LEI 10639/03: POR QUE ELA É TÃO NECESSÁRIA?
LEI 10639/03: POR QUE ELA É TÃO NECESSÁRIA?
A lei 10639/03, altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 9394/96 – que propõe a obrigatoriedade de inclusão curricular do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica e dá outras providências:
Art. 1o A Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos. 26-A, 79-A e 79-B:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileira.
§ 3o (VETADO)"
"Art. 79-A. (VETADO)"
"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra.
O que a lei dispõe é que o estudo da Cultura e História Africana e Afro brasileira auxilia discentes e docentes, a perceber as contribuições do povo negro na economia, sociedade e política no Brasil, e suas reais contribuições para a construção da nação brasileira.
Durante muito tempo nas escolas públicas brasileiras, e ainda hoje mesmo com o advento da lei 10639/03, os estudantes negros, pretos e pardos, não encontraram/encontram elementos de identificação nas paredes das salas de aula. A decoração que os professores faziam, mostravam sempre desenhos e bonecos confeccionados em E.V.A. que demonstravam a natureza eurocêntrica da educação. Os lindos enfeites contavam com representações de meninos e meninas brancos/brancas, cabelos loiros e lisos e olhos claros. Não obstante, os educandos afrodescendentes coloriam os seus desenhos dentro desta perspectiva de beleza: pele branca, olhos azuis ou verdes e cabelos lisos e claros.
E a sua sala de aula, professor, será território neutro? [...] Pense nos livros que a turma lê. Eles mostram famílias negras de classe média, felizes e bem-sucedidas? Têm príncipes, reis e rainhas que não sejam brancos? Você não acha isso um problema? Então imagine o que significa ser despertado para o prazer da leitura sem ver sua raça representada de forma positiva nas páginas dos livros. (BENCINI, p.1)
Chimamanda Adichie, escritora nigeriana, fala sobre o perigo de ser submetida à só uma cultura, e só uma história diferente da própria cultura e história, o que nos leva a enxergar apenas aquele mundo no qual somos submetidos. Em seu texto “O perigo de uma história única”, ela alerta que esta exposição faz com que o sujeito perca sua identidade.
Todos os meus personagens eram brancos de olhos azuis. Eles brincavam na neve. Comiam maçãs. (Risos da plateia) E eles falavam muito sobre o tempo, em como era maravilhoso o sol ter aparecido. (Risos da plateia), apesar do fato que eu morava na Nigéria. (ADICHIE, p.1)
O constante contato com personagens que eram diferentes de todo o círculo familiar e de amigos, colegas de escola e dela mesma, a fez perceber e apreciar mais um mundo que era diferente do seu mundo. O mesmo acontece com as crianças na escola. As histórias contadas pelos professores, fala da Branca de Neve, Bela Adormecida, Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, com príncipes, reis, rainhas todos os personagens brancos.
A meu ver, o que isso demonstra é como nós somos impressionáveis e vulneráveis em face de uma história, principalmente quando somos crianças. Porque tudo que eu havia lido eram livros nos quais as personagens eram estrangeiras, eu convenci-me de que os livros, por sua própria natureza, tinham que ter estrangeiros e tinham que ser sobre coisas com as quais eu não podia me identificar. (ADICHIE, p.1).
Os livros didáticos também mostravam o sucesso apenas com as personagens brancas. Quando as personagens negras apareciam eram estereotipadas. O negro sempre era apontado apenas como o escravo, o branco era o capataz, o fazendeiro. Se era para falar do mundo do trabalho, o dentista, o médico, o advogado era branco, ao passo que a doméstica, o pedreiro, o servente, o gari, o pobre coitado era negro. O negro também aparecia na figura do malandro e da mulata, como se fosse essa a única história do negro. O que se percebe é que
Em geral, em nossas escolas os conteúdos de história brasileira contam apenas uma versão dos fatos históricos, pautada numa visão euro centrista da descoberta de nosso país e do desenrolar da economia daquela época, apresentando a história do negro apenas por meio do negro escravo, do tráfico negreiro, um pouco das senzalas e muito pouco ou quase nada do modo de vida e da ascendência africana. (COUTINHO, BARREIROS, SILVA e outros, 2008, p.76)
O livro didático serve de aparelhamento estatal, uma vez que contribui para a manutenção das desigualdades e consequentemente sufoca as diversidades, que nos é tão própria e, porque não, necessária, afinal parafraseando CANDAU ( 2008, p.3), temos todos o direito de ser diferente e ainda mais de afirmar nossas diferenças. O livro didático quando divulga o conjunto de representações caricaturadas sobre um povo, reforça ideologias que já deveriam ter sido suprimidas pelas lutas constantes e vivazes do movimento negro no Brasil. SILVA e MARTINS 2011, alegam:
Ao veicular o negro de maneira estereotipada, o livro didático contribui para difundir uma representação negativa desse povo em contraposição à imagem do branco, sempre salutar. Percebe-se, nas entrelinhas dos discursos, a ideologia do branqueamento que marcou a história da elite brasileira. [...]
A violência é tônica geral que marca as imagens reproduzidas nos livros didáticos de história. Quando a imagem não retrata o negro sofrendo violência física, mostra-o de maneira aviltante, vulgar, desengonçado, caricatural, seminu e, quase sempre, trabalhando duramente sob a vigilância de um capataz armado. (SILVA e MARTINS, 2011, p.1; p.6).
Essas atitudes do sistema educacional só ampliavam e ampliam (afinal, ainda não foram abolidas) a desvalorização do educando negro, tanto por educandos brancos quanto por eles próprios, os negros, pois acabam por absorver uma visão reducionista das contribuições do negro na sociedade brasileira, ou ainda pior, a imagem reducionista pode vir acompanhada por uma visão negativa, pois para muitos a presença do negro no território brasileiro traria ou traz prejuízos para a nação, tanto em termos de economia como em segurança.
Kenneth B. Clark e Mamie P. Clark (1947), psicólogos norte-americanos, desenvolveram um estudo para verificar como as crianças brancas e negras se viam. O estudo de nome “Black doll and White doll Experiment”, foi realizado em 1947, e mostra um grupo de crianças (negras e brancas) entre 3 a 7 anos de idade, que em uma sala encontravam sobre a mesa duas bonecas: uma representante da raça negra e outra branca. As crianças responderam a perguntas simples, objetivando que demonstrassem sua opinião a respeito das questões de cor.
“Mostre- me qual boneca você gosta mais? Qual boneca é mais legal? Qual boneca tem a cor mais bonita?” Todas as crianças apontaram para a boneca branca. “Mostre- me qual boneca é má?” Todos apontaram a boneca negra. Então surge o conflito: “Mostre-me qual boneca se parece com você?” As crianças negras, com olhar triste, constataram que a boneca feia e má era parecida com elas. Houve uma releitura do experimento há alguns anos, e os resultados se repetiram como é possível verificar no vídeo Doll test .
As crianças que apontaram a boneca branca como boa e legal, disseram que assim é porque sua pele é branca e os olhos bonitos, da mesma forma que a boneca negra só é feia e má porque é negra.
Kenneth B. Clark e Mamie P. Clark (1947), apontam que as respostas das crianças podem refletir, na verdade, que o quadro de desigualdades que há entre negros e brancos são percebidas pelas crianças desde muito cedo e levanta a problemática:
The questions arises as to whether choice of the brown doll or of the white doll, particularly in response to questions 5 and 6, really reveals a knowledge of “racial diferences” or simply indicates a learned perceptual reaction to the concepts of “colored” and “white.”(CLARK, CLARK, 1947, p. 2-3)
Diante desses relatos, não é possível isentar os sistemas educacionais de sua responsabilidade como perpetuador das desigualdades e da desvalorização do educando negro, como bem elucida Abdias do Nascimento:
O sistema educacional [brasileiro] é usado como aparelhamento de controle nesta estrutura de discriminação cultural. Em todos os níveis do ensino brasileiro – elementar, secundário, universitário – o elenco das matérias ensinadas, como se se executasse o que havia predito a frase de Sílvio Romero, constitui um ritual da formalidade e da ostentação da Europa, e, mais recentemente, dos Estados Unidos. Se consciência é memória e futuro, quando e onde está a memória africana, parte inalienável da consciência brasileira? Onde e quando a história da África, o desenvolvimento de suas culturas e civilizações, as características, do seu povo, foram ou são ensinadas nas escolas brasileiras? Quando há alguma referência ao africano ou negro, é no sentido do afastamento e da alienação da identidade negra. Tampouco na universidade brasileira o mundo negro-africano tem acesso. O modelo europeu ou norte-americano se repete, e as populações afro-brasileiras são tangidas para longe do chão universitário como gado leproso. Falar em identidade negra numa universidade do é o que provocar todas as iras do inferno, e constitui um difícil desafio aos raros universitários afro-brasileiros (NASCIMENTO, 1978, p.95).
Então, o que se busca é a mudança de paradigma dos sistemas educacionais, para que estes sirvam para o combate da discriminação e do racismo, possibilitando que todo e qualquer educando, em todos os níveis de escolaridade, sinta-se pertencentes a unidade escolar e universitária, bem como aos processos de ensino-aprendizagem, e a memória reducionista da participação do negro em nossa sociedade seja finalmente mudada.
O negro que era lembrado somente como escravo, diante da implantação da Lei 10.639/03, traz à luz a visão de um processo dinâmico, do negro como sujeito atuante na sociedade. (SANTOS e ANDRADE, 2012, p. 6).
Recorrendo outra vez ao importante questionamento de Abdias do Nascimento, que é ainda tão atual, “Se consciência é memória e futuro, e onde está a memória africana, parte inalienável da consciência brasileira?” Podemos pensar a grande importância da lei 10639/03, que vem com o intuito de possibilitar que esta história antes sufocada pelas histórias de outros povos que não eram os povos africanos e afro-brasileiros, seja contada, para que o estudante negro possa sentir-se parte do processo educativo, ao conhecer seus heróis e heroínas, sua história e cultura, e perceber que esta figura caricaturada que sempre foi usada para representar o negro, na verdade é apenas uma história, pois tem a outra história, dos que lutaram, conseguiram sua liberdade, se divertiam mesmo nas senzalas, com suas danças, sua arte, sua manifestação religiosa. É o reconhecido de sua memória, é o apropriar-se de sua cultura e história, é o empoderar-se de si mesmo. E a partir de então o educando possa se reconhecer como alguém de valor, e perceber que sua pele é bonita, seus traços, seus cabelos crespos fazem parte de sua identidade, uma identidade de um povo forte. E enfim possa atingir o que alcançou chimamanda Adichie, quando afirma:
Eu percebi que pessoas como eu, meninas com a pele da cor de chocolate, cujos cabelos crespos não poderiam formar rabos-de-cavalo, também podiam existir na literatura. Eu comecei a escrever sobre coisas que eu reconhecia. Bem, eu amava aqueles livros americanos e britânicos que eu lia. Eles mexiam com a minha imaginação, me abriam novos mundos. Mas a consequência inesperada foi que eu não sabia que pessoas como eu podiam existir na literatura. Então o que a descoberta dos escritores africanos fez por mim foi: salvou- me de ter uma única história sobre o que os livros são. (ADICHIE, p.1)
A lei 10639/03 é necessária, pois promove a estima dos estudantes afro-brasileiros, para que assim como Chimamanda Adichie eles possam perceber-se também como alguém que pode existir em todas as esferas da sociedade, com uma história diferente da que foi contada até aqui.