Geometria em Livros Didáticos
Luiz Carlos Pais
Luiz Carlos Pais
Resumo: Esse artigo descreve os resultados de uma pesquisa cujo objetivo é caracterizar tendências atuais sinalizadas pelos livros didáticos de matemática, quanto às metodologias de ensino da geometria. Os dados foram obtidos de doze coleções de livros de 5ª à 8ª série do Ensino Fundamental, publicados nas duas últimas décadas, no Brasil. O referencial teórico fundamenta-se na teoria da transposição didática, proposta por Chevallard (1991) e na idéia de disciplina escolar, proposta por Chervel (1990). Uma análise fenomenológica foi realizada nas páginas reservadas ao estudo de aspectos mais conceituais da geometria. Os resultados evidenciam a existência de um núcleo de conceitos preservados em quase todos os livros. A partir dessa identificação, foi constatada uma tendência crescente de diversificação dos recursos pedagógicos sugeridos entre os livros. Os livros publicados mais recentemente destacam-se pela proposição de estratégias de ensino diferenciadas, o que implica na indicação de diferentes recursos didáticos. A pesquisa revelou ainda um aumento significativo das articulações adotadas para contextualizar os conteúdos geométricos, destacando uma expansão do uso de recursos visuais por meio de desenhos, esquemas gráficos e fotos de objetos associados aos conceitos. Estaríamos vivenciando uma tendência de padronização nas práticas pedagógicas postuladas pela Educação Matemática?
Palavras-chave: Didática da Matemática. Livros Didáticos de Matemática. Metodologia de Ensino da Geometria.
Considerações iniciais
O livro didático é um dos recursos quase sempre presente no ensino da matemática, onde funciona como uma forte referência para a validação do saber escolar. Quer seja por parte de alunos ou de professores, se constitui em uma importante fonte de informações para a elaboração de um tipo específico de conhecimento, onde generalidade e abstração assumem um estatuto diferenciado em relação às outras disciplinas escolares. Chervel (1991), ao estudar o conceito de cultura escolar, essencialmente ligado à idéia de disciplina escolar, observa essa particularidade da matemática em relação aos outros saberes escolares. Considerando a especificidade de cada área de conhecimento presente na educação escolar, percebemos os diferentes estatutos que o livro didático pode assumir na condução do trabalho pedagógico. Por esse motivo, estamos interessados em indagar pelas características do livro didático de matemática, procurando entender suas implicações nas tendências atuais da Educação Matemática.
O livro didático é uma fonte de dados para a pesquisa cujo interesse vem sendo resgatado nos últimos anos. Em parte, esse interesse deve-se à expansão das políticas públicas para a análise, compra e distribuição de livros na rede pública, através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Um dos objetivos desse programa é oferecer informações para servir de apoio ao processo de ensino e aprendizagem. Essa avaliação vem sendo realizada desde o ano de 1996 e serve de referência para a aquisição e distribuição do material às escolas públicas. Essa análise está sendo realizada em parceria com universidades públicas e certamente tem sido conduzida por parâmetros indicados pelas áreas educacionais relacionadas às disciplinas escolares. A cada três anos, tem sido lançado um edital para que as editoras apresentem suas obras a fim de pleitear a aquisição pelo Ministério da Educação. Esse edital define as regras para inscrição e apresenta os critérios pelos quais os livros serão avaliados. Nesse sentido, é interessante estudar a correlação entre essas regras e os rumos assumidos pela pedagogia atual, no que se refere aos conteúdos e das metodologias sugeridas. Ao final de cada processo de avaliação é publicado o Guia de Livros Didáticos, contendo os princípios norteadores da análise, bem como os critérios de cada área e ainda as resenhas das obras aprovadas. Esse guia serve de instrumento para auxiliar os professores na escolha dos livros a adotados. As resenhas oferecem informações pedagógicas e revelam o que está sendo entendido como ideal para conduzir a prática escolar. Além do mais, esta é uma análise procura integrar os pressupostos gerais da educação escolar com as especificidades de cada área, o que sempre foi uma dos desafios para os professores.
No caso de nossa pesquisa, a atenção volta-se para livros publicados nas duas últimas décadas com o objetivo de explicitar tendências atuais do ensino da geometria a partir de uma análise de estratégias propostas. A motivação para sua realização está associada à intenção de compreender parte das influências da transposição didática da educação matemática, entre as quais incluímos os livros didáticos. A delimitação em torno da geometria justifica-se em face da continuidade de outros trabalhos já realizados sobre temas correlacionados, tendo em vista alguns sinais atuais de revalorização do ensino desse conteúdo. Por outro lado, esta opção é também uma tentativa de contribuir na revalorização da geometria que passou por um período recente de abandono no Brasil, conforme esclarece o trabalho de Pavanelo (1993). Motivados pelo quadro delineado nesse contexto, definimos a seguinte questão para orientar a pesquisa: quais são as tendências atuais do ensino da geometria, no que diz respeito às orientações pedagógicas indicadas pelos livros didáticos de matemática?
Referencial teórico
O interesse em pesquisar o livro didático vem aumentando no transcorrer dos últimos anos, o que pode ser comprovado pelo aumento do número de publicações dedicadas a esse tema. Após ter sido foco da atenção para denunciar as ideologias contidas em suas páginas, tal como o trabalho de Faria (1986), a partir da década de 1990 é possível identificar um grande número de trabalhos dedicados ao livro didático. A esse propósito, destacam-se os resultados obtidos por Batista e Rojo (2005), ao concluírem que no período de 1975 a 2003 foram identificados nada menos que 1927 trabalhos dedicados ao livro didático, utilizando como fonte de dados a Plataforma Lattes do CNPq. Entre esses trabalhos, os autores incluíram títulos referentes à produção e divulgação de iniciação científica, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Os autores dessa pesquisa mostram ainda que a partir de 1990 houve um aumento considerável no volume da produção de trabalhos dedicados ao livro didático, destacando que apenas o período de 2000 a 2003 é responsável pela metade da produção. Dessa maneira, fica evidenciada a existência de um volume considerável de pesquisas, realizadas recentemente, sobre livros didáticos no Brasil. Ao que tudo indica, pelo menos dois fatores contribuíram para a expansão do atual interesse em pesquisar o livro didático. Um deles foi a expansão da pós-graduação e do número de pesquisas em áreas mais específicas da educação, tal como é o caso da Educação Matemática, e também a implementação mais intensa de políticas públicas voltadas para a avaliação da educação, entre as quais o PNLD.
O sistema adotado pelo PNLD para analisar os livros didáticos, a partir de regras definidas pelos próprios pesquisadores das diferentes áreas do saber escolar e avalizadas pelo poder público, tem de certa força influenciado não somente na formação de professores, mas também na redefinição das estratégias de ensino e conseqüentemente nas orientações pedagógicas. Em outros termos, partimos do pressuposto que a adoção de tais políticas tem o poder de circular do espaço mais amplo dos parâmetros curriculares até ao território mais singular da sala de aula. A rigor, admitindo que compete ao professor a competência para definir suas opções metodológicas, podemos falar que o livro didático não determina, mas contribui na indução de estratégias de ensino. Muitas vezes, as orientações contidas no livro didático são reproduzidas em sala de aula. Por outro lado, percebemos o poder de influência exercido pelo livro didático na definição das atividades realizadas em sala de aula.
Nossa atuação como professor de Didática e de Prática de Ensino de Matemática, durantes vários anos, permitiu-nos verificar, no plano empírico, a grande força exercida pelo livro didático de matemática na maneira de conduzir a aula. Por certo, a maturidade profissional permite ao professor maior liberdade intelectual para diversificar suas estratégias de ensino. Nessa pesquisa que pretendemos caracterizar orientações pedagógicas específicas para o ensino de geometria a partir da análise de livros didáticos. Para isso visamos identificar um núcleo comum de conceitos apresentados nos livros didáticos e a partir dessa identificação, analisar elementos que definem as estratégias propostas para dinamizar o processo de ensino e de aprendizagem.
A identificação dos conteúdos comuns aos livros didáticos fornece uma visão preliminar da parte conceitual que tem sido preservada na história da Educação Matemática. Tendo apresentado uma visão geral dos conceitos, passamos a identificar os recursos associados a essas noções, tais como as definições apresentadas, as representações, notações, propriedades e deduções, uma vez que tais elementos podem ser objetivamente classificados em função do significado que assumem no contexto do saber matemático. Em paralelo, nossa intenção é levantar criações didáticas sendo esta expressão entendida como uma noção desenvolvida no contexto da teoria da transposição didática, a partir da proposta de Chevallard (1991).
A escolha do período de duas décadas para delimitar a pesquisa ocorreu em função da implantação da avaliação do PNLD, nos meados da década de 1990, o que poderia servir como mais uma fonte de influência na composição da transposição didática. Por sua longa trajetória na história da educação e mais particularmente na constituição da idéia de disciplina escolar, tal como desenvolve Chervel (1990), o livro didático revela uma parte considerável dos saberes com os quais os agentes da educação estão diretamente envolvidos. Isso acontece em relação a todas as disciplinas e dentro de cada área de conhecimento o manual escolar assume suas próprias características. No caso da educação matemática, em decorrência da influência recebida de suas raízes positivistas, conjeturamos que a estabilidade do texto didático assume um papel ainda mais preponderante em vista de seus aspectos formais. Em outros termos, para explicitar a objetividade e a generalidade previstas na constituição do saber matemático, valoriza-se a publicação de um texto que possa servir de referência na condução do ensino.
Trata-se, por exemplo, em explicitar definições, propriedades, representações, teoremas, demonstrações e problemas que, conjuntamente, expressam o raciocínio lógico típico dessa disciplina. Seguindo esta linha de raciocínio, uma noção que revela uma analogia com a textualização oficial do saber escolar é o conceito de vulgata, proposto por Chervel (1990) para estudar a constituição histórica de uma disciplina escolar. Uma vulgata representa o que existe de comum, em um dado momento histórico, em relação a uma disciplina escolar, sendo formada por conteúdos, objetivos, métodos e problemas que predominam como os elementos que devem ser utilizados pelo professor. Uma parte da vulgata aparece nos livros didáticos de uma determinada época, fazendo com que os mesmos tenham algo em comum ou que, de certa forma, sejam muito semelhantes uns com os outros. Valente (2002), tratando desse conceito proposto por Chervel, analisa como os livros didáticos de matemática entenderam e traduziram para a prática pedagógica as indicações propostas pela chamada Reforma Francisco Campos, buscando uma maneira de estabelecer sinais do aparecimento de uma nova vulgata para o ensino de matemática no Brasil, na década de 1930.
No caso da pesquisa aqui focalizada pretendemos descrever alguns sinais da vulgata contemporânea, no que diz respeito mais particularmente ao ensino da geometria. Tendo em vista a proximidade do período temporal do qual estamos tratando, não temos a pretensão de estabelecer uma analise de cunho histórico, mas apenas levantar alguns elementos que deverão ser somados a vários outros para explicitar o esboço de um fato histórico. A escolha de conteúdos, objetivos, métodos e recursos usados na educação escolar resultam das fontes de influência que atuam na composição do currículo e no movimento da transposição didática, conforme definição proposta por Chevallard (1991). No contexto mais amplo, tais elementos encontram-se registrados em relatórios, teses, softwares, parâmetros, programas e em outras publicações, entre as quais os livros didáticos. São registros publicados para defender a validade do saber a ser ensinado e da forma como eles são conduzidos pelos professores. Entre os diversos registros textuais do saber, existentes no contexto cultural da escola, nós escolhemos o livro didático para servir como fonte primária de dados da pesquisa aqui relatada.
Um dos argumentos para a defesa dessa escolha consiste no fato da forte influência que esse recurso normalmente exerce na prática de ensino, como fonte de referência e de validação do saber a ser ensinado. Quais são as principais características do ensino de geometria que aparecem nos livros didáticos contemporâneos de matemática? Em que sentido essas características resultam da influência dos atuais parâmetros curriculares e de outras fontes oficiais da educação escolar no Brasil? Tendo em foco essas questões, nós realizamos uma análise das diretrizes do Programa Nacional do Livro Didático e destacamos, em paralelo, um conjunto de unidades de significado que aparecem nos livros didáticos de matemática. Nosso interesse em estudar essas referências deve-se ao pressuposto de que tais diretrizes expressam uma consciência e uma intencionalidade didática de uma comunidade de pesquisadores, representativa de um dado momento evolutivo da área de educação matemática.
A textualização do saber escolar é um processo de preparação por que passam os conteúdos a ensinados no contexto de uma disciplina escolar, o qual recebe forte influência de uma tradição cultural. No caso de nossa pesquisa, este processo constitui-se pelas fontes de influência que determinam a forma final do livro didático, não querendo dizer com isto que esse tipo de livro seja o único veículo de expressão da textualização. Outros tipos de publicações, tais como os livros para-didáticos, os programas, apostilas, exames participam desse texto oficial do saber. A realização desse processo de textualização ocorre sob o controle de certas regras que visam a estruturação de uma forma didática e toda proposta educativa formal pressupõe necessariamente a existência de tal preparação. Entre essas regras que estruturam a textualização do saber podemos destacar, a partir da análise de Chevallard (1991): a desincretização, que consiste na exigência de proceder a uma divisão da teoria em várias áreas e em especialidades bem delimitadas; a despersonalização, que consiste na exigência da separação do saber do contexto pessoal; a programabilidade, que consiste no estabelecimento de uma programação da aprendizagem segundo uma seqüência progressiva e racional; a publicidade que é a definição explícita do saber que deverá ser ensinado.
Aspectos metodológicos
A pesquisa aqui relatada foi realizada através de uma abordagem fenomenológica, no sentido descrito por Bicudo e Espósito (1994), a partir da análise, da interpretação e da busca das essências contidas nos discursos contidos nos livros didáticos de matemática. Focalizamos esse discurso a partir da materialidade contida nas páginas dos livros, na totalidade de seu texto, incluindo figuras, fotos e outros recursos gráficos presentes na linguagem adotada. Embora os sujeitos desses discursos estejam explicitados nos anexos da pesquisa, entendemos não se tratar, na sua grande parte, de manifestações individuais dos profissionais que trabalham na educação matemática. Estamos supondo que algumas das escolhas feitas pelos autores acontecem em função de um fluxo de orientações pedagógicas, muitas delas publicadas explicitamente pela comunidade de educadores matemáticos. Em outros termos, não se trata de analisar as tendências do ensino da matemática com base na subjetividade de grupo de autores.
Nosso interesse é, sobretudo, caracterizar o que existe em comum nessas publicações e em que sentido tais orientações representam uma tendência patrocinada pela própria área de Educação Matemática. Essa maneira de conduzir a pesquisa educacional foi ampliada por nós, no sentido de incluirmos a categoria da multiplicidade na interpretação da atual tendência das práticas pedagógicas da educação matemática. Ao considerar a idéia da multiplicidade na leitura da prática pedagógica, pretendemos considerar a diversidade de dimensões ou de aspectos contidos nos atos integrados de ensinar e aprender. Essa defesa da presença interligada da unicidade e da multiplicidade se constitui em um dos princípios cultivados nessa linha metodológica.
No caso da educação matemática, onde a preservação da dimensão conceitual tem sido considerada uma necessidade, essa articulação entre unicidade e multiplicidade aparece com mais intensidade no tratamento dos próprios conceitos, sendo estes entendidos como idéias únicas e inconfundíveis com as demais noções matemáticas. Por outro lado, associada a essa unicidade contida no conceito matemático tem uma multiplicidade de casos particulares representados pelos exemplos, os quais são tão valorizados na prática de ensino da matemática. Assim sendo, a interpretação do material obtido nos livros didáticos foi analisado também com essa categoria da multiplicidade.
Os dados primários da pesquisa foram obtidos de 12 (doze) coleções de livros didáticos de 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental, publicados no Brasil, no período de 1985 a 2002, a qual pode ser identificada no anexo I desse artigo. No que diz respeito mais especificamente às estratégias de ensino da geometria, a pesquisa foi realizada nos livros em nível de 7ª e 8ª séries, onde este conteúdo concentra-se por força de uma tradição histórica, embora, algumas alterações podem ser identificadas nos livros mais recentes. Desses livros foram selecionadas as páginas dedicadas ao estudo da geometria, principalmente aquelas nas quais estão apresentadas definições ou a apresentação inicial do assunto. Em outros termos, na diversidade de páginas, nossa análise foi concentrada mais nos aspectos conceituais. A partir de uma análise detalhada, extraímos um conjunto de unidades de significado. No contexto de nossa opção metodológica, uma unidade de significado é uma frase, um pequeno texto, um desenho, uma representação ou uma ilustração que pode traduzir alguma informação em relação à questão levantada na realização do trabalho: quais são as tendências do ensino da geometria, no que diz respeito às orientações pedagógicas indicadas pelos livros didáticos de matemática? Em seguida, as unidades de significado foram analisadas, classificadas e submetidas a um processo de redução fenomenológica, pelo qual destacamos as idéias centrais, em torno da questão diretora da pesquisa. Ao identificar a existência de aspectos convergentes nas estratégias adotadas nos livros didáticos, obtivemos confluências temáticas, as quais foram analisadas a partir das idéias propostas por Chervel (1990) e Chevallard (1993) no que se refere à caracterização dos conteúdos de apoio ao ensino da geometria.
Análise de livros didáticos
Nos livros analisados identificamos um grande número de unidades, cujo significado relaciona-se com o objeto da pesquisa. Para procurar uma primeira convergência, procuramos dividi-las em dois grupos. No primeiro, incluímos unidades que têm o significado objetivado no contexto matemático, as quais foram denominadas de unidades matemáticas. Essas unidades foram classificadas em uma das seguintes confluências: axiomas, definições, exemplos, representações, propriedades, teoremas, demonstrações, problemas e exercícios. Essa denominação das unidades matemáticas justifica-se pelo fato das expressões em si mesmo já traduzem o aspecto objetivo presente usualmente no ensino da matemática. Por outro lado, no segundo grupo incluímos unidades cujo significado não têm a mesma objetividade contida no saber matemática e decorre de opções feitas pelos autores dos livros didáticos, as quais foram por nós denominadas de unidades pedagógicas, podendo ser classificadas em uma das seguintes confluências: vocabulário, notação, conhecimento prévio do aluno, procedimentos experimentais, aspectos históricos, articulação da geometria com outras disciplinas, articulação interna à matemática, contextualização do saber, tecnologia, construções geométricas e leitura de texto. Assim, a partir da definição desses dois grupos de unidades, recolocamos nossa intenção de pesquisa: quais são as unidades presentes nos livros didáticos e que se referem a uma orientação pedagógica para o ensino da geometria?
Um conjunto estável de conteúdos da geometria
Uma análise atenciosa do sumário de cada livro permitiu identificar a existência de um conjunto estável de conteúdos geométricos que figuram em quase todos os livros didáticos publicados no transcorrer das duas últimas décadas. Esta preservação dos conteúdos pode ser entendida como uma das referências mais estáveis da área Educação Matemática. Se por um lado existe uma diversificação de estratégias e de recursos, por outro, preserva-se uma certa unicidade curricular, cuja defesa parecer ser um dos redutos mais fortes da Educação Matemática. Por esse motivo acreditamos que a interpretação entre os laços conflituosos da unicidade e da multiplicidade, tal como defende o pensamento fenomenológico, sinaliza uma das alternativas plausíveis para melhor compreender as tendências contemporâneas nessa área educacional.
Esses conteúdos são os seguintes: ponto, reta e plano, semi-reta, segmento de reta, poligonais e polígonos, ângulos, retas perpendiculares e paralelas, triângulos, congruência, pontos notáveis de um triângulo, quadriláteros, circunferência e círculo, semelhança, teorema de Tales, de Pitágoras, relações métricas e trigonométricas, perímetros, áreas e volumes, polígonos regulares, comprimento da circunferência. De forma genérica esses conteúdos aparecem em quase todos os livros didáticos analisados. A diferença constatada está na forma pedagógica com que os mesmos são abordados pelos autores. A existência desse núcleo de conteúdos é uma das características da textualização do saber escolar, entendido como uma explicitação de paradigmas avalizados no contexto da transposição didática.
Por outro lado, é possível perceber os primeiros sinais de alteração na vulgata do ensino atual da matemática. Esta constatação revela que entre os três elementos escolhidos para orientar nosso objeto (conteúdos, estratégias e recursos) os conceitos matemáticos exercer uma espécie de hegemonia, ditada pela objetividade característica dessa disciplina escolar. Mesmo que às vezes, em certos livros, não haja uma abordagem formal de tais conceitos, os mesmos aparecem como eixo diretor na condução das estratégias de ensino por meio da resolução de problemas, por exemplo. Além do mais, a seqüência na qual tais conteúdos estão distribuídos ao longo das quatro séries finais do Ensino Fundamental obedece, quase sempre, a ordem acima apresentada. Como nosso interesse é propor uma primeira descrição da vulgata contemporânea do Ensino de Geometria, pensamos que o destaque desses aspectos contribui, pelo menos, com duas das condições propostas por Chervel (1990), para caracterizar o que existe de comum no texto hegemônico de uma dada disciplina escolar.
Tendo em vista essa referência teórica não é nossa intenção destacar o que certos livros trazem de maneira isolada. A esse propósito cumpre-nos exemplificar que alguns livros, principalmente aqueles publicados no final da década de 1980 e início da década de 1990, trazem um estudo de detalhado de curvas (curvas simples, curvas não-simples, curvas fechadas e curvas abertas), mas a grande maioria dos que os sucedem não trazem mais esse conteúdo, portanto, tal assunto não participa da tendência contemporânea do livro didático de matemática. Por outro lado, em livros didáticos mais recentes é possível encontrar páginas dedicadas ao estudo da Geometria das Transformações (reflexão, translação, rotação,...), mas isso acontece em um número muito reduzido deles, mostrando que tal estudo ainda não se encontra inserido da vulgata atual do Ensino da Geometria.
Localização da geometria no livro didático
Os conteúdos da geometria devem estar localizados em um único capítulo ou articulados com os demais campos de conteúdos? Por certo, esta é uma questão que diferencia os livros didáticos. Assim, indagamos a cerca dessa localização com a finalidade de verificar eventuais alterações, fazendo um mapeamento do local onde se localiza a geometria, quer seja no transcorrer das quatro últimas séries do Ensino Fundamental ou no conjunto de páginas do livro de cada uma dessas séries. Esse tipo de análise permitiu identificar quatro classes de livros. A primeira é formada somente por livros que apresentam a geometria na última quarta parte do livro, os quais são publicados de 1985 a 1995. Levando em consideração que a seqüência de apresentação dos conteúdos é uma das características da vulgata, fica evidenciada uma tendência de mudança, pois nos livros mais recentes essa localização passa a ser alterada. Entretanto, resta-nos investigar, com mais atenção, qual é o efetivo significado dessa alteração, pois a questão pedagógica não se reduz a uma localização física das páginas do livro. Uma segunda classe de livros apresenta o estudo da geometria na primeira parte do livro.
De modo geral, verifica-se apenas uma alteração da localização das páginas, mas os conceitos usuais e a forma pedagógica são ainda preservados. Assim sendo, resta-nos estar atento ao efetivo significado dessa alteração imediata da localização das páginas. Em seguida, destacamos uma terceira categorização de livros que, de forma geral, localizam a geometria na primeira e na segunda metade do livro. Tem-se a impressão que esses livros pretendiam buscar um equilíbrio entre os dois primeiros grupos. Finalmente, identificamos um quarto grupo de livros, nos quais a geometria encontra-se diluída ao longo de todos os capítulos. Com exceção dos livros do primeiro grupo todos os outros foram publicados no transcorrer da última década, o que sinaliza, pelo menos, uma tendência de quebrar a idéia de que a geometria está sempre localizada nas últimas páginas. Entretanto, essa mudança não garante, por si mesma, alterações significativas no sentido de valorizar a contextualização, a vivência do aluno ou as articulações previstas para o ensino da matemática, tal como sinalizam as atuais fontes de influência da transposição didática.
Uma nova visão de aprendizagem?
Os livros mais tradicionais apresentam, no sumário, os conceitos, enumerando uma lista com termos e expressões com significados objetivos no contexto do saber matemático. Em seguida, nas páginas reservadas para o estudo de tais conceitos, permanecem nessa linha de explicitação de termos matemáticos. Tais livros consistem na quase totalidade daqueles publicados na década de 1985 a 1995. Por outro lado, entre os livros publicados na última década, nem sempre é preservada essa forma de sumário, pois surgem expressões do tipo: curvas maravilhosas, resolvendo exercícios, alisando figuras e construções, sabedoria da natureza, ente outras. São expressões que revelam uma tendência de mudança na própria concepção do fenômeno da aprendizagem, pois procurando articular o saber matemático com outras referências, além de intencionar uma visão mais dinâmica da aprendizagem. A princípio, podemos até pensar que o nome do capítulo, tal como aparece no sumário do livro, não tem muita importância. Mas, analisando as páginas internas do livro, percebemos uma tendência de mudança na concepção do ensino e da aprendizagem. Outro elemento que sinaliza fortemente essa tendência consiste no fato de aparecer nos livros mais recentes o uso freqüente de verbos no gerúndio, tais como: estudando geometria, construindo figuras, resolvendo problemas, entendendo a definição e assim por diante. Tudo leva crer que o uso do gerúndio pretende dar um sentido mais dinâmico à aprendizagem. Do ponto de vista teórico, interpretamos essa visão no sentido de dar maior dinamismo às atividades de ensino e de aprendizagem, revelando que a aprendizagem não é um fenômeno estático. A unicidade conceitual contida em uma idéia matemática passa a ser tratada com a diversidade de olhares, tal como esse aspecto de tratar a aprendizagem como um fenômeno dotado de movimento.
Diversificação das estratégias
A análise das unidades extraídas dos livros, relacionadas aos conteúdos e aos aspectos didáticos, permitiu-nos constatar a existência de uma tendência de diversificação das estratégias de ensino apresentadas para orientar o ensino e a aprendizagem da geometria. Assim, somos levados a indagar se tal diversificação atinge outros campos de conteúdos da matemática ou ainda outros níveis de escolaridade que não foram objeto da nossa pesquisa. Para comprovar essa diversificação, definimos uma tipologia das estratégias de ensino, sem com isso pretender fazer uma classificação absoluta, pois nem todos os casos cabem nos limites de um modelo teórico. Com a finalidade de analisar estratégias de ensino escolhemos dois temas para observar os elementos utilizados em sua apresentação e destacar a seqüência na qual eles aparecem no livro. Os conteúdos foram soma dos ângulos internos de um triângulo e ângulos opostos pelo vértice.
Ao analisar os conteúdos, selecionamos os seguintes elementos: definição, consideração de um conceito genérico, representação gráfica, dedução lógica (demonstração), enunciado de uma proposição, colocação de exercícios, proposição de um problema e sugestão de um procedimento experimental. Este último caso trata-se da sugestão do uso de um transferidor, da observação de casos particulares, da realização de um recorte ou de uma dobradura de papel para verificar, intuitivamente, o valor da soma dos ângulos internos de um triângulo. De maneira geral, são esses elementos que aparecem na exposição dos conteúdos acima mencionados, as diferenças existentes entre os livros é, sobretudo, a seqüência com que aparecem nos livros. Para trabalhar os conteúdos acima mencionados, quase todos os livros da sétima ou oitava série, apresentam, pelo menos uma representação gráfica, uma seqüência lógico dedutiva e o enunciado da respectiva proposição. Em cada livro, além desses elementos, aparecem outros que completam a estratégia induzida pelo autor. Seguindo este caminho, identificamos três tipos de estratégias que descrevemosd, no caso da soma dos ângulos internos de um triângulo.
Estratégia Lógico-dedutiva
O texto apresentado pelo livro considera um triângulo qualquer e sua representação gráfica, descrevendo uma seqüência lógico-dedutiva baseada no axioma da paralela – por um ponto fora de uma reta passa uma única reta paralela – e conclui com o enunciado da proposição. Na continuidade, segue alguns exercícios. Segundo nossa interpretação, nos livros didáticos publicados no período de 1985 a 1995 predomina esse tipo de estratégia, a qual começa a ser alterada nos livros publicados a partir de 1995. Assim sendo, destacamos os primeiros sinais de mudança nos procedimentos metodológicos, evidenciando a existência de uma redefinição na vulgata do ensino da geometria, segundo conceito proposto por Chervel.
Estratégia Indutivo-dedutiva
O texto apresentado pelo livro inicia com um procedimento de natureza experimental, lançando mão de representações gráficas, o qual é seguido pelo enunciado da proposição e por uma demonstração, baseada no axioma da paralela e finalizando com a proposição de alguns exercícios ou problemas de aplicação. Em alguns casos, a seqüência lógico-dedutiva pode preceder o enunciado da proposição. Embora essa estratégia já apareça em livros mais antigos, nos manuais mais recentes há uma tendência em diversificá-la, revelando dessa maneira os primeiros sinais de alteração na vulgata contemporânea do livro didático de matemática, na parte específica da geometria.
Estratégia Resolução de Problemas
No caso dessa estratégia, o livro propõe, logo de início, um problema no qual incide o conteúdo em questão. Ao propor esse problema, o autor, geralmente, fornece algumas sugestões para motivar a interação do aluno com o conteúdo. Na continuidade, o livro retoma a apresentação de procedimentos formais, quer seja envolvendo representações gráficas, uma dedução lógica e o enunciado da proposição. Essa estratégia é uma opção bem menos freqüente, mas os livros que a utilizam são todos publicados mais recentemente. Seria essa uma estratégia de ensino que tende a caracterizar o livro didático contemporâneo de matemática? Ao comparar as datas de publicação dos livros, percebemos que as Estratégias Lógico-dedutiva e Indutivo-dedutiva já aparecem na década de 1985 a 1995, enquanto que a Estratégia de Resolução de Problemas aparece nos livros mais recentes. De certa maneira, a diversificação de estratégias já induz esse aumento das articulações entre os diferentes elementos contidos nos livros didáticos. Do ponto de vista teórico, entendemos que tais recursos são criações didáticas cuja tendência é sinalizada pelos livros. A valorização de estratégias experimentais, a descrição de aspectos históricos e o uso de situações do cotidiano exemplificam tais criações.
Recursos visuais de comunicação
Os livros analisados mostram uma expansão do uso de recursos visuais de comunicação por meio de desenhos, esquemas gráficos, diálogos de personagens em quadrinhos e fotos de objetos materiais cuja forma é associados aos conceitos geométricos. Se por um lado esse aspecto envolve outras disciplinas, por outro, tais recursos gráficos redimensionam variáveis próprias do ensino da geometria, tal como é o caso dos processos de representação plana. Por exemplo, a utilização do recurso da cor para incrementar as técnicas do desenho em perspectiva, pela qual fica ressaltada a terceira dimensão do conceito representado. Se nos livros mais antigos tais desenhos eram desprovidos de cores, a tendência atual é que as representações façam uma utilização cada vez mais desse incremento. Essa questão pode ser observada também com a inserção cada vez maior dos recursos de linguagem, pelo uso das novas tecnologias da informática. De forma geral, os recursos proporcionados pelo uso da tecnologia, no que diz respeito aos aspectos visuais, do tratamento das imagens, são recursos de linguagem que, normalmente, não são contemplados pela noção de representação semiótica, valorizando fotos, cores e outros recursos gráficos. Esses pontos revelam uma convergência na caracterização do que existe em comum entre os atuais livros didáticos de matemática, mostrando uma tendência de padronização nos recursos sugeridos para o ensino da geometria. Quais seriam os aspectos positivos e os limites dessa tendência? Por certo, esta questão motiva-nos a definir novos objetos de estudo, voltados para uma melhor compreensão do processo de textualização do saber escolar da educação matemática.
5) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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LivrosDidáticos: 1ª a 4ª séries – PNLD 2000/2001. Brasília: Ministério da Educação, 2001
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ANEXO I
Lista dos livros didáticos que serviram como fontes de dados
L8.1 – Matemática - Fernando Trotta - Editora Scipione, São Paulo, 1985.
L8.2 - Praticando Matemática - Álvaro Andrini - Editora do Brasil, São Paulo, 1989.
L8.3 – Matemática e Realidade - Gelson Iezzi, Osvaldo Dolce, Antônio Machado. Editora Atual, São Paulo, 1995.
L8.4 - A Conquista da Matemática - José Ruy Giovanni, Benedito Castrucci, José Ruy Giovanni Jr. - Editora FTD, São Paulo, 1992.
L8.5 – Matemática - Edwaldo Bianchini - Editora Moderna, São Paulo, 1991.
L8.6 - Matemática Scipione - Scipione di Pierro Netto - Editora Scipione, São Paulo, 1995.
L8.7 – Matemática - Oscar Guelli - Editora Ática, São Paulo, 1997.
L8.8 – Matemática - Luiz Márcio Imenes e Marcelo Lellis – Ed. Scipione, São Paulo, 1999.
L8.9 - Matemática na Medida Certa - José Jakubovic, M. Lellis, M. Centurion. Scipione, 1999.
L8.10 – Matemática hoje é feita assim - Antônio José Lopes Bigode - FTD, 2000.
L8.11 Educação Matemática - Célia Carolino Pires, Edda Curi, Ruy Pietropaolo – Atual, 2002.
L8.12 – Aprendendo Matemática - José Ruy Giovanni, Eduardo Parente - FTD, 2002.
Palavras-chave: Didática da Matemática. Livros Didáticos de Matemática. Metodologia de Ensino da Geometria.
Considerações iniciais
O livro didático é um dos recursos quase sempre presente no ensino da matemática, onde funciona como uma forte referência para a validação do saber escolar. Quer seja por parte de alunos ou de professores, se constitui em uma importante fonte de informações para a elaboração de um tipo específico de conhecimento, onde generalidade e abstração assumem um estatuto diferenciado em relação às outras disciplinas escolares. Chervel (1991), ao estudar o conceito de cultura escolar, essencialmente ligado à idéia de disciplina escolar, observa essa particularidade da matemática em relação aos outros saberes escolares. Considerando a especificidade de cada área de conhecimento presente na educação escolar, percebemos os diferentes estatutos que o livro didático pode assumir na condução do trabalho pedagógico. Por esse motivo, estamos interessados em indagar pelas características do livro didático de matemática, procurando entender suas implicações nas tendências atuais da Educação Matemática.
O livro didático é uma fonte de dados para a pesquisa cujo interesse vem sendo resgatado nos últimos anos. Em parte, esse interesse deve-se à expansão das políticas públicas para a análise, compra e distribuição de livros na rede pública, através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Um dos objetivos desse programa é oferecer informações para servir de apoio ao processo de ensino e aprendizagem. Essa avaliação vem sendo realizada desde o ano de 1996 e serve de referência para a aquisição e distribuição do material às escolas públicas. Essa análise está sendo realizada em parceria com universidades públicas e certamente tem sido conduzida por parâmetros indicados pelas áreas educacionais relacionadas às disciplinas escolares. A cada três anos, tem sido lançado um edital para que as editoras apresentem suas obras a fim de pleitear a aquisição pelo Ministério da Educação. Esse edital define as regras para inscrição e apresenta os critérios pelos quais os livros serão avaliados. Nesse sentido, é interessante estudar a correlação entre essas regras e os rumos assumidos pela pedagogia atual, no que se refere aos conteúdos e das metodologias sugeridas. Ao final de cada processo de avaliação é publicado o Guia de Livros Didáticos, contendo os princípios norteadores da análise, bem como os critérios de cada área e ainda as resenhas das obras aprovadas. Esse guia serve de instrumento para auxiliar os professores na escolha dos livros a adotados. As resenhas oferecem informações pedagógicas e revelam o que está sendo entendido como ideal para conduzir a prática escolar. Além do mais, esta é uma análise procura integrar os pressupostos gerais da educação escolar com as especificidades de cada área, o que sempre foi uma dos desafios para os professores.
No caso de nossa pesquisa, a atenção volta-se para livros publicados nas duas últimas décadas com o objetivo de explicitar tendências atuais do ensino da geometria a partir de uma análise de estratégias propostas. A motivação para sua realização está associada à intenção de compreender parte das influências da transposição didática da educação matemática, entre as quais incluímos os livros didáticos. A delimitação em torno da geometria justifica-se em face da continuidade de outros trabalhos já realizados sobre temas correlacionados, tendo em vista alguns sinais atuais de revalorização do ensino desse conteúdo. Por outro lado, esta opção é também uma tentativa de contribuir na revalorização da geometria que passou por um período recente de abandono no Brasil, conforme esclarece o trabalho de Pavanelo (1993). Motivados pelo quadro delineado nesse contexto, definimos a seguinte questão para orientar a pesquisa: quais são as tendências atuais do ensino da geometria, no que diz respeito às orientações pedagógicas indicadas pelos livros didáticos de matemática?
Referencial teórico
O interesse em pesquisar o livro didático vem aumentando no transcorrer dos últimos anos, o que pode ser comprovado pelo aumento do número de publicações dedicadas a esse tema. Após ter sido foco da atenção para denunciar as ideologias contidas em suas páginas, tal como o trabalho de Faria (1986), a partir da década de 1990 é possível identificar um grande número de trabalhos dedicados ao livro didático. A esse propósito, destacam-se os resultados obtidos por Batista e Rojo (2005), ao concluírem que no período de 1975 a 2003 foram identificados nada menos que 1927 trabalhos dedicados ao livro didático, utilizando como fonte de dados a Plataforma Lattes do CNPq. Entre esses trabalhos, os autores incluíram títulos referentes à produção e divulgação de iniciação científica, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Os autores dessa pesquisa mostram ainda que a partir de 1990 houve um aumento considerável no volume da produção de trabalhos dedicados ao livro didático, destacando que apenas o período de 2000 a 2003 é responsável pela metade da produção. Dessa maneira, fica evidenciada a existência de um volume considerável de pesquisas, realizadas recentemente, sobre livros didáticos no Brasil. Ao que tudo indica, pelo menos dois fatores contribuíram para a expansão do atual interesse em pesquisar o livro didático. Um deles foi a expansão da pós-graduação e do número de pesquisas em áreas mais específicas da educação, tal como é o caso da Educação Matemática, e também a implementação mais intensa de políticas públicas voltadas para a avaliação da educação, entre as quais o PNLD.
O sistema adotado pelo PNLD para analisar os livros didáticos, a partir de regras definidas pelos próprios pesquisadores das diferentes áreas do saber escolar e avalizadas pelo poder público, tem de certa força influenciado não somente na formação de professores, mas também na redefinição das estratégias de ensino e conseqüentemente nas orientações pedagógicas. Em outros termos, partimos do pressuposto que a adoção de tais políticas tem o poder de circular do espaço mais amplo dos parâmetros curriculares até ao território mais singular da sala de aula. A rigor, admitindo que compete ao professor a competência para definir suas opções metodológicas, podemos falar que o livro didático não determina, mas contribui na indução de estratégias de ensino. Muitas vezes, as orientações contidas no livro didático são reproduzidas em sala de aula. Por outro lado, percebemos o poder de influência exercido pelo livro didático na definição das atividades realizadas em sala de aula.
Nossa atuação como professor de Didática e de Prática de Ensino de Matemática, durantes vários anos, permitiu-nos verificar, no plano empírico, a grande força exercida pelo livro didático de matemática na maneira de conduzir a aula. Por certo, a maturidade profissional permite ao professor maior liberdade intelectual para diversificar suas estratégias de ensino. Nessa pesquisa que pretendemos caracterizar orientações pedagógicas específicas para o ensino de geometria a partir da análise de livros didáticos. Para isso visamos identificar um núcleo comum de conceitos apresentados nos livros didáticos e a partir dessa identificação, analisar elementos que definem as estratégias propostas para dinamizar o processo de ensino e de aprendizagem.
A identificação dos conteúdos comuns aos livros didáticos fornece uma visão preliminar da parte conceitual que tem sido preservada na história da Educação Matemática. Tendo apresentado uma visão geral dos conceitos, passamos a identificar os recursos associados a essas noções, tais como as definições apresentadas, as representações, notações, propriedades e deduções, uma vez que tais elementos podem ser objetivamente classificados em função do significado que assumem no contexto do saber matemático. Em paralelo, nossa intenção é levantar criações didáticas sendo esta expressão entendida como uma noção desenvolvida no contexto da teoria da transposição didática, a partir da proposta de Chevallard (1991).
A escolha do período de duas décadas para delimitar a pesquisa ocorreu em função da implantação da avaliação do PNLD, nos meados da década de 1990, o que poderia servir como mais uma fonte de influência na composição da transposição didática. Por sua longa trajetória na história da educação e mais particularmente na constituição da idéia de disciplina escolar, tal como desenvolve Chervel (1990), o livro didático revela uma parte considerável dos saberes com os quais os agentes da educação estão diretamente envolvidos. Isso acontece em relação a todas as disciplinas e dentro de cada área de conhecimento o manual escolar assume suas próprias características. No caso da educação matemática, em decorrência da influência recebida de suas raízes positivistas, conjeturamos que a estabilidade do texto didático assume um papel ainda mais preponderante em vista de seus aspectos formais. Em outros termos, para explicitar a objetividade e a generalidade previstas na constituição do saber matemático, valoriza-se a publicação de um texto que possa servir de referência na condução do ensino.
Trata-se, por exemplo, em explicitar definições, propriedades, representações, teoremas, demonstrações e problemas que, conjuntamente, expressam o raciocínio lógico típico dessa disciplina. Seguindo esta linha de raciocínio, uma noção que revela uma analogia com a textualização oficial do saber escolar é o conceito de vulgata, proposto por Chervel (1990) para estudar a constituição histórica de uma disciplina escolar. Uma vulgata representa o que existe de comum, em um dado momento histórico, em relação a uma disciplina escolar, sendo formada por conteúdos, objetivos, métodos e problemas que predominam como os elementos que devem ser utilizados pelo professor. Uma parte da vulgata aparece nos livros didáticos de uma determinada época, fazendo com que os mesmos tenham algo em comum ou que, de certa forma, sejam muito semelhantes uns com os outros. Valente (2002), tratando desse conceito proposto por Chervel, analisa como os livros didáticos de matemática entenderam e traduziram para a prática pedagógica as indicações propostas pela chamada Reforma Francisco Campos, buscando uma maneira de estabelecer sinais do aparecimento de uma nova vulgata para o ensino de matemática no Brasil, na década de 1930.
No caso da pesquisa aqui focalizada pretendemos descrever alguns sinais da vulgata contemporânea, no que diz respeito mais particularmente ao ensino da geometria. Tendo em vista a proximidade do período temporal do qual estamos tratando, não temos a pretensão de estabelecer uma analise de cunho histórico, mas apenas levantar alguns elementos que deverão ser somados a vários outros para explicitar o esboço de um fato histórico. A escolha de conteúdos, objetivos, métodos e recursos usados na educação escolar resultam das fontes de influência que atuam na composição do currículo e no movimento da transposição didática, conforme definição proposta por Chevallard (1991). No contexto mais amplo, tais elementos encontram-se registrados em relatórios, teses, softwares, parâmetros, programas e em outras publicações, entre as quais os livros didáticos. São registros publicados para defender a validade do saber a ser ensinado e da forma como eles são conduzidos pelos professores. Entre os diversos registros textuais do saber, existentes no contexto cultural da escola, nós escolhemos o livro didático para servir como fonte primária de dados da pesquisa aqui relatada.
Um dos argumentos para a defesa dessa escolha consiste no fato da forte influência que esse recurso normalmente exerce na prática de ensino, como fonte de referência e de validação do saber a ser ensinado. Quais são as principais características do ensino de geometria que aparecem nos livros didáticos contemporâneos de matemática? Em que sentido essas características resultam da influência dos atuais parâmetros curriculares e de outras fontes oficiais da educação escolar no Brasil? Tendo em foco essas questões, nós realizamos uma análise das diretrizes do Programa Nacional do Livro Didático e destacamos, em paralelo, um conjunto de unidades de significado que aparecem nos livros didáticos de matemática. Nosso interesse em estudar essas referências deve-se ao pressuposto de que tais diretrizes expressam uma consciência e uma intencionalidade didática de uma comunidade de pesquisadores, representativa de um dado momento evolutivo da área de educação matemática.
A textualização do saber escolar é um processo de preparação por que passam os conteúdos a ensinados no contexto de uma disciplina escolar, o qual recebe forte influência de uma tradição cultural. No caso de nossa pesquisa, este processo constitui-se pelas fontes de influência que determinam a forma final do livro didático, não querendo dizer com isto que esse tipo de livro seja o único veículo de expressão da textualização. Outros tipos de publicações, tais como os livros para-didáticos, os programas, apostilas, exames participam desse texto oficial do saber. A realização desse processo de textualização ocorre sob o controle de certas regras que visam a estruturação de uma forma didática e toda proposta educativa formal pressupõe necessariamente a existência de tal preparação. Entre essas regras que estruturam a textualização do saber podemos destacar, a partir da análise de Chevallard (1991): a desincretização, que consiste na exigência de proceder a uma divisão da teoria em várias áreas e em especialidades bem delimitadas; a despersonalização, que consiste na exigência da separação do saber do contexto pessoal; a programabilidade, que consiste no estabelecimento de uma programação da aprendizagem segundo uma seqüência progressiva e racional; a publicidade que é a definição explícita do saber que deverá ser ensinado.
Aspectos metodológicos
A pesquisa aqui relatada foi realizada através de uma abordagem fenomenológica, no sentido descrito por Bicudo e Espósito (1994), a partir da análise, da interpretação e da busca das essências contidas nos discursos contidos nos livros didáticos de matemática. Focalizamos esse discurso a partir da materialidade contida nas páginas dos livros, na totalidade de seu texto, incluindo figuras, fotos e outros recursos gráficos presentes na linguagem adotada. Embora os sujeitos desses discursos estejam explicitados nos anexos da pesquisa, entendemos não se tratar, na sua grande parte, de manifestações individuais dos profissionais que trabalham na educação matemática. Estamos supondo que algumas das escolhas feitas pelos autores acontecem em função de um fluxo de orientações pedagógicas, muitas delas publicadas explicitamente pela comunidade de educadores matemáticos. Em outros termos, não se trata de analisar as tendências do ensino da matemática com base na subjetividade de grupo de autores.
Nosso interesse é, sobretudo, caracterizar o que existe em comum nessas publicações e em que sentido tais orientações representam uma tendência patrocinada pela própria área de Educação Matemática. Essa maneira de conduzir a pesquisa educacional foi ampliada por nós, no sentido de incluirmos a categoria da multiplicidade na interpretação da atual tendência das práticas pedagógicas da educação matemática. Ao considerar a idéia da multiplicidade na leitura da prática pedagógica, pretendemos considerar a diversidade de dimensões ou de aspectos contidos nos atos integrados de ensinar e aprender. Essa defesa da presença interligada da unicidade e da multiplicidade se constitui em um dos princípios cultivados nessa linha metodológica.
No caso da educação matemática, onde a preservação da dimensão conceitual tem sido considerada uma necessidade, essa articulação entre unicidade e multiplicidade aparece com mais intensidade no tratamento dos próprios conceitos, sendo estes entendidos como idéias únicas e inconfundíveis com as demais noções matemáticas. Por outro lado, associada a essa unicidade contida no conceito matemático tem uma multiplicidade de casos particulares representados pelos exemplos, os quais são tão valorizados na prática de ensino da matemática. Assim sendo, a interpretação do material obtido nos livros didáticos foi analisado também com essa categoria da multiplicidade.
Os dados primários da pesquisa foram obtidos de 12 (doze) coleções de livros didáticos de 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental, publicados no Brasil, no período de 1985 a 2002, a qual pode ser identificada no anexo I desse artigo. No que diz respeito mais especificamente às estratégias de ensino da geometria, a pesquisa foi realizada nos livros em nível de 7ª e 8ª séries, onde este conteúdo concentra-se por força de uma tradição histórica, embora, algumas alterações podem ser identificadas nos livros mais recentes. Desses livros foram selecionadas as páginas dedicadas ao estudo da geometria, principalmente aquelas nas quais estão apresentadas definições ou a apresentação inicial do assunto. Em outros termos, na diversidade de páginas, nossa análise foi concentrada mais nos aspectos conceituais. A partir de uma análise detalhada, extraímos um conjunto de unidades de significado. No contexto de nossa opção metodológica, uma unidade de significado é uma frase, um pequeno texto, um desenho, uma representação ou uma ilustração que pode traduzir alguma informação em relação à questão levantada na realização do trabalho: quais são as tendências do ensino da geometria, no que diz respeito às orientações pedagógicas indicadas pelos livros didáticos de matemática? Em seguida, as unidades de significado foram analisadas, classificadas e submetidas a um processo de redução fenomenológica, pelo qual destacamos as idéias centrais, em torno da questão diretora da pesquisa. Ao identificar a existência de aspectos convergentes nas estratégias adotadas nos livros didáticos, obtivemos confluências temáticas, as quais foram analisadas a partir das idéias propostas por Chervel (1990) e Chevallard (1993) no que se refere à caracterização dos conteúdos de apoio ao ensino da geometria.
Análise de livros didáticos
Nos livros analisados identificamos um grande número de unidades, cujo significado relaciona-se com o objeto da pesquisa. Para procurar uma primeira convergência, procuramos dividi-las em dois grupos. No primeiro, incluímos unidades que têm o significado objetivado no contexto matemático, as quais foram denominadas de unidades matemáticas. Essas unidades foram classificadas em uma das seguintes confluências: axiomas, definições, exemplos, representações, propriedades, teoremas, demonstrações, problemas e exercícios. Essa denominação das unidades matemáticas justifica-se pelo fato das expressões em si mesmo já traduzem o aspecto objetivo presente usualmente no ensino da matemática. Por outro lado, no segundo grupo incluímos unidades cujo significado não têm a mesma objetividade contida no saber matemática e decorre de opções feitas pelos autores dos livros didáticos, as quais foram por nós denominadas de unidades pedagógicas, podendo ser classificadas em uma das seguintes confluências: vocabulário, notação, conhecimento prévio do aluno, procedimentos experimentais, aspectos históricos, articulação da geometria com outras disciplinas, articulação interna à matemática, contextualização do saber, tecnologia, construções geométricas e leitura de texto. Assim, a partir da definição desses dois grupos de unidades, recolocamos nossa intenção de pesquisa: quais são as unidades presentes nos livros didáticos e que se referem a uma orientação pedagógica para o ensino da geometria?
Um conjunto estável de conteúdos da geometria
Uma análise atenciosa do sumário de cada livro permitiu identificar a existência de um conjunto estável de conteúdos geométricos que figuram em quase todos os livros didáticos publicados no transcorrer das duas últimas décadas. Esta preservação dos conteúdos pode ser entendida como uma das referências mais estáveis da área Educação Matemática. Se por um lado existe uma diversificação de estratégias e de recursos, por outro, preserva-se uma certa unicidade curricular, cuja defesa parecer ser um dos redutos mais fortes da Educação Matemática. Por esse motivo acreditamos que a interpretação entre os laços conflituosos da unicidade e da multiplicidade, tal como defende o pensamento fenomenológico, sinaliza uma das alternativas plausíveis para melhor compreender as tendências contemporâneas nessa área educacional.
Esses conteúdos são os seguintes: ponto, reta e plano, semi-reta, segmento de reta, poligonais e polígonos, ângulos, retas perpendiculares e paralelas, triângulos, congruência, pontos notáveis de um triângulo, quadriláteros, circunferência e círculo, semelhança, teorema de Tales, de Pitágoras, relações métricas e trigonométricas, perímetros, áreas e volumes, polígonos regulares, comprimento da circunferência. De forma genérica esses conteúdos aparecem em quase todos os livros didáticos analisados. A diferença constatada está na forma pedagógica com que os mesmos são abordados pelos autores. A existência desse núcleo de conteúdos é uma das características da textualização do saber escolar, entendido como uma explicitação de paradigmas avalizados no contexto da transposição didática.
Por outro lado, é possível perceber os primeiros sinais de alteração na vulgata do ensino atual da matemática. Esta constatação revela que entre os três elementos escolhidos para orientar nosso objeto (conteúdos, estratégias e recursos) os conceitos matemáticos exercer uma espécie de hegemonia, ditada pela objetividade característica dessa disciplina escolar. Mesmo que às vezes, em certos livros, não haja uma abordagem formal de tais conceitos, os mesmos aparecem como eixo diretor na condução das estratégias de ensino por meio da resolução de problemas, por exemplo. Além do mais, a seqüência na qual tais conteúdos estão distribuídos ao longo das quatro séries finais do Ensino Fundamental obedece, quase sempre, a ordem acima apresentada. Como nosso interesse é propor uma primeira descrição da vulgata contemporânea do Ensino de Geometria, pensamos que o destaque desses aspectos contribui, pelo menos, com duas das condições propostas por Chervel (1990), para caracterizar o que existe de comum no texto hegemônico de uma dada disciplina escolar.
Tendo em vista essa referência teórica não é nossa intenção destacar o que certos livros trazem de maneira isolada. A esse propósito cumpre-nos exemplificar que alguns livros, principalmente aqueles publicados no final da década de 1980 e início da década de 1990, trazem um estudo de detalhado de curvas (curvas simples, curvas não-simples, curvas fechadas e curvas abertas), mas a grande maioria dos que os sucedem não trazem mais esse conteúdo, portanto, tal assunto não participa da tendência contemporânea do livro didático de matemática. Por outro lado, em livros didáticos mais recentes é possível encontrar páginas dedicadas ao estudo da Geometria das Transformações (reflexão, translação, rotação,...), mas isso acontece em um número muito reduzido deles, mostrando que tal estudo ainda não se encontra inserido da vulgata atual do Ensino da Geometria.
Localização da geometria no livro didático
Os conteúdos da geometria devem estar localizados em um único capítulo ou articulados com os demais campos de conteúdos? Por certo, esta é uma questão que diferencia os livros didáticos. Assim, indagamos a cerca dessa localização com a finalidade de verificar eventuais alterações, fazendo um mapeamento do local onde se localiza a geometria, quer seja no transcorrer das quatro últimas séries do Ensino Fundamental ou no conjunto de páginas do livro de cada uma dessas séries. Esse tipo de análise permitiu identificar quatro classes de livros. A primeira é formada somente por livros que apresentam a geometria na última quarta parte do livro, os quais são publicados de 1985 a 1995. Levando em consideração que a seqüência de apresentação dos conteúdos é uma das características da vulgata, fica evidenciada uma tendência de mudança, pois nos livros mais recentes essa localização passa a ser alterada. Entretanto, resta-nos investigar, com mais atenção, qual é o efetivo significado dessa alteração, pois a questão pedagógica não se reduz a uma localização física das páginas do livro. Uma segunda classe de livros apresenta o estudo da geometria na primeira parte do livro.
De modo geral, verifica-se apenas uma alteração da localização das páginas, mas os conceitos usuais e a forma pedagógica são ainda preservados. Assim sendo, resta-nos estar atento ao efetivo significado dessa alteração imediata da localização das páginas. Em seguida, destacamos uma terceira categorização de livros que, de forma geral, localizam a geometria na primeira e na segunda metade do livro. Tem-se a impressão que esses livros pretendiam buscar um equilíbrio entre os dois primeiros grupos. Finalmente, identificamos um quarto grupo de livros, nos quais a geometria encontra-se diluída ao longo de todos os capítulos. Com exceção dos livros do primeiro grupo todos os outros foram publicados no transcorrer da última década, o que sinaliza, pelo menos, uma tendência de quebrar a idéia de que a geometria está sempre localizada nas últimas páginas. Entretanto, essa mudança não garante, por si mesma, alterações significativas no sentido de valorizar a contextualização, a vivência do aluno ou as articulações previstas para o ensino da matemática, tal como sinalizam as atuais fontes de influência da transposição didática.
Uma nova visão de aprendizagem?
Os livros mais tradicionais apresentam, no sumário, os conceitos, enumerando uma lista com termos e expressões com significados objetivos no contexto do saber matemático. Em seguida, nas páginas reservadas para o estudo de tais conceitos, permanecem nessa linha de explicitação de termos matemáticos. Tais livros consistem na quase totalidade daqueles publicados na década de 1985 a 1995. Por outro lado, entre os livros publicados na última década, nem sempre é preservada essa forma de sumário, pois surgem expressões do tipo: curvas maravilhosas, resolvendo exercícios, alisando figuras e construções, sabedoria da natureza, ente outras. São expressões que revelam uma tendência de mudança na própria concepção do fenômeno da aprendizagem, pois procurando articular o saber matemático com outras referências, além de intencionar uma visão mais dinâmica da aprendizagem. A princípio, podemos até pensar que o nome do capítulo, tal como aparece no sumário do livro, não tem muita importância. Mas, analisando as páginas internas do livro, percebemos uma tendência de mudança na concepção do ensino e da aprendizagem. Outro elemento que sinaliza fortemente essa tendência consiste no fato de aparecer nos livros mais recentes o uso freqüente de verbos no gerúndio, tais como: estudando geometria, construindo figuras, resolvendo problemas, entendendo a definição e assim por diante. Tudo leva crer que o uso do gerúndio pretende dar um sentido mais dinâmico à aprendizagem. Do ponto de vista teórico, interpretamos essa visão no sentido de dar maior dinamismo às atividades de ensino e de aprendizagem, revelando que a aprendizagem não é um fenômeno estático. A unicidade conceitual contida em uma idéia matemática passa a ser tratada com a diversidade de olhares, tal como esse aspecto de tratar a aprendizagem como um fenômeno dotado de movimento.
Diversificação das estratégias
A análise das unidades extraídas dos livros, relacionadas aos conteúdos e aos aspectos didáticos, permitiu-nos constatar a existência de uma tendência de diversificação das estratégias de ensino apresentadas para orientar o ensino e a aprendizagem da geometria. Assim, somos levados a indagar se tal diversificação atinge outros campos de conteúdos da matemática ou ainda outros níveis de escolaridade que não foram objeto da nossa pesquisa. Para comprovar essa diversificação, definimos uma tipologia das estratégias de ensino, sem com isso pretender fazer uma classificação absoluta, pois nem todos os casos cabem nos limites de um modelo teórico. Com a finalidade de analisar estratégias de ensino escolhemos dois temas para observar os elementos utilizados em sua apresentação e destacar a seqüência na qual eles aparecem no livro. Os conteúdos foram soma dos ângulos internos de um triângulo e ângulos opostos pelo vértice.
Ao analisar os conteúdos, selecionamos os seguintes elementos: definição, consideração de um conceito genérico, representação gráfica, dedução lógica (demonstração), enunciado de uma proposição, colocação de exercícios, proposição de um problema e sugestão de um procedimento experimental. Este último caso trata-se da sugestão do uso de um transferidor, da observação de casos particulares, da realização de um recorte ou de uma dobradura de papel para verificar, intuitivamente, o valor da soma dos ângulos internos de um triângulo. De maneira geral, são esses elementos que aparecem na exposição dos conteúdos acima mencionados, as diferenças existentes entre os livros é, sobretudo, a seqüência com que aparecem nos livros. Para trabalhar os conteúdos acima mencionados, quase todos os livros da sétima ou oitava série, apresentam, pelo menos uma representação gráfica, uma seqüência lógico dedutiva e o enunciado da respectiva proposição. Em cada livro, além desses elementos, aparecem outros que completam a estratégia induzida pelo autor. Seguindo este caminho, identificamos três tipos de estratégias que descrevemosd, no caso da soma dos ângulos internos de um triângulo.
Estratégia Lógico-dedutiva
O texto apresentado pelo livro considera um triângulo qualquer e sua representação gráfica, descrevendo uma seqüência lógico-dedutiva baseada no axioma da paralela – por um ponto fora de uma reta passa uma única reta paralela – e conclui com o enunciado da proposição. Na continuidade, segue alguns exercícios. Segundo nossa interpretação, nos livros didáticos publicados no período de 1985 a 1995 predomina esse tipo de estratégia, a qual começa a ser alterada nos livros publicados a partir de 1995. Assim sendo, destacamos os primeiros sinais de mudança nos procedimentos metodológicos, evidenciando a existência de uma redefinição na vulgata do ensino da geometria, segundo conceito proposto por Chervel.
Estratégia Indutivo-dedutiva
O texto apresentado pelo livro inicia com um procedimento de natureza experimental, lançando mão de representações gráficas, o qual é seguido pelo enunciado da proposição e por uma demonstração, baseada no axioma da paralela e finalizando com a proposição de alguns exercícios ou problemas de aplicação. Em alguns casos, a seqüência lógico-dedutiva pode preceder o enunciado da proposição. Embora essa estratégia já apareça em livros mais antigos, nos manuais mais recentes há uma tendência em diversificá-la, revelando dessa maneira os primeiros sinais de alteração na vulgata contemporânea do livro didático de matemática, na parte específica da geometria.
Estratégia Resolução de Problemas
No caso dessa estratégia, o livro propõe, logo de início, um problema no qual incide o conteúdo em questão. Ao propor esse problema, o autor, geralmente, fornece algumas sugestões para motivar a interação do aluno com o conteúdo. Na continuidade, o livro retoma a apresentação de procedimentos formais, quer seja envolvendo representações gráficas, uma dedução lógica e o enunciado da proposição. Essa estratégia é uma opção bem menos freqüente, mas os livros que a utilizam são todos publicados mais recentemente. Seria essa uma estratégia de ensino que tende a caracterizar o livro didático contemporâneo de matemática? Ao comparar as datas de publicação dos livros, percebemos que as Estratégias Lógico-dedutiva e Indutivo-dedutiva já aparecem na década de 1985 a 1995, enquanto que a Estratégia de Resolução de Problemas aparece nos livros mais recentes. De certa maneira, a diversificação de estratégias já induz esse aumento das articulações entre os diferentes elementos contidos nos livros didáticos. Do ponto de vista teórico, entendemos que tais recursos são criações didáticas cuja tendência é sinalizada pelos livros. A valorização de estratégias experimentais, a descrição de aspectos históricos e o uso de situações do cotidiano exemplificam tais criações.
Recursos visuais de comunicação
Os livros analisados mostram uma expansão do uso de recursos visuais de comunicação por meio de desenhos, esquemas gráficos, diálogos de personagens em quadrinhos e fotos de objetos materiais cuja forma é associados aos conceitos geométricos. Se por um lado esse aspecto envolve outras disciplinas, por outro, tais recursos gráficos redimensionam variáveis próprias do ensino da geometria, tal como é o caso dos processos de representação plana. Por exemplo, a utilização do recurso da cor para incrementar as técnicas do desenho em perspectiva, pela qual fica ressaltada a terceira dimensão do conceito representado. Se nos livros mais antigos tais desenhos eram desprovidos de cores, a tendência atual é que as representações façam uma utilização cada vez mais desse incremento. Essa questão pode ser observada também com a inserção cada vez maior dos recursos de linguagem, pelo uso das novas tecnologias da informática. De forma geral, os recursos proporcionados pelo uso da tecnologia, no que diz respeito aos aspectos visuais, do tratamento das imagens, são recursos de linguagem que, normalmente, não são contemplados pela noção de representação semiótica, valorizando fotos, cores e outros recursos gráficos. Esses pontos revelam uma convergência na caracterização do que existe em comum entre os atuais livros didáticos de matemática, mostrando uma tendência de padronização nos recursos sugeridos para o ensino da geometria. Quais seriam os aspectos positivos e os limites dessa tendência? Por certo, esta questão motiva-nos a definir novos objetos de estudo, voltados para uma melhor compreensão do processo de textualização do saber escolar da educação matemática.
5) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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LivrosDidáticos: 1ª a 4ª séries – PNLD 2000/2001. Brasília: Ministério da Educação, 2001
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CHERVEL, A. La Culture Scolaire. Paris, Editora Belin, 1990.
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ANEXO I
Lista dos livros didáticos que serviram como fontes de dados
L8.1 – Matemática - Fernando Trotta - Editora Scipione, São Paulo, 1985.
L8.2 - Praticando Matemática - Álvaro Andrini - Editora do Brasil, São Paulo, 1989.
L8.3 – Matemática e Realidade - Gelson Iezzi, Osvaldo Dolce, Antônio Machado. Editora Atual, São Paulo, 1995.
L8.4 - A Conquista da Matemática - José Ruy Giovanni, Benedito Castrucci, José Ruy Giovanni Jr. - Editora FTD, São Paulo, 1992.
L8.5 – Matemática - Edwaldo Bianchini - Editora Moderna, São Paulo, 1991.
L8.6 - Matemática Scipione - Scipione di Pierro Netto - Editora Scipione, São Paulo, 1995.
L8.7 – Matemática - Oscar Guelli - Editora Ática, São Paulo, 1997.
L8.8 – Matemática - Luiz Márcio Imenes e Marcelo Lellis – Ed. Scipione, São Paulo, 1999.
L8.9 - Matemática na Medida Certa - José Jakubovic, M. Lellis, M. Centurion. Scipione, 1999.
L8.10 – Matemática hoje é feita assim - Antônio José Lopes Bigode - FTD, 2000.
L8.11 Educação Matemática - Célia Carolino Pires, Edda Curi, Ruy Pietropaolo – Atual, 2002.
L8.12 – Aprendendo Matemática - José Ruy Giovanni, Eduardo Parente - FTD, 2002.