Legado das culturas: saber(es) ler e escrever.
J B Pereira – 15/03/2015.
“Dos filhos de Coré. Do mestre de canto. Sobre a Ária: ‘Os lírios ...’
Meu coração transborda em belo poema. (...)
Minha língua é ágil pena de escritor. (...)
Cavalgue vitorioso pela causa da verdade...” (Salmo 45 (44))
Hoje, reconhecemos o sociointeracionismo. Por muito tempo, acreditava-se que as crianças imitavam os adultos. Sabemos que o exemplo dos adultos é fundamento ético e emocional para a inteligência das crianças. Contudo, a cultura de alguma maneira ou poderosamente tem seu poder de nos condicionar e formatar nossas mentes e conduzir o pensar.
Nesse princípio, a neurociência pode engatinhar na ação da mente que faz sua “leitura” da realidade, também uma forma de construção da cultura. Nenhuma cultura é autossuficiente nem a formação das pessoas. Somos um elo ou rede de nós, herdamos valores, atitudes e condicionamentos. Um dos valores das sociedades letradas é o domínio do código ou da língua, que também se transforma no tempo e no espaço histórico. As línguas como as culturas se interpenetram e sobrevivem quando os seus nativos ou não a utilizam nas condições históricas da convivialidade, escolaridade, formas informais de comunicação, virtualidade, imagética, comércio, arte, cultura, religiosidade, dança, esportes, outras linguagens das novas e antigas tecnologias, dentre outros motivos ou fatores sociocomunicativos ou sistêmicos, genéticos e históricos.
A linguagem humana em sua complexidade e diversidade, adversidade e transformação se aprimorou à medida que o ser humano a utilizava em diversos contextos e necessidades. As demandas da língua são de mão dupla: o individuo interagem em sociedade. E os grupos se posicionam ideológica e economicamente em linguagem como poder e status quo. Como elemento identitário e grupal, a capacidade de se apropriar de resultados e da alteridade torna a língua um culto de sutilidades e barbarismos. Do latim, veio a língua portuguesa, uma longa história.
Nosso sistema alfabético vem uma ligação umbilical com os fenícios e os latinos. Na numeração uma afinidade com os árabes e sua carnavalização com muitas culturas que se imbricaram historicamente. O hibridismo linguístico e cultural configurou um perfil multifacetado do idioma brasileiro, diferente da língua portuguesa de Portugal.
E a gramática, na verdade, várias gramáticas se construíram na colonização do Brasil: até o século XIX, o bilinguismo era nosso registro tupi-guarani e português. Contudo, Portugal obrigou a colônia falar o português lusitano. E os idiomas indígenas e banto foram rechaçados.
E com o tempo, as escolas e a imprensa régia surgiram. E só recentemente, as massas têm tido acesso a educação formal. A qualidade de ensino é outra demanda atual. Ainda professores são mal pagos e a educação vive de crises infraestruturais e conjunturais por muitos motivos, o mais crítico é o político. Educação é inevitavelmente investimento, porquanto tem a ver com economia política. E a educação é também política educativa, passa pelo viés de decisões entre grupos e demandas entre as classes. Pode-se inferior diferentes formatos de educação: dos ricos, dos pobres, do centro, da periferia, das instituições confessionais, das leigas ou (multi)estatais, da elite, do povo, dos burgueses e não burgueses... Pelo ato de educar, a escola reproduz ou não o sistema em que está inserida. Ela pode ser condição de reinvindicação, de manutenção de poderes, de renovação e de buscas de novos parâmetros.
Educar é um desafio; é ajudar o outro ser ele mesmo. É dizer por que somos tão singulares e tão autodependentes. É passar valores e etiquetas, condicionamentos e questionamentos... É descobrir-se diferentes e tão iguais perante Deus, o cosmos e a lei.
O principio de escolarizar-se é antigo, mas é tão novo e recente depois que as revoluções burguesas se avançaram em seus esforços, paradigmas românticos de liberdade, igualdade e liberdade. E é a educação tão paradoxal quanto o sistema que a alinhava! Forjar pessoas é um evento e por toda vida, até a morte, uma trajetória cujo roteiro muda de décadas e séculos. E mudar mentalidades pode levar séculos e milênios. Antes, a educação era de pessoas da corte e da religião, dos poderosos e seus ministros e conselheiros como no antigo Egito com seu registro hieroglífico e desde os sumérios-acádios e os babilônios com a escrita cuneiforme. Na idade média, reis e rainhas precisavam do trovador para escrever suas cantigas. Tabuinhas de pedra, madeira, argila eram comuns nos comandos militares e nos copistas sagrados do antigo mundo. Depois, os pergaminhos assumiram a dianteira. Mas, o papel só veio à tona com as invenções chinesas – uma mistura de estopas, linhos e seda, em que os mandarins registravam suas leis e sutras. E J. Gutemberg fez uma genial proeza técnica – ainda que manual - entre as invenções chinesas e a demanda ocidental de escrever em maior escala, dando a origem à moderna imprensa alemã. E a partir disso, o mundo viu aparecer o livro no lugar de papiros e pergaminhos e rolos antigos – tão usados no mundo antigo por povos como Israel e todo oriente médio como a Arábia e o extremo oriental da Índia e China.
Com as revoluções industriais, a celulose aperfeiçoou o papel chinês – rude e grosso – na folha de papel. Rapidamente a imprensa caminhava em alta escala de produção de livros e novas livrarias e bibliotecas se expandiram na Europa e América.
Do método da palmatória aos modernos sistemas educacionais, agora com as novas tecnologias, a escola vai assumindo perfis diferenciados. Contudo, o povo tem acesso à educação formal com híbridos modelos, do tradicional ao mais (neo)liberal e tecnocrático. Da escola nova à nova escola! Nova escola de conteúdos críticos sociais para diferentes grupos e classes sociais. A educação nunca é a mesma à medida que, quando se ensina, existem valores e conteúdos assimilados coletivamente; mas nunca são tão pacíficos se vistos mais atentamente na sua assimilação individual e pessoal. Cada pessoa parece apropriar da escrita, da leitura e da interação social e da escola a partir de suas necessidades, condições, temperamento, personalidade, Inteligência emocional ou multifocal. As inteligências e as pessoas não são iguais – e a escola ainda age como se fôssemos feitos em série. Somos, assim, tanto ensinantes como aprendentes. E educar é um processo maior e menor, sutil e poderoso, nunca isolado do sistema e sua cultura formatadora, um jeito de ser e viver, pensar e agir de tal modo que nos adaptamos às adversidades e nos mostramos no melhor de nossos dons, talentos, competências e habilidades. Porque educação significa “ex-ducere”: deixar viver ao exterior ou à mente a energia de ser e pensar, de ser mais que ter. Educar é manifestar quem somos e por que vivemos em sociedade, é uma forma de sobreviver e ser útil, de se valer dos outros e de nos posicionarmos no jogo de formas e forças em que vivemos e nos construímos como diferentes e cidadãos de hoje e do futuro.
De leitores da vida, passamos a nos ler. De ler o mundo, passamos a ler livros. E quando se quer deletar e queimar livros, pode-se temer queimar também seus autores e gente de pensar diferente do sistema. Historicamente, livros foram queimados: na inquisição, no nazismo, nas revoluções... E as mesmas revoluções imprimiram e lançaram livros, outros e mais livros. Fizeram silabus, listas de proibidos livros.
Somos mais livres quando temos o suporte de bons livros. Nunca o suporte eletrovirtual pode substituir livros. Se os sistemas e tecnologias entrarem em colapso, o livro ainda pode sobrevir a tudo isso.
Nem sempre as comunidades e jovens reconhecem o valor da leitura e de sua escrita, ou a escrita do outro. É uma alienação e engano! Não sabem ou ignoram saber a relevância do ato de ler, escrever que os levam a outros lugares e condições. Temem ler por talvez depararem com outros modelos e exigências. Acham que a leitura os feminizará. Ou terão de ler para dizer algo mais: dizem “não estou a fim...” O ritual da escola ou da sociedade de consumo não prioriza a leitura, os sistemas virtuais e a televisão deixam pronta a mensagem com atrativos sonoros e coloridos, capazes de seduzir os sentidos e a mente. E nos tornamos aos poucos alienados e acomodados à imediaticidade da imagem e do som. E a cultura icônica com seu mérito ou não pode e deve ser ponderada e criticada em sua intencionalidade e performance pela formação de cidadãos leitores e escritores.
Mas do que rotular um hábito (talvez em oposição simplista com o vício e a dependência da mente e os condicionamentos do corpo), a leitura se constitui um complexo comportamento social e pessoal. Ativa todo o ser e o corpo. Interagem-se pessoas e demanda tempo e energia para o seu entendimento e alcance satisfatório. Não há uma leitura prazerosa imediata se não houver motivação. O professor incentiva, mas não consegue motivar as sinapses de que a leitura exige. Com o tempo, o amadurecimento, a vida social e a profissão, a necessidade de estudar depois de formado, essas e outras situações podem fazer o despertar da leitura e da escrita. Ora, nem todos despertaram igualmente em tempo, ritmo, condições e interesse pela leitura. Se tiver leitura, será de níveis e temáticas diferentes para cada um, sua idade, seu sexo, seu mundo interior, os apelos da cultura e de suas viagens, da moda, da sobrevivência, do mercado de trabalho, da profissão... Sim, os jovens leem em novos formatos e têm acesso à celulares e internet em tempo online e integral... Nem sempre a leitura que queremos deles é a que querem...
Se pedir que abram o facebook, logo revelam entusiasmos e querem se conectarem com os amigos. E lá escrevem num formato diferente daquele que a escola e a sociedade propõem. E vemos que a tecnologia e o mercado são mais poderosos do que a escola. E professor se tente frustrado diante de sua ação de lecionar quando se engaja sozinho no mundo de livros didáticos e da biblioteca. Talvez ainda aí os estudantes encontrem motivos para ler, conversar, rir, escrever, encontrar um livro diferente, um romance, um mangá, uma HQ, um novo formato de livro, um livro esquisito, um livro estranho, um livro esquecido... e empoeirado... na biblioteca, em casa, na rua, sei lá onde!
Cada geração tem suas preferências e resistências... Nesse sentido, é a leitura do professor e a escola que devem fazer uma leitura rastreadora de motivos e motivações de cada geração. E novos leitores e escritores surgirão quando ainda tivermos paciência e esperança de educar... orientar... direcionar... e descobrir os talentos e valores sutis ou não de cada estudante em formação... Hoje uma geração surfa a internet; amanhã outra terá sua própria identidade e resistência... E mundo nunca será o mesmo e igual...