atentos a essas ligações entre as tendências do ensino da matemática e suas raízes históricas. Seguindo os traços de influência da Escola Nova, sobretudo, a partir da década de 1930, é provável que as atuais praxeologias implementadas pelos professores ainda conservam parte da vulgata daquela época. Ao estudar os produtos notáveis e a fatoração, pretendemos observar essas condições preservadas pela influência histórica. As práticas docentes são condicionadas, quando não determinadas, pelos conteúdos, estratégias, e recursos propostos pelos livros. Por esse motivo, a análise do livro didático de Matemática, a partir de uma visão antropológica, pode revelar, segundo nosso entendimento, aspectos metodológicos e culturais consideráveis. Por outro lado, nossa tarefa acadêmica na formação de professores que ensinam Matemática leva-nos a essa intenção de proporcionar condições para uma análise mais atenciosa para essa fonte de influência da transposição didática. As aplicações das técnicas algébricas relacionadas ao estudo da fatoração e dos produtos notáveis são indispensáveis para a resolução de equações.
Tendo em vista uma tendência em curso, que implica em alterações significativas no grau de formalização do estudo da Matemática, temos o interesse em analisar de que forma os livros didáticos vêm tratando do tema, se estão ou não priorizando o enfoque das tarefas propostas e das técnicas ensinadas. A justificativa para defender esse enfoque consiste simplesmente na expectativa de certo equilíbrio entre o que a cultura escolar da educação matemática tem exigido em termos dos exercícios, dos problemas, dos desafios e das ferramentas oferecidas ao aluno para realizar essas atividades. Ao estudar essa questão, temos também o interesse de olhar a componente da formalização que vem acompanhando as atuais propostas da Educação Matemática. Este não é um aspecto que diz respeito somente à fatoração, mas acreditamos que ele pode revelar um tema de estudo mais amplo, envolvendo todos os campos de conteúdos da Matemática escolar.
Noção de vulgata
A noção de vulgata é descrita por Chervel (1990) para caracterizar o que é comum no contexto cultural da prática de uma disciplina escolar, em um dado momento da história da educação, quer seja em termos de conteúdos, de exercícios, recursos usados para ensinar esses conteúdos e também dos valores que de certa maneira sustentam a presença dessa disciplina na educação escolar. A seqüência com que tais conteúdos aparecem no currículo ou a ênfase atribuída a um campo de conteúdos em uma determinada série também são elementos característicos de uma vulgata. Este é o caso, por exemplo, do início de maior formalização dos conceitos geométricos, em nível da sétima série do ensino fundamental.
Grosso modo, o professor não deve exercer sua prática pedagógica fora daquilo que é reconhecido como sendo a vulgata de sua disciplina. No caso da educação matemática, podemos exemplificar como um dos elementos da vulgata a presença do teorema de Pitágoras que aparece no currículo escolar há séculos. Também pertence à vulgata a valorização de certos exercícios tipos, problemas que aparecem em vários livros didáticos e em diversos concursos. Na pesquisa aqui relatada temos interesse de levantar informações referentes à vulgata contemporânea da matemática na parte específica do ensino da álgebra, tal como indicam os livros didáticos no estudo da fatoração.
Quanto aos recursos usados na educação matemática, agora, mais recentemente, podemos citar o caso do Tangram que aparece em vários livros e é utilizado por vários professores. Dessa maneira, a vulgata coloca em destaque um conjunto de conhecimentos e recursos em torno dos quais professores e alunos devem trabalhar. No caso da pesquisa relatada neste artigo, nosso interesse é destacar elementos característicos da vulgata da matemática no que diz respeito especificamente ao ensino da fatoração, no período das últimas duas décadas no contexto de uma coleção de livros didáticos brasileiros. Ao realizar esta pesquisa estamos também buscando identificar possíveis sinais de mudanças, quer seja na ênfase atribuída ao ensino das técnicas de fatoração quanto aos meios utilizados para ensiná-las. Por outro lado, entendemos que a noção de vulgata, no contexto da pesquisa aqui relatada, associa-se aos componentes da praxeologia, no sentido definido por Chevallard (2001), característica desse conteúdo matemático. Em outros termos, para caracterizar uma parte da atual vulgata do ensino da álgebra, em nível das séries finais do ensino fundamental, estamos entendendo que a descrição das técnicas praxeológicas podem revelar uma componente reveladora para a realização da nossa pesquisa.
Aspectos históricos
Não é de hoje que a fatoração pertence ao conjunto dos conteúdos algébricos ensinados em nível equivalente ao das séries finais do Ensino Fundamental. Podemos dizer que a fatoração pertence à vulgata, pelo menos, no que diz respeito a parte dos conteúdos. Para ilustrar essa afirmação, destacamos um sugestivo exemplo retirado do livro Elementos de Matemática do professor Jacomo Stávale, um verdadeiro “best-seller da educação matemática” das décadas de 1930 e de 1940. As razões que levaram este livro e outros do período a terem tiragens numericamente expressivas, bem como as querelas nas quais os autores desses livros estavam envolvidos, são analisadas por Valente (2003b). Destacamos concepções dessa época para indicar sinais de valorização do estudo da fatoração:
Sem dúvida alguma, a transformação de um polinômio em um produto ou, como dizemos abreviadamente, a fatoração algébrica é um dos assuntos de maior relevância para o curso de Álgebra. A fatoração algébrica é para a matemática, o que é a tabuada para o cálculo aritmético. Em álgebra fazemos, a todo instante, a transformação de uma expressão em outra equivalente, raramente operamos com essas mesmas expressões. Daí a minha constante preocupação, quer como professor, quer como autor, em desenvolver tanto quanto possível, embora de um modo elementar, este magnífico instrumento de trabalho que é para os estudantes de matemática, a transformação de polinômios em produtos. Seguindo esta orientação, inclui no presente compêndio, um estudo muito elementar sobre a divisão de um polinômio por outro. Precisamos desse ponto de apoio para apresentar, ente os casos simples de fatoração algébrica, a decomposição em fatores dos binômios a3 + b3 e a3 - b3. Com efeito, não me pareceu didático dizer apenas aos estudantes que a3 + b3 = (a + b).(a2 – ab + b2) e a3 - b3 = (a - b).(a2 + ab + b2) sem lhes ensinar, ao mesmo tempo, o meio mais simples e racional para verificar essas igualdades. (Prefácio da 9ª edição do livro de Jacomo Stávale, de 1946)
Essa valorização da fatoração ainda não está presente em alguns livros publicados no transcorrer das últimas duas décadas, no Brasil? Ao falar da importância da fatoração para o “curso de Álgebra”, Stávale deixa claro que a proposta da criação da disciplina de Matemática, liderada por Euclides Roxo, tentando integrar os campos de conteúdos da Matemática, ainda não tinha sido incorporada. Essa visão prevalece na organização didática do referido livro. Passadas oito décadas, temos interesse em observar como está sendo tratada a articulação entre álgebra, geometria e números. Quais são as características da fatoração nos livros de Matemática? Como esses livros tratam as relações entre a fatoração e dos produtos notáveis? Esses são temas tratados de maneira integrada ou separadamente?
Análise de livros didáticos
Objetivo da pesquisa aqui descrita é explicitar traços de algumas tendências atuais dos livros didáticos, a partir da identificação de aspectos referentes ao estudo da fatoração e dos produtos notáveis. Foram analisados 12 livros didáticos brasileiros destinados à 7ª série do ensino fundamental, publicados entre 1986 e 2002 e identificados pelo anexo I desse artigo. A escolha desses livros foi conduzida por dois critérios. Alguns estão entre os preferidos por professores de matemática, conforme constatamos por ocasião de cursos de capacitação ministrados na região onde atuamos. Outros livros dessa coleção, publicados mais recentemente, aparecem entre os aprovados pelo PNLD. Em cada livro, analisamos as páginas referentes aos produtos notáveis e à fatoração. De início, fizemos uma leitura atenciosa de cada livro e procedemos a um recorte mais pontual para identificar as técnicas apresentadas. A análise das tarefas referentes ao tema não foi ainda realizada, mas será objeto de nossa atenção na continuidade da pesquisa. Na descrição que segue todas as afirmações estão restritas aos livros didáticos que foram objeto de nossa análise.
Produtos notáveis nos livros didáticos
Quanto à presença dos produtos notáveis nos livros didáticos constatamos uma ausência, quase absoluta, de articulação desse conteúdo com a fatoração. Os três principais casos de produtos notáveis abordados pelos livros são: quadrado da soma, quadrado da diferença e o produto da soma pela diferença. Alguns livros articulam os produtos notáveis com o cálculo de áreas. De modo geral, os livros representam os produtos notáveis por meio de símbolos algébricos, expressões escritas na língua materna, figuras geométricas ou por expressões numéricas. A representação algébrica é sensivelmente priorizada em relação às demais. Esses aspectos são descritos com mais detalhes nos próximos parágrafos.
Quase não há articulação entre produtos notáveis e fatoração
Para analisar a presença dos produtos notáveis nos livros didáticos verificamos, de início, se esse conteúdo tem sido apresentado de forma separada do estudo da fatoração ou se existe alguma articulação direta entre esses dois conceitos. Se olharmos para os aspectos mais amplos do saber matemático, sabemos que os produtos notáveis ou a fatoração são instrumentos poderosos para operacionalizar técnicas de resolução de equações. Mas, por vezes, percebemos que a potencialidade desses dois conteúdos acaba sendo diluída em alguns livros e os mesmos passam a figurarem como objetos de estudo. Quanto a esse aspecto, podem ocorrer certas inversões didáticas, no sentido definido por Chevallard (1994). De instrumentos úteis para resolver equações, a fatoração e os produtos notáveis podem ser reduzidos a objetos de estudo relativamente isolados.
Por esse motivo, visamos compreender como ocorrem as articulações entre produtos notáveis e fatoração e na realização de futuros trabalhos pretendemos analisar como o estudo da fatoração encontra-se articulado com o estudo das equações. Conduzidos por essa intenção, constatamos que 9 entre os 12 livros apresentam um parágrafo ou um capítulo separado para o estudo dos produtos notáveis. Salvo pequenas referências à fatoração, normalmente, os produtos notáveis encontram-se apresentados como um conteúdo independente. Apenas 3 livros (7.1; 7.8 e 7.11) não optam por essa forma separada de apresentar os produtos notáveis. Há uma mudança do enfoque dado ao estudo desses temas porque, até mesmo, não é dada muita ênfase à própria expressão produtos notáveis. O livro 7.1 se destaca dos demais publicados no transcorrer da década de 1986 a 1995 pelo fato de ser o único desse período que não apresenta um destaque diferenciado para o estudo dos produtos notáveis, mas tem o cuidado de apresentar exemplos de aplicações geométricas desse conteúdo. Os outros dois livros (7.8 e 7.11) são concebidos a partir de uma ótica de valorização da resolução de problemas, o que talvez já sinalize as razões dessa mudança, onde os conteúdos passam a ser aplicados em diferentes situações-problema, entretanto, sem reduzir a valorização da dimensão matemática dos conteúdos.
Em outros termos, quando os produtos notáveis são apresentados, a tendência é que essa apresentação seja feita de maneira isolada da fatoração. Nesse caso, há sinais de duas posições extremas: ou se faz um tratamento formal e separado dos produtos notáveis ou praticamente se retira o conteúdo do ensino da álgebra. Como estamos falando em termos de aspectos culturais da disciplina de matemática, no contexto das duas últimas décadas da educação brasileira, essa conclusão fornece apenas um dos traços da tendência da vulgata contemporânea. Entretanto, tendo em vista a proximidade do momento vivenciado por nós mesmos, é preciso persistir na busca de mais informações para entender esse fenômeno. Nesse sentido, podemos indagar: não estamos vivendo uma tendência de redução racional na formalização mínima do ensino da matemática? Após um período de predomínio forte da formalização não estaríamos entrando em um período de redução exagerada da formalidade no ensino das técnicas relativas ao estudo dos produtos notáveis?
Casos de produtos notáveis e possíveis aplicações
Quanto aos casos de produtos notáveis identificamos uma predominância quase absoluta do quadrado da soma; do quadrado da diferença e do produto da soma pela diferença. Em casos extremos de fragmentação do saber, alguns livros ao concluírem, por exemplo, que (a + b).(a – b) = a2 - b2, pelo desenvolvimento das operações algébricas, não aproveitam a oportunidade para mencionar o significado do conceito de fatoração através da mesma expressão algébrica. Ao proceder dessa maneira, a fatoração é concebida como um conteúdo isolado dos produtos e notáveis e certamente essa mesma concepção prevalecerá do estudo da fatoração em relação às equações. Quando os livros fazem alguma aplicação dos produtos notáveis, trata-se de associá-los ao conceito de área de retângulos cujas medidas são termos de uma expressão algébrica.
A preocupação em destacar esse tipo de aplicação não ocorre em todos os livros. Ao identificar traços de mudanças na vulgata das últimas décadas, percebemos uma tendência dos livros valorizarem mais essa articulação dos produtos notáveis com o cálculo de áreas. Trata-se de uma diversificação da linguagem, representando os produtos notáveis tanto com figuras geométricas e com símbolos algébricos. Da mesma forma, essa mudança sinaliza também para a tentativa de expandir as articulações internas aos campos de conteúdos da matemática. Essa constatação exemplifica o que Chevallard (2002) chama de praxeologias canônicas como aquelas extensivamente adotadas no contexto de uma instituição. Em função das referências institucionais, o professor atua nos limites dessas práticas canônicas. No caso dos produtos notáveis, os livros indicam para os professores os traços culturais a serem seguidos. Portanto, para não provocar maiores transtornos, o professor deve tratar, pelo menos, dos três casos de produtos notáveis, acima destacados.
Explicações sobre o significado da expressão “produtos notáveis”
Os livros fornecem explicações sobre o significado da expressão produtos notáveis? Nosso interesse em observar o tratamento dado pelos livros a essa questão, deve-se ao princípio pedagógico de sempre tentar expandir as condições de estudo a partir da compreensão dos próprios termos e expressões empregados na redação das tarefas e das técnicas. Quando não ocorre essa compreensão inicial, corre-se o risco de nenhuma técnica ter mais sentido para o aluno. Novamente, estamos diante de um aspecto onde duas posições extremas podem aparecer: dar extrema atenção aos aspectos formais da linguagem ou não fornecer nenhuma explicação sobre o significado dos termos mais simples, sobretudo, daqueles com os quais começamos o estudo de um novo tema.
Com essa finalidade, constatamos que a maioria dos livros fornece explicações quanto ao significado da expressão produtos notáveis. Por exemplo, o livro 7.2 apresenta a seguinte explicação: “Há certos produtos que ocorrem freqüentemente no cálculo algébrico e que são chamados produtos notáveis; vamos apresentar aqueles cujo emprego é mais freqüente. (p. 68)”. Por outro lado, neste livro não há nenhuma representação geométrica nas 20 páginas dedicadas ao tema, prevalecendo somente a linguagem algébrica e pouquíssimas frases curtas em língua materna. Outro exemplo de explicações fornecidas sobre o significado dos produtos notáveis é dado pelo livro 7.5: “Existem certos produtos que aparecem com bastante freqüência no cálculo algébrico, sendo chamados produtos notáveis. Tais produtos poderão ser calculados usando-se a propriedade distributiva ou então de forma mais simples, através de regras especiais. Estudaremos a seguir os principais produtos notáveis. (livro 7.5, p. 47).” Ainda quanto às explicações sobre a expressão, temos o caso do livro 7.7 (p. 50) que destaca o seguinte significado: “alguns produtos surgem com tanta freqüência nas ciências em geral que os matemáticos os chamam de produtos notáveis, e vale a pena reconhecê-los de imediato.”.
Diferentes representações dos produtos notáveis
Nos livros analisados identificamos quatro tipos de representação concernentes aos produtos notáveis: língua materna, figura geométrica, expressão algébrica e expressão numérica. Na representação na língua materna destacam-se frases do tipo “o quadrado da soma de dois números é igual ao quadrado do primeiro mais duas vezes o primeiro pelo segundo mais o quadrado do segundo”. Quase sempre esse destaque é feito por meio de letras coloridas, diferenciadas das outras letras do texto. A representação dos produtos notáveis por meio de expressões algébricas aparece com maior freqüência, mostrando uma tentativa de preservar as características do campo ao qual pertence esse tema. As representações por meio de figuras geométricas e de expressões numéricas são menos freqüentes. O livro 7.7, entre as páginas 50 e 52, fornece um exemplo do que podemos chamar de diversificação de representações, pois apresenta os quatro tipos acima descritos. O livro 7.12 (p. 123), ao iniciar o estudo dos produtos notáveis, apresenta o seguinte texto: “Analisaremos agora algumas igualdades envolvendo produtos de polinômios, que por sua larga utilização recebem o nome de produtos notáveis. A área do quadrado Q abaixo pode ser calculada de várias maneiras, vejamos duas (5 + 3) 2 = 52 +2(5.3) + 32”. Após apresentar esse texto, o livro reproduz, na mesma página, uma motivação geométrica, envolvendo o cálculo da área de um quadrado.
Aspectos conceituais
Os livros didáticos mostram a existência de três maneiras de apresentar o conceito de fatoração, as quais são aqui denominadas de: casos de fatoração, tratamento numérico e transformação em produtos. Um mesmo livro didático pode apresentar, simultaneamente, mais de uma dessas três maneiras de organizar o estudo da fatoração ou priorizar um deles. Na continuidade, veremos os detalhes de cada um desses três casos.
Apresentação do conceito por meio dos casos de fatoração
Estamos considerando que um livro didático organiza o estudo da fatoração por meio da apresentação de casos de fatoração, quando lança mão de alguns exemplos para explicar o que significa fatorar uma expressão algébrica. Essa maneira de “definir” ou de apresentar um conceito está presente nos livros didáticos atuais, mas tem suas origens no contexto cultural mais amplo do ensino da matemática. Uma análise dessa questão é feita por Toranzos (1963), um autor que estava engajado em compreender os desafios do ensino da matemática nos meados do século XX, no bojo das transformações motivadas pelo movimento da Escola Nova. O uso dessa estratégia justifica-se pela dificuldade ou talvez pela inconveniência de formalizar, em excesso, o estudo de um conceito, logo no início de sua apresentação. Daí a opção de mostrar alguns “exemplos” da nova idéia. Um exemplo de uso dessa estratégia é dado pelo livro 7.1, publicado há duas décadas, que apresenta o seguinte texto relativo à existência de um fator comum na expressão algébrica.
Vamos observar o polinômio ax + ay + az. Notamos que ele é formado por três termos, ax, ay e az, que apresentam o termo a como fator comum. Em casos como esse, podemos aplicar a propriedade distributiva da multiplicação em relação à adição: ax + ay + az = a(x + y + z). O produto a(x + y + z) chama-se forma fatorada do polinômio ax + ay + az. Na forma fatorada, o fator comum a foi colocado em evidência. (livro 7.1, p. 56)
Este é um tratamento didático que revela também maior atenção com os aspectos formais do domínio algébrico, lançando mão da articulação com outros aspectos conceituais como é o caso da propriedade distributiva da multiplicação em relação à adição. Da mesma forma essa apresentação mostra certo cuidado com a própria linguagem. Outro livro que também aborda o estudo da fatoração dessa mesma maneira apresenta o seguinte texto:
Vamos supor uma questão diferente: encontre uma multiplicação que tenha como resultado a expressão 2x2 + 2xy. A pergunta não é difícil. Observe bem a expressão 2x.x + 2x.y. As duas parcelas tem um fator comum que é 2x. (esta última frase é dita por personagem de história em quadrinhos). Dessa observação, descobrimos que 2x2 + 2xy pode resultar desta multiplicação: 2x(x + y). É só distribuir a multiplicação que voltamos à expressão 2x2 + 2xy. Assim, decompusemos em fatores a expressão 2x2 + 2xy. Ou, em outras palavras, efetuamos uma fatoração. (livro 7.8 p. 157)
Ao finalizar o estudo dessa maneira de apresentar o conceito de fatoração, compete-nos indagar em que sentido o cuidado com a linguagem passaria a ser um excesso? Quais são os limites de em uma abordagem formalista do estudo da matemática? Tais questões podem ser respondidas sem considerar as referências culturais da instituição onde o estudo está sendo realizado? Nosso interesse em tratar dessa questão reside no fato de perceber uma tendência atual de reduzir a dimensão formal do conhecimento matemático escolar.
Articulação entre fatoração algébrica e fatoração numérica
O livro didático apresenta o estudo da fatoração algébrica, fazendo uma articulação direta com a fatoração numérica quando relembra para o aluno casos de decomposição de um número natural como produto de outros fatores. Em particular, pode ser enfatizada a decomposição de um número em fatores primos. Trata-se de uma estratégia encontrada em cerca da metade dos livros analisados. O que diferencia um livro do outro, quanto a esse aspecto, são certas variações que mostramos com os exemplos descritos a seguir.
Um problema que apresenta interesse no cálculo algébrico é o da decomposição em fatores, problema análogo ao da decomposição de um número natural em fatores primos. O processo de decomposição em fatores é também denominado fatoração. (livro 7.3 p. 63)
Após fornecer essa explicação, o livro apresenta alguns exemplos de decomposição numérica. Entretanto, do ponto de vista praxeológico, é importante observar que existe uma continuidade desse tratamento numérico, quando o livro busca ampliar as bases de estudo do conceito em questão. Para isso, o livro também destaca que fatorar uma expressão algébrica é o mesmo que decompor em fatores ou transformar essa expressão em produto. Assim, podemos identificar certo cuidado com os aspectos conceituais, pois existem textos que fornecem detalhes da idéia estudada, ao contrário de outros que reduzem, em excesso, a própria parte textual do assunto escrito em língua materna. Não se trata de diminuir a importância dos símbolos algébricos, mas sim ampliar as articulações dessa linguagem com outras representações que sejam significativas para o aluno. Para exemplificar a presença dessas explicações em língua materna, transcrevemos do mesmo livro o seguinte parágrafo:
Para fatorar um polinômio é preciso descobrir quais fatores devem ser multiplicados de modo que o resultado seja o polinômio dado. A forma fatorada é o produto indicado desses fatores. Estudaremos a seguir alguns casos (modelos) de fatoração de polinômios. Os polinômios que se enquadram em cada modelo são fatorados empregando a técnica própria do caso. (livro 7.3 p. 63)
Esse tratamento conceitual, considerado por nós como sendo mais refinado, não aparece com freqüência em todos os livros. Sem recair nos extremos de valorizar uma visão nostálgica do ensino da matemática ou de fazer uma crítica apressada quanto às suas tendências atuais, recolocamos aqui a questão, já destaca acima, referente ao grau de formalização mínima que podemos esperar na condução do estudo da matemática escolar. Outro livro didático que também faz um tratamento numérico para fundamentar o estudo do conceito de fatoração algébrica apresenta o seguinte texto:
Considerando o número 90. Vamos utilizar a multiplicação para escrever esse número de várias maneiras: 90 = 2.45; 90 = 3.30; 90 = 5.18; 90 = 6.15; 90 = 9.10; 90 = 2.32.5. Quando escrevemos o número 90 na forma 2.45 ou 3.30 ou 5.18 ou 6.15 ou 9.10, nós o transformamos em uma multiplicação de dois fatores. Quando escrevemos o número 90 na forma 2.32.5, nós o transformarmos em uma multiplicação onde os fatores são números primos. Em qualquer dos casos, fizemos a fatoração do número 90. (livro 7.4, p. 73)
Este livro observa que a fatoração está associada à existência de uma multiplicação de dois ou mais fatores, colocando as seguintes questões: Será que podemos fatorar um polinômio? Em que situação podemos fazê-la? Outras explicações complementam a sua proposta: “Para fatorar um polinômio, devemos conhecer técnicas que se baseiam em multiplicações...” O fato de destacar a necessidade de conhecer as técnicas de fatoração justifica a importância de considerar diferentes praxeologias locais. Dessa maneira, percebemos também uma preocupação do livro em explicitar ligações entre o tratamento numérico e o algébrico. O livro 7.10 também atua nessa mesma linha, pois, ao iniciar o estudo da fatoração relembra a decomposição dos números 12, 15 e 25 em fatores primos, apresentando, a seguir, o seguinte texto:
Você já estudou fatoração de números. Lembre-se: fatorar um número natural equivale a decompô-lo em produto indicado de fatores. A idéia da fatoração será estendida para as expressões algébricas. Assim, fatorar um polinômio equivale a decompô-lo num produto indicado de polinômios. (livro 7.10, p. 184)
Da mesma forma como acontece nos exemplos acima, o livro 7.10 fornece outras explicações para complementar os aspectos conceituais da fatoração. Lançando mão de diferentes linguagens, sem reduzir a importância do aspecto matemático. Nesse sentido, o livro contempla uma diversificação de enfoques relacionados ao tema. A partir dessa diversificação, ficam expandidas as condições de elaboração do conceito. Outro aspecto que merece destaque é o fato deste livro estabelecer articulações entre o desenvolvimento de um produto algébrico e o conceito de fatoração, como mostra o texto:
Quando multiplicados o monômio 2x pelo binômio 3a + b, obtemos o binômio 6ax + 2bx. Veja: como 6ax + 2bx é o desenvolvimento do produto 2x(3a + b), ele pode ser decomposto em um produto indicado de polinômios. 6ax + 2bx = 2x.(3a + b) Dizemos que 2x.(3a + b) é a forma fatorada de 6ax + 2bx. (7.10, p. 184)
Esse mesmo enfoque, articulando o desenvolvimento de um produto algébrico com a fatoração é repetido com outros exemplos, mostrando a forma fatorada de polinômios. Esse estudo prepara a apresentação de uma página dedicada ao estudo das técnicas de fatoração, cujo título é como fatorar, lembrando para o aluno que em certos casos há várias técnicas para fatorar uma expressão algébrica. No quadro da abordagem antropológica do didático, ao fazer variar as técnicas e os tipos de tarefas, como faz o livro 7.10, podemos falar em termos de praxeologias locais, no contexto das quais, Chevallard recomenda que o aluno seja avaliado, pois ele deverá escolher as técnicas mais apropriadas para resolver as tarefas. Ao contrário, quando se trata de praxeologias pontuais, não existe escolha alguma, pois se trata de um conjunto de tarefas associadas a uma única técnica.
Fatorar é transformar uma expressão algébrica em produtos
Alguns livros didáticos, ao iniciarem o estudo da fatoração, destacam a idéia de que fatorar uma expressão algébrica é transformá-la em um produto de outras expressões mais simples. Se esta maneira de apresentar a fatoração estiver articulada com os outros dois casos acima analisados, entendemos que se tratar de um importante reforço para ampliar as bases de elaboração do conceito. Entretanto, entendemos que as sutilezas didáticas dessas diferentes dimensões pertinentes ao estudo inicial da álgebra são mais perceptíveis quando analisamos os exemplos dos livros. Trata-se de uma estratégia encontrada no texto: O que significa fatorar? Fatorar significa transformar em produto. Fatorar um polinômio significa transformar esse polinômio num produto indicado de polinômios ou de monômios e polinômios. (livro 7.2, p. 79)
Este livro exemplifica uma opção didática que consiste em valorizar quase somente a dimensão conceitual. Não há quase nenhuma diversificação de linguagem e enfoque e dado é mais para as propriedades estruturais da própria matemática. Por esse motivo, observa para o aluno que a propriedade distributiva será muito usada para de colocar em evidência certas partes da expressão. Nessa mesma linha de atuação que consiste em destacar a idéia da transformação de uma expressão em produtos estão os livros 7.5:
Fatorar uma expressão algébrica significa escrevê-la na forma de um produto de expressões mais simples. Estudaremos alguns processos, usados para fatorar uma expressão algébrica, denominados casos de fatoração. (livro 7.5 p.57)
Para finalizar este parágrafo, destacamos o enfoque dado pelo livro 7.6, considerado por nós, como sendo um livro no qual prevalece uma abordagem de natureza mais formal, publicado em 1996, porém muito bem organizado do ponto de vista didático e matemático. É possível identificar nesse livro os três enfoques tratados por nós: casos de fatoração, tratamento numérico e transformação em produtos, conforme mostra o seguinte texto:
Fatorar significa transformar em fatores. Observe a forma fatorada de alguns números: 6 = 2.3; 8 = 23; 20 = 22.5. Podemos também fatorar expressões algébricas. Veja: x2 + 4x + 4 pode ser fatorado em (x + 2).(x + 2). Dizemos que (x + 2).(x + 2) ou, ainda, (x + 2)2 é a forma fatorada de x2 + 4x + 4. Vamos, a seguir, estudar os principais casos de fatoração de expressões algébricas, que são: fator comum, agrupamento, trinômio quadrado perfeito; trinômio do 2º grau do tipo x2 + Sx + P; diferença de dois quadrados. (livro 7.6 pp 66-67) De modo geral, não há nos livros didáticos analisados observações explícitas quanto ao fato de observar quando uma expressão algébrica ainda pode continuar sendo fatorada ou não. Também é possível notar uma ausência considerável de articulações desse conteúdo como a resolução de equações.
Técnicas de fatoração
Os principais elementos de uma praxeologia (tarefas, técnicas, tecnologias e teorias) podem ser interligados uns aos outros, embora isto nem sempre seja percebido pelo aluno. Entretanto, o professor de matemática tem ou deveria ter um domínio diferenciado em relação aos fundamentos conceituais e didáticos dos conteúdos trabalhados. Em outros termos, para resolver uma tarefa matemática, no contexto escolar, é preciso ter, no mínimo, um relativo domínio do bloco prático-técnico, enquanto que para o professor torna-se necessário ter também um domínio do bloco tecnológico-teórico. Por esse motivo, no contexto deste artigo, estamos dando uma prioridade inicial ao estudo das técnicas de fatoração, embora reconheçamos a necessidade de ampliar nossas análises no sentido de abranger as demais componentes das praxeologias induzidas pelos livros didáticos. Assim, a primeira questão respondida foi a seguinte: quais são as técnicas de fatoração que se encontram presentes nos livros didáticos analisados?
Os livros apresentam nove técnicas de fatoração
Nos livros analisados identificamos nove técnicas de fatoração: cubo da soma de dois números reais, cubo da diferença de dois números reais, diferença do cubo de dois números reais, soma do cubo de dois números reais, fator comum, agrupamento, diferença de dois quadrados, trinômio quadrado perfeito, trinômio do tipo x2 + Sx + P, onde S e P são, respectivamente, a soma de dois números reais a e b, tais que (x – a).(a – b). Por se tratar de técnicas cujo sentido é objetivado no contexto do saber matemático, consideramos desnecessário definir cada uma delas, pois isto pode ser obtido nos próprios livros.
Extremos: muita técnica ou pouca técnica.
Nenhum dos livros aborda todas as nove técnicas de fatoração acima mencionadas e existem outros que apresentam apenas uma única técnica. Esta é uma diferença significativa, tendo em vista se tratar de mudança brusca na valorização do estudo dessas técnicas. Há livros que apresentam 6 ou 7 técnicas de fatoração, mas, quase sempre, são livros publicados há mais de dez anos. Com essa mudança no estudo das técnicas é importante verificar a natureza das tarefas que têm sido propostas para que possamos ter uma visão mais ampla das praxeologias induzidas. Entretanto, analisando algumas listas de exercícios apresentas logo a seguir ao ensino das técnicas, percebemos que, quase sempre, tais tarefas podem ser consideradas uma aplicação direta ou quase direta das técnicas. Em particular, no que se refere aos casos de fatoração envolvendo o cubo de uma expressão, em função do nosso interesse de análise, é possível identificar que as quatro primeiras das nove técnicas acima relacionadas aparecem quase que somente nos livros publicados no período anterior ao ano de 1995. O que mostra que o ensino explícito desses casos de fatoração não tem, de maneira geral, sido objeto de estudo nos livros publicados mais recentemente. Essa é uma mudança significativa na vulgata contemporânea tendo em visa que os livros analisados foram publicados, no máximo, há duas décadas.
Técnicas mais freqüentes de fatoração
Após verificar quantas técnicas os livros apresentam, procuramos saber com que freqüência as mesmas aparecem. A técnica no qual existe, explicitamente, um fator comum em todos os termos da expressão é a única que se encontra presente em todos os livros. Em casos extremos essa presença ocorre de maneira implícita nas tarefas, não havendo um estudo formal da mesma. A segunda técnica mais freqüente é a do agrupamento, mas existem livros que não tratam desse caso. Assim, procuramos identificar os argumentos que justificam essa diferença importante. O livro 7.8 apresenta apenas o caso do fator comum. Acrescentando-se a esse fato, a não existência de um tratamento formal dos produtos notáveis, procuramos as razões dessa opção, recorrendo ao manual do professor, que apresenta os seguintes argumentos:
Tratamos do caso de fatoração em que põe o fator comum em evidência. A fatoração algébrica é importante e deve ser trabalhada. No entanto, no ensino tradicional, ela é exageradamente enfatizada (vários casos, muitos exercícios) e freqüentemente, não é usada. Os alunos não percebem qual é seu sentido. Para torná-la significativa, desenvolvemos aqui um único caso de fatoração, aplicando-o, de imediato nos exercícios. No volume da 8ª série, outros casos serão apresentados. Vale a pena repetir: os diversos casos de fatoração e os produtos notáveis resultam, simplesmente, da aplicação da propriedade distributiva da multiplicação em relação à adição. Ela permite escrever na forma de produto uma escrita aditiva e vice-versa. Sempre que conveniente, desperte os alunos para esses aspectos. (Manual do Professor do Livro 7.8, página 39).
Os autores cumprem o prometido porque no livro da 8ª série há um capítulo, (pp 243–254) dedicado ao tema. São fornecidas ainda explicações quanto ao valor dos produtos notáveis: “A vantagem de conhecer alguns produtos notáveis não está só na habilidade de achar de imediato o resultado de multiplicações. Sabendo os produtos notáveis, você pode fatorar expressões algébricas” (p. 244 do livro da 8ª série) O livro 7.8 não destaca um parágrafo especial para estudar os produtos notáveis, mas essa noção aparece no capítulo 7, denominado Cálculo Algébrico. Para isso, apresenta o seguinte texto:
Vamos ver mais cálculos efetuados com expressões algébricas. Serão apresentadas algumas regras que nos permitem operar com as expressões sem grande preocupação com o que elas possam representar. Assim, estaremos estendendo os cálculos que fazemos com números para esses novos elementos que são as expressões algébricas. Começamos com multiplicações e divisões. (pp 139-168)
Quanto ao tratamento dado às técnicas este livro apresenta a seguinte posição: “as técnicas são justificadas da maneira mais natural possível, sem que se abandone a correção, como já se viu antes...” (p. 38 do Manual do Professor do livro da 7ª.série) Como estamos interessados em estudar as praxeologias induzidas pelos livros didáticos, consideramos que a concepção manifestada neste livro, quanto ao papel das técnicas, sinaliza um importante tema para continuar nossas pesquisas: qual é o devido papel da técnicas no ensino da matemática e qual o enfoque a ser priorizado pelo professor? É possível definir esses parâmetros sem levar em conta as referências institucionais?
Elementos de síntese
Há diferenças significativas nos livros quanto ao número de técnicas de fatoração e quanto ao grau de formalização com que as mesmas são tratadas. Dois pontos extremos aparecem com relativa clareza. Alguns livros apresentam várias técnicas, enquanto em outros reduzem significativamente esse número e também a formalidade com que as mesmas aparecem. Os livros que dão menor ênfase na explicitação das técnicas adotam a resolução de problemas como a estratégia de ensino. Nesse sentido, as técnicas de fatoração podem estar presentes apenas de maneira implícita, na parte referente à resolução de problemas. Alguns livros, ao descreverem técnicas de fatoração destacam o fato que pode ocorrer a composição de técnicas, o que certamente representa uma maior complexidade para a aprendizagem. Nesse caso, para aplicar uma técnica, o aluno deverá já ter dominado uma ou mais técnicas, sem o que fica inviabilizada a resolução de várias tarefas. Nosso interesse é ampliar o estudo desses casos em que uma ou mais técnicas são associadas para dar origem a uma técnica de maior grau de complexidade. Estaria neste aspecto uma parte das dificuldades de aprendizagem da matemática? Visando continuar o estudo do tema abordado neste artigo e das atuais tendências do ensino da álgebra, indagamos em que sentido estaríamos vivendo um momento de redução excessiva da formalização no ensino da matemática escolar? Certamente, não temos respostar para pronta essa questão, mas, pelo menos, a mesma serve de motivação para continuar nossas pesquisas nessa direção.
Referências bibliográficas
BITTAR, M.; CHAACHOUA, H. ; NICAUD, J-F. . Determinação automática de concepções de alunos em álgebra. Série-estudos, Campo Grande, p. 77-90, 2005.
NICAUD, J-F.; CHAACHOUA, H.; BITTAR, M. BOUHINEAU, D.. Students modelling with a lattice of conceptions in the domain of linear equations and inequations. In: Proceeding of the 12th International Conference on Artificial Intelligence in Education, Amsterdam, 2005.
STÁVALE, J. Elementos de Matemática. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1946
VALENTE, W. A disciplina Matemática: etapas históricas de um saber escolar no Brasil. In OLIVEIRA, M. e RANZI, S. (org.) História das Disciplinas Escolares no Brasil: contribuições para o debate. Bragança Paulista: EDUSF, 2003a.
VALENTE, W. R. Controvérsias sobre educação matemática no Brasil: Malba Tahan versus Jacomo Stávale. Cadernos de Pesquisa, n. 120, pp 151-167 São Paulo: 2003b.

ANEXO I – IDENTIFICAÇÃO DOS LIVROS DIDÁTICOS
CÓDIDO AUTOR EDITORA ANO
7.1 Fernando Trotta Scipione 1986
7.2 Álvaro Andrini Brasil 1989
7.3 Gelson Iezzi, Oswaldo Dolce, Antônio Machado Atual 1991
7.4 José Ruy Giovanni, Benedito Castrucci e Giovanni Jr. FTD 1992
7.5 Edwaldo Bianchini Moderna 1993
7.6 Scipione Di Pierro Netto Scipione 1995
7.7 Oscar Guelli Ática 1997
7.8 Luiz Márcio Imenes e Marcelo Lellis Scipione 1999
7.9 José Jakubo, Marcelo Lellis e Marília Centurión Scipione 1999
7.10 Antônio José Lopes Bigode FDT 2000
7.11 Célia Carolino Pires, Edda Curi, Ruy Pietropaolo Atual 2001
7.12 José Ruy Giovanni e Eduardo Parente FTD 2002