Argumentação e Geometria

Luiz Carlos Pais
 
RESUMO: O objetivo deste artigo é descrever os resultados de uma pesquisa realizada com professores de matemática do Ensino Fundamental da rede pública do estado de Mato Grosso do Sul cuja finalidade foi desvelar o significado atribuído por esses professores às dificuldades inerentes ao ensino e à aprendizagem da geometria e em particular ao processo de argumentação lógico-dedutiva do conhecimento geométrico. Trata-se de uma tentativa de esboçar informações preliminares que permitam conhecer as tendências epistemológicas desses professores em face do conteúdo geométrico e conseqüentemente suas posturas pedagógicas delas decorrentes. O objeto principal dessa investigação tem, portanto, uma natureza essencialmente educacional e pretende estar mais especificamente voltada para os interesses didáticos da Educação Matemática.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino da Geometria. Argumentação. Lógica dedutiva.

Procedimentos da pesquisa

Os dados iniciais da pesquisa foram obtidos em cursos de capacitação para professores de matemática ministrados pelos autores, durante o ano de 1995, promovidos pela Secretaria Estadual de Educação em cinco das principais cidades do estado de Mato Grosso do Sul. Trata-se de professores licenciados em Matemática ou em Ciências que na ocasião da pesquisa estavam atuando em sala de aula, ministrando aulas de matemática nas séries finais do Ensino Fundamental. Por ocasião destes cursos, e mais precisamente no momento inicial do primeiro dia de atividades, ainda sem qualquer posicionamento por parte dos ministrantes quanto ao assunto, os professores foram convidados a realizarem uma descrição, de forma  mais detalhada  possível, a propósito de suas concepções sobre algumas questões envolvendo o ensino da geometria, a valorização das demonstrações e a importância do pensamento lógico-dedutivo neste ensino. Essas descrições constituem o que chamamos de discursos dos professores os quais foram objetos de nossa interpretação no transcorrer da redução fenomenológica. Inicialmente foram obtidos em torno de 120 descrições das quais foram selecionadas 32 considerados os mais significativos cuja análise é aqui apresentada.
A opção metodológica desta pesquisa tem suas raízes vinculadas à experiência pré-reflexiva dos autores. Os desafios postos pela dicotomia teoria-prática, que normalmente envolve a pequisa na área educacional, levou a uma investigação que tentasse se aproximar um pouco mais da essência do problema do ensino da geometria retornando para isso às próprias coisas. Foi esta expectativa que levou a conhecer diretamente os próprios discursos de professores de matemática sobre o ensino da geometria dedutiva, abordando questões vinculadas ao domínio do seu conteúdo e ao próprio significado atribuído por eles ao conhecimento geométrico e em particular aos procedimentos de prova e argumentação. Na compreensão e interpretação dos discursos dos professores, não se tratou de explicar os fatos observados e sim proceder uma descrição dos aspectos essenciais ao fenômeno investigado segundo exclusivamente nossa consciência e intencionalidade voltadas para compreensão da educação matemática.
Na interpretação dos discursos apresentados pelos professores três fatos principais se destacaram como essenciais ao tema pesquisado: há uma tentativa imediata de valorização do ensino da geometria como sendo um conteúdo disciplinar importante à formação intelectual do aluno de primeiro grau; há também um certo reconhecimento de que esse ensino não tem sido desenvolvido de forma satisfatória e, finalmente, destaca-se que a percepção da importância de procedimentos lógico-dedutivos na construção do conhecimento geométrico não é normalmente manifestada pelos professores. As dificuldades do ensino da geometria podem, para esses professores, se restringirem, de forma ilusória, à uma questão de natureza metodológica ou formal, entretanto, uma análise mais detalhada de suas afirmações mostra outros aspectos envolvendo, inclusive, o problema da própria construção epistemológica dos conceitos envolvidos. Ainda a nível dessas dificuldades há implícito nas manifestações dos professores um relativo reconhecimento da necessidade de uma melhoria em seu próprio processo de formação.

2. Uma tentativa de valorização do ensino da geometria

A investigação empreendida pela pesquisa permitiu constatar que de uma forma quase totalmente constante percebe-se a manifestação de um discurso imediato do professor, muito claro e explícito, tentando valorizar o ensino da geometria euclidiana plana e espacial em todos os níveis de escolaridade. Todos os professores que participaram da pesquisa foram unânimes em afirmar que o conteúdo estudado em geometria é importante para a formação do aluno de primeiro grau. Na tentativa de buscar a fundamentação dessa importância percebe-se uma grande dificuldade em esboçar suas razões. Os textos analisados deixam transparecer que a geometria é importante simplesmente por ser importante, porque a matemática é importante. A fundamentação aparece, portanto, de uma forma muito interna e não se mostra como uma questão mais ou menos transparente na consciência docente.
Há uma distância muito nítida entre o discurso externo manifestado pelas palavras, frases e expressões valorativas e o significado essencial desse texto para sua própria consciência educacional. Por exemplo, para esses professores, o ensino da geometria pode até apresentar uma “importância” destacada em relação até mesmo a outros conteúdos da matemática, mas o significado mais íntimo desta importância não é sintetizado em seu texto. Esta incongruência entre aquilo que é expresso e o seu significado essencial deixa transparecer uma certa angústia em ter um contato mais íntimo com as noções geométricas. O desejo de oferecimentos de mais cursos de formação continuada mostra esta necessidade manifestada pelos professores. É esta realidade de formação que leva a uma conseqüente carência de significado para a disciplina que ele tenta ensinar.

As razões enumeradas para o ensino da geometria, mesmo ficando mais num plano puramente externo, tentam argumentar sua importância para o “desenvolvimento do raciocínio” do aluno, para a aplicação em outros conteúdos e ainda sua utilidade para as situações práticas da vida. É evidente que toda aprendizagem significativa, quer seja matemática ou em qualquer outra disciplina escolar, pode contribuir para o desenvolvimento do raciocínio. Mas, o que significa uma aprendizagem significativa em geometria? Com certeza não é a polarização do ensino da geometria apenas na memorização de fórmulas e em sua abordagem calculista, que possibilitará esse desenvolvimento do raciocínio. Há uma preocupação quase que constante com os valores puramente pragmáticos da geometria. Assim, é natural que, na tentativa de melhoria desse ensino, não se pode fugir da realidade vivencial do professor e do aluno, do nível embrionário das idéias abstratas e da construção conceitual a partir do imediato.
O desafio maior é simplesmente partir desta realidade e conduzir o processo na direção de uma construção do conhecimento geométrico, sem perder de vista sua finalidade maior que é a educação do homem.

A análise dessas observações permite, no mínimo, desvelar um horizonte muito mais amplo em torno dessa questão preliminar que conduziu a pesquisa, ou seja, o problema da justificativa educacional do ensino da geometria, e conseqüentemente do ensino do seu raciocínio lógico-dedutivo. Percebe-se a existência de problemas nada evidentes e imediatos, que apresentam uma multiplicidade de aspectos de ordem matemática, científica, educacional e portanto social e política. A redução dessa estrutura fenomenal a uma única dimensão não permitirá o acesso à essência da questão. Por exemplo, pretender reduzir esses desafios a uma questão de formação dos professores leva necessariamente a indagar que formação é essa. Qual a dimensão que se dá a esse processo de formação? Poderia se falar em prioridades nesta formação?

Dificuldades do ensino da geometria

Há uma concepção pragmática  no ensino da geometria que acaba sendo determinante no enfoque de seus valores educacionais. O que mostra que o significado atribuído ao conhecimento geométrico, por esses professores, se limita quase que somente a um aspecto pré-categorial, pois percebe-se uma tentativa de esboçar algumas idéias mais gerais e abstratas porém ainda fortemente aprisionadas ao mundo dos objetos concretos. A concepção da geometria como um conteúdo essencialmente abstrato nem sempre corresponde ao vivenciado pelo professor que freqüentemente se refere a esse conhecimento como aquele estritamente ligado aos objetos físicos através do reconhecimento de formas e do cálculo de comprimentos, áreas e volumes. A predominância desse aspecto experimental acaba determinando uma visão inadequada dos valores dos processos dedutivos da geometria. O máximo que se pode esperar é que esses procedimentos do pensamento dedutivo, seriam apenas para a justificação de algumas fórmulas, ou a verificação da validade em casos particulares. De um modo geral, não há portanto, uma compreensão da demonstração geométrica enquanto recurso teórico de validação do conhecimento geométrico.
Uma segunda dificuldade que está essencialmente associada a esta concepção prágmática é a opinião quase que constante que os problemas do ensino da geometria poderiam se restringir a um aspecto puramente formal, metodológico e externo. Nesta perspectiva enganosa, a metodologia de ensino da geometria poderia superar todas essas dificuldades. O abstrato e o geral dos conceitos geométricos seriam prontamente alcançados pelos recursos concretos tais como alguns materiais didáticos e outros aspectos relacionados com a forma ou estética. Trata-se de uma crença infundada, uma vez que, a dinamização de procedimentos metodológicos mais compatíveis, mesmo possibilitando uma aprendizagem mais significativa, de forma isolada, não resolve a questão didática do ensino da geometria.
Em paralelo à estas dificuldades é possível destacar, de uma forma muito clara, a existência de um certo reconhecimento, por parte destes professores, quanto à suas próprias deficiências de formação. Tanto no que diz respeito à questões de conteúdo e de suas formas de apresentação didática, os professores, geralmente, manifestam um interesse de se inserirem num processo de formação que lhe permita transpor sua realidade pedagógica. No reconhecimento dessa deficiência está implícito que o ensino da geometria não está sendo desenvolvido de uma forma adequada.
Segundo esses professores, o ensino de geometria se constitui mesmo num dos pontos mais críticos da educação matemática escolar. Algumas vezes os livros didáticos são também citados como co-responsáveis por essa situação por apresentarem a geometria em suas últimos capítulos. Mas tanto a possibilidade de uma leitura crítica dos livros didáticos, como também aos programas curriculares, convergem para uma problemática que está diretamente associada às questões de sua formação técnica educacional.
Do ponto de vista das concepções dos alunos uma pesquisa recente Sales (1996) mostra que, a nível da oitava série do primeiro grau, há uma predominância quase que exclusiva de um nível não categorial de um conhecimento geométrico, onde o aspecto material das formas geométricas e de suas representações planas por um desenho acabam constituindo o objeto de interesse principal. O problema da generalidade e da abstração geométricas é totalmente reduzido ao caso particular e concreto dos desenhos ou dos objetos materiais. Um nível elementar de domínio conceitual e a compreensão de definições e propriedades são dificilmente encontrados no raciocínio destes alunos.

Um significado para as demonstrações geométricas

No que diz respeito mais especificamente à importância dos procedimentos de provas utilizados em geometria para a formação de alunos de primeiro e segundo graus, foi possível desvelar um outro significado concernente à expressão “demonstração geométrica”, essencialmente diferente daquele definido no discurso da matemática formal. Foi observado que as demonstrações geométricas podem ser concebidas muito mais como um produto final do que como um processo de raciocínio lógico-dedutivo. O discurso dos professores permite identificar uma convergência de concepções ligadas à compreensão do mundo da vida às propriedades geométricas dos objetos que o compõem. Assim sendo, quando o professor afirma que as demonstrações geométricas servem para “aprender com mais facilidade”, ou para “visualizar melhor a geometria”, ou ainda para possíveis “aplicações na vida diária”, fica evidenciado que essas afirmações não se referem ao processo mental de demonstração de teoremas, o qual é de natureza essencialmente abstrata. Desta forma, a concepção de demonstração que está implícita é aquela em que, a partir do produto, ou seja, de uma propriedade geral, que poderia ser o enunciado de um teorema, verifica-se sua validade sobre figuras particulares do mundo físico. Neste sentido observa-se que o ponto de partida são as propriedades gerais, as quais, para serem aceitas pelos alunos, deveriam ser comprovadas experimentalmente.
No significado das demonstrações geométricas pode estar, portanto, implícito a ausência de um processo mental de raciocínio dedutivo. Percebe-se que o que está sendo valorizado não é o processo dedutivo, onde as afirmações seriam organizadas e encadeadas de maneira lógica para a produção de novas afirmações. Ao contrário disso, o que está lá subentendido é que a comprovação das propriedades se dá no campo experimental, através da utilização de instrumento de medida, da observação direta de figuras ou ainda pela utilização de materiais concretos. Esta constatação é ainda confirmada quando os professores dizem que, a nível de primeiro grau, o ensino das demonstrações não seria um conteúdo muito complexo e abstrato. Ora, o que ocorre na realidade é exatamente o contrário, o trabalho envolvendo a organização do processo lógico-dedutivo não é nada evidente e representa um dos maiores desafios pedagógicos a esse nível da escolaridade. Isto mostra que há, portanto, um outro significado de natureza bem mais concreta tentando compreender a função das demonstrações geométricas através da experiência envolvendo objetos do espaço físico.

Para uma compreensão melhor do problema do ensino das demonstrações é necessário uma vez mais proceder uma volta às questões de formação do professor para o ensino da geometria dedutiva. Em vários pontos dos discursos analisados transparece, de uma forma muito clara, que o professor, normalmente, tem uma certa consciência de sua carência de formação para trabalhar com geometria e em particular com geometria dedutiva. Foi possível verificar que todos os professores que participaram da pesquisa concordam com o fato de que os livros didáticos “não apresentam demonstrações de teoremas” e que além disso nos cursos de formação de professores de Matemática também “não se ensina geometria demonstrativa”. Mas, pelo contrário, não é difícil verificar que a maioria desses livros didáticos, normalmente, apresenta algumas demonstrações de teoremas, mas mesmo essas poucas demonstrações parecem não ser “as demonstrações” mencionadas e esperadas pelos professores. Com relação aos cursos de graduação, sabe-se que normalmente são poucas as disciplinas da área de geometria, mas nelas, normalmente, é dado maior ênfase para a organização dedutiva da geometria. Assim sendo, provavelmente os argumentos descritos pelos professores se referem às demonstrações geométricas numa acepção diferente daquela vista na linguagem matemática.

Elementos de síntese

A tentativa de busca de um significado para o ensino da geometria e em particular dos procedimentos de utilização do raciocínio lógico-dedutivo, através dos atos intencionais do professor de matemática, foi o objeto principal desta investigação. A interpretação do discurso descritivo do professor levou à constatação de que, no contexto da atual realidade da educação matemática, esse fenômeno se constitui de uma natureza essencialmente polissêmica, apresentando uma estrutura composta de aspectos múltiplos. O processo de formação do professor de matemática é apenas uma componente dessa estrutura fenomenal. Mas esse próprio processo, em si mesmo, é também constituído por uma diversidade de aspectos relevantes para a compreensão das questões propostas por essa pesquisa. Na própria concepção de ciência, que fundamentaria essa formação do professor, deve-se destacar um duplo desafio: Por um lado, trata-se da necessidade de empreender um esforço considerável para não reduzir essa ciência, que no caso dessa pesquisa é a Geometria Euclidiana Plana e Espacial, a uma dimensão empírica e subjetiva, que induziria à ilusão da possibilidade de um ensino centrado somente no nível intuitivo e experimental. Por outro lado, se impõe a necessidade de buscar, na prática pedagógica, uma abordagem de ciência de forma não polarizada e exclusivamente voltada para uma visão objetiva, autônoma e desvinculada do mundo da vida, com o risco de se cair num formalismo vazio desprovido de um sentido educacional para o homem encarnado e situado. Em síntese, o ensino da geometria, quer seja a nível de Ensino Fundamental e Médio, deve contemplar uma valorização mais significativa do trabalho pedagógico com o processo de validação do conhecimento geométrico. Acreditamos que a prática de produção e de reprodução de provas e demonstrações geométricas, neste nível de escolaridade, contribui de uma forma importante para a formação de um tipo de raciocínio fundamental à construção do conhecimento científico. Por outro lado esta pesquisa revelou que a maioria dos professores pesquisados não tem uma visão da importância desta lógica dedutiva e conseqüentemente retorna-se à questões essenciais que estruturam o atual processo de formação desses professores.
 
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