Educação Sexual: redescobrindo identidades na prática crítico-filosófica dos pressupostos freireanos

Resumo

O presente artigo traz como proposta pedagógica a prática crítico-filosófica da Educação Sexual com pressupostos freireanos, aplicada em duas escolas públicas de Belém(PA) através do Grupo de Estudo e Trabalho em Educação Freireana e Sexualidade – GETEFS, vinculado ao Núcleo de Educação Popular Paulo Freire – NEP. Trata-se de uma pesquisa-ação, de abordagem qualitativa, realizada a partir da implantação de grupos de discussão em turmas do Ensino Fundamental e Médio, em duas escolas de Belém(PA), acompanhadas ao longo de um ano letivo, buscando a relação dos saberes curriculares com os conceitos existentes, prévios ou escolarizados, sobre sexualidade. Os sujeitos participantes são educandos dos 3º e 5º anos do Ensino Fundamental e do 3º ano do Ensino Médio, com idades entre oito e dezenove anos. Para sistematização e coleta de dados foram construídas categorias temáticas. Entre os resultados desta pesquisa destacamos a dialogicidade atingida ao longo da prática, tanto com os alunos quanto a partir deles e de suas vivências, confirmando a filosofia crítica e os pressupostos freireanos como instrumentos viáveis para uma prática transversal e interdisciplinar que permitiram aos educandos uma compreensão maior da realidade na qual estão inseridos e as relações de poder que as constituem. Igualmente, ressaltamos relatos pessoais de casos de violência doméstica e sexual, e mudanças de comportamento da maioria dos alunos em relação à sua visão do outro e de si mesmos, alterando as relações interpessoais no espaço escolar.

Palavras-chave: Sexualidade, pressupostos Freireanos, Pedagogia, Filosofia, Educação Sexual

Abstract

This article brings to pedagogical practice critical- philosophical Sexual Education with Freire's assumptions applied in two public schools in Bethlehem ( PA ) by the Study Group on Education and Labor Freirean and Sexuality - GETEFS , linked to the Center for Popular Education Paulo Freire - NEP . This is an action research , qualitative study , carried out after the implementation of discussion groups in classes from elementary and high school , two schools in Bethlehem ( PA ) , followed over a school year , seeking relationship of curricular knowledge with existing concepts , previous or educated about sexuality . The participants are students of 3rd and 5th year of elementary school and 3rd year of high school , aged between eight and nineteen. To systematize and data collection were built themes . Among the results of this research highlight dialogicity achieved over the practice, both with the students and from them and their experiences, confirming the critical philosophy and assumptions Freirean as viable instruments for a transversal and interdisciplinary practice which allowed the students an understanding greater reality to which they belong and the power relations that constitute them . Likewise, we emphasize personal accounts of cases of domestic and sexual violence , and changes in behavior of most students regarding their view of the other and of themselves , changing interpersonal relationships within the school .

Keywords : Sexuality , Freire's assumptions , Pedagogy , Philosophy , Sex Education

Introdução:

A sexualidade humana transita pelas escolas brasileiras, públicas e privadas, sem que lhe seja dada a devida relevância. Crianças, adolescentes e jovens entram e saem das instituições educacionais com as mesmas dúvidas, geração após geração. Os gestores limitam seu papel de educadores sexuais a palestras médicas sobre saúde, órgãos genitais, drogas, AIDS, DSTs e gravidez precoce, sem acompanhar o próprio tempo e tornando a escola, cada vez mais, um espaço dessexualizado e dessexualizante dos sujeitos que a constituem. A prática aqui apresentada pelo GETEFS, consiste em estratégia metodológica de uma pesquisa-ação de abordagem qualitativa, surgido a partir de uma pesquisa de TCC iniciada em 2012, na qual foram implantados grupos de discussão em turmas do Ensino Fundamental e Médio, acompanhadas ao longo de um ano letivo, buscando trabalhar a relação dos saberes curriculares com os conceitos existentes, prévios ou escolarizados, sobre sexualidade, prática que se estendeu a outras duas escolas públicas, aqui chamadas de Escola 1 e Escola 2.

Ao longo de um ano letivo, as pesquisadoras registraram conceitos, tabus, opiniões individuais e coletivas desses sujeitos e propuseram novas situações, confrontando as opiniões postas com outras possibilidades, propiciando o surgimento da criticidade dos educandos e utilizando os saberes dos próprios educandos como instrumentos dialógicos. Aqui evidenciamos os dois elementos principais de nossa práxis: a atitude filosófica que desenvolve a criticidade e a compreensão de si mesmo e do meio, e os pressupostos freireanos que questionam e instigam a prática docente, dando ênfase aos saberes extra-escolares do educando e buscando relacioná-los aos saberes escolarizados.

Entendemos que a sexualidade, mais do que o ato sexual em si, é o meio de diálogo entre o sujeito, o meio e a sociedade. Não podemos conceber, então, que a sexualidade seja limitada à biologicidade ou à prevenção de doenças, quando é vista, por nós, como elemento de identidade, como resultante de um processo cultural, histórico, religioso, sociológico e ético.

Para Bernardi (1985) a escola é uma instituição que acredita estar realizando Educação Sexual, mas que, na verdade, estaria transmitindo nada menos que “uma informação desencorajante e enfadonha, acompanhada de normas que visam salvaguardar as instituições”(p.29). Para o autor, a preocupação real da Educação Sexual aplicada nas escolas não é preparar os educandos para a vivência plena e saudável da sexualidade, mas sim, dogmatizá-los em regras morais impostas pela sociedade, que venham a garantir a manutenção das organizações institucionalizadas, ou seja, a manutenção do modelo político-econômico vigente.

Não podemos deixar de atribuir-lhe razão ao verificar que as normas morais impostas aos sujeitos, no tocante à vivência da sexualidade, seguem um domínio desses indivíduos e garantem a manutenção de poderes.

Historicamente os professores são preparados para ensinar as disciplinas fragmentadamente, como afirma Lombardi (2003), em uma representação da própria fragmentação da sociedade na qual estamos inseridos. Segundo o autor,

[...] quando se fala em trabalho interdisciplinar na escola é preciso tomar cuidado para não se ocultar toda essa realidade, colocando-o como um recurso que se poderia sobrepor a toda essa trajetória histórica da fragmentação da sociedade, do trabalho, das ciências, das universidades, da profissão e da própria escola” (LOMBARDI, 2003, p.181)

A fragmentação social, para Lombardi, se reflete no processo escolar, quando as disciplinas são ensinadas sem que seja posta entre elas qualquer relação. Os elementos sociais, segundo o autor, são vistos da mesma forma, desvinculados, individualizados e, portanto, as lutas sociais também passam a ser realizadas fragmentadamente. Essa fragmentação, ainda segundo o autor, tem reflexos sobre a sexualidade e os demais temas transversais (ética, religiosidade, cultura, música), que foram erroneamente desvinculados do processo escolar, como se não fizessem parte da vivência dos sujeitos, como se não estivessem diretamente relacionados à constituição do indivíduo em si. Uma transdisciplinaridade negada pela prática educativa e que contribui para uma sexualidade fragmentada, contida, controlada e inconsistente.

1. A Sexualidade em Paulo Freire – do cientificismo à dialogicidade

Apesar de não haverem registros diretos de Paulo Freire sobre a sexualidade humana ou a Educação Sexual, a referência que fazemos utilizando o autor deve-se à dialogicidade, à prática docente e à valorização dos saberes do educando por parte do processo educacional, elementos que constituem Educação Popular, por ele instituída.

Segundo o autor, a educação dialógica parte da compreensão que os alunos têm de suas experiências de vida cotidiana, do concreto, do senso comum, para chegar a uma compreensão rigorosa da realidade. Para ele

O rigor científico vem de um esforço para superar uma compreensão ingênua do mundo. A ciência sobrepõe o pensamento crítico àquilo que observamos na realidade, a partir do senso comum. (FREIRE, 1986, p.69)

Desta forma, o autor coloca em questionamento a prática educativa que põe como verdade apenas o que nos é cientificamente apresentado ou comprovado e que nega tudo o que não lhe seja consenso. Assim, o que os educandos trazem como saberes de seu convívio social e familiar passa a ser ignorado, negado e criticado duramente pelos educadores e pela escola, atingindo a formação identitária desse sujeito e provocando a aculturação ou a evasão escolar. Dentre os saberes negados pelas instituições escolares, e que fazem parte dessas vivências familiar e socialmente constituídas, está a sexualidade.

O senso comum, no qual a sexualidade transita é considerado base de vivências e experiências que constituem o conhecimento do indivíduo, e passa a utilizar-se dele para construir a criticidade como afirma Freire ao dizer que,

Como presenças no mundo, os seres humanos são corpos conscientes que o transformam, agindo e pensando, o que os permite conhecer ao nível reflexivo. Precisamente por causa disto podemos tomar nossa própria presença no mundo como objeto de nossa análise crítica. Daí que, voltando-nos sobre as experiências anteriores, possamos conhecer o conhecimento que nelas tivemos. (FREIRE, 1981, p.72)

Assim, a prática não é negar o senso comum, mas criticizar a realidade e configurar conceitos a partir dele. O que o educando traz como “bagagem” não deve ser ignorado pela escola, mas utilizado por ela para gerar novas experiências, novas possibilidades dialógicas e, a partir dessas, que o educando confirme ou refute seus conceitos. A sexualidade em Freire, portanto, deve ser entendida como integrante do senso comum e trabalhada pela escola como um saber a ser ampliado, apresentando-lhe novos elementos para que o educando compreenda os elementos que a constituem, as relações de poder que a permeiam e possa questionar sua própria visão a respeito do senso comum que a constitui.

Nesse sentido, a proposta freireana para a Educação Sexual é, através de certas contradições sua condição de opressão, de privação de direitos, de significação que exige do sujeito uma ação, uma resposta. Assim, “a ação educativa e política não pode prescindir do conhecimento crítico dessa situação, sob a pena de se fazer bancária ou de pregar no deserto” (FREIRE, 1977, p.102).

O que observamos nas salas de aula é justamente esse “pregar no deserto”, pois os conteúdos utilizados e impostos pela escola tornam-se tão castradores, privadores da liberdade do “ser mais” que humaniza o sujeito, que se tornam desinteressantes, enfadonhos para o educando e não surtem efeito algum.

É de conhecimento comum a curiosidade infantil, e esta não pode ser perdida por um educador. A curiosidade é o ponto de partida para o desenvolvimento filosófico de uma criança, à medida que as respostas puxam novas perguntas, damos a ela o poder de criticisar a informação.

Da mesma forma se trata diversos assuntos dentro do tema sexualidade. Conforme o aluno recebe informações, ele amplia sua capacidade de criticar a anterior, o que Paulo Freire chamou de autonomia.

“A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta faz parte integrante do fenômeno vital. Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos”. (Freire, p.32, 1996)

A autonomia reconhece a capacidade do aluno escolher suas preferências, e identificar os seus momentos, e este torna-se um impasse para o professor, se este fechar seu pensamento numa educação bancária, onde o aluno perde toda esta capacidade de autonomia, e participa do contexto escolar apenas recebendo informações sem dialogar com elas. Entende-se aqui uma contradição não mais aceitável, observando o conteúdo recebido fora da escola, o aluno não pode mais ser entendido como aberto apenas aos ensinamentos do professor

“Em verdade, não seria possível à educação problematizadora, que rompe com os esquemas verticais característicos da educação bancária, realizar-se como prática da liberdade, sem superar a contradição entre o educador e os educandos. Como também não lhe seria possível fazê-lo fora do diálogo. É através deste que se opera a superação de que resulta um termo novo: não mais educador do educando do educador, mas educador-educando com educando-educador. Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que enquanto educa, é educado, em dialogo com o educando, que ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os ‘argumentos de autoridade’ já, não valem. Em que, para ser-se, funcionalmente, autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas. Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão mediatizados pelo mundo”. (Freire, p.39, 1987)

O educador em Freire não é visto como detentor de saberes, mas como mediador entre tais saberes e os sujeitos. Desta forma, não falamos em Orientação Sexual, pois entendemos que orientar seja direcionar, e a sexualidade não pode ser guiada pelo educador. Temos a clareza da Educação como mediadora e, portanto, fornecedora de instrumentos e elementos para que o educando chegue a uma conclusão sobre seus próprios conceitos, podendo ser estes iguais aos do educador, ou opostos aos dele.

2. A construção do pensamento crítico-filosófico

O maior problema existente na prática da Educação Sexual é a forma como conseguir que o educando questione o que já está imposto e possa procurar novas possibilidades. A sexualidade da forma como vem sendo tratada pela escola, limita-se a apenas reproduzir regras sociais que, na maioria das vezes, conflita com os interesses dos educandos e, portanto, torna-se obsoleta às suas experiências.

Se partimos do ponto de que a crítica surge do pensamento, da não aceitação inicial de regras e da visão do homem sobre si, sobre o outro e sobre o seu meio, então nos é fácil compreender que as questões referentes à sexualidade, já que são controladas pelo senso comum, também estejam suscetíveis à mesma negação.

O adolescente e o jovem naturalmente negam o que não lhes é claramente justificável e passa a “infringir” as regras. Na verdade ele procura uma outra forma de compreender as coisas e a escola não está acompanhando tal evolução, pois quer responder as questões sexuais de uma mesma forma e sem ser questionada sobre isso.

Chauí (1999, p.12), afirma que “a primeira característica da atitude filosófica é negativa, isto é, dizer não ao senso comum, aos pré-conceitos, aos pré-juízos, aos fatos e às ideias da experiência cotidiana, ao que todo mundo diz e pensa, ao estabelecido”. Apesar de não negarmos o senso comum, como já foi esclarecido anteriormente, concordamos com a autora quanto à necessidade dessa primeira negativa e trazemos, assim, o segundo elemento de nossa prática: a Filosofia, o pensamento crítico que nega o que está pré-estabelecido e que ocasiona mudanças.

Nunes (1996) explica a relação da Filosofia com a sexualidade como “um resgate do conceito de ‘dialética’ na tradição própria da construção social e histórica da Filosofia”. O autor ainda defende a atitude política de buscar “romper com o pensamento dominante sobre a sexualidade, que pretende reduzi-la a um amontoado de noções biologistas, instintivas ou institucionais morais”, compreendendo a sexualidade através das relações sociais e culturais historicamente construídas, “em uma concepção de realidade, de mundo, uma visão de homem e da história”, superando o senso comum. (NUNES, 1996, p.10)

A Educação Sexual não acontece quando os sujeitos que a instrumentalizam não são incentivados a dialogá-la, problematizá-la e refletir sobre ela. Sem o diálogo construído pela práxis educativa, a sexualidade passa a ser manipulada, dirigida pela unilateralidade do educador e perde sua função crítica e transformadora.

Oliveira (2003) completa esta definição quando afirma que a visão de mundo de cada ser humano é “produto de seus questionamentos e reflexões sobre as ações, os sentimentos e as ideias extraídas da vivência cotidiana e geradas pela curiosidade” (p.24). E a curiosidade nada mais é do que o “motor” que movimenta as crianças e adolescentes na busca de sua própria identidade, uma identidade que também se forma na construção de sua sexualidade.

A partir do ponto em que consideramos que a criticidade do sujeito se constitui de sua capacidade de dialogar com os problemas de sua realidade vivenciando-os e negando-se à mera contemplação a que nos remete a sociedade capitalista, a educação, então, teria que ser repensada, de forma a tornar-se instrumento de constante mudança de atitude para o sujeito, dando-lhe a permeabilidade característica da consciência crítica. Nas palavras do autor “Quanto menos criticidade em nós, tanto mais ingenuamente tratamos os problemas e discutimos superficialmente os assuntos” (FREIRE, 1967, p.96). Daí a necessidade de refazermos o questionamento, que também foi feito por ele e que ainda nos é pertinente: Como aprender a discutir e a debater com uma educação que impõe?

Acostumamos-nos a ditar ideias, discursar aulas e impormos ao educando “uma ordem à qual ele não adere, mas se acomoda” (p.97). “Damos” uma educação que repete fórmulas, incapaz de gerar compreensão e análise por não proporcionar pesquisa, vivência, procura e recriação. Para educar transformadoramente, é preciso saber trocar ideias, debater temas e propicicar meios para um pensar autêntico.

É esse buscar que possibilita o surgimento dos temas geradores e estes, por sua vez, geram novos questionamentos. O ser humano, como ser histórico-social, criticiza, reflete e transforma, e a cada transformação, mais se questiona, alimentando a consciência crítica, fazendo a educação para a liberdade. Educação esta que buscamos e acreditamos impressindível para a verdadeira sexualidade.

3. Praticas educativas nas escolas de Belém

O educador sexual nas suas práticas deve ter muita habilidade ao iniciar suas aulas, pois os alunos percebem o ritmo da aula nos primeiros minutos e assim decidem se irão acompanhar atentamente ou se retrair de modo a não absorver esse novo aprendizado. É recomendado um trabalho de formação constante, pois a sexualidade não é um conhecimento fixo e limitado, exige aprofundamento e pensar em todas as possíveis questões a surgir em sala de aula. Esta formação garantirá a segurança necessária para que os educadores não se sintam constrangidos ou tenham acessos de riso diante de certas perguntas. Ressaltamos que algumas questões são postas pelos educandos para desestabilizar o educador e provocar constrangimentos, portanto, faz-se necessária uma postura séria, utilizando as nomenclaturas corretas e procurando manter a objetividade das respostas.

Assim, inicialmente se propõe uma dinâmica de abertura (temática, de interação ou auto reflexiva), pois, como afirma MARCELINO (1995 B):

O relaxamento e o prazer propiciados pela pratica ou pela contemplação, quanto objetos instrumentais, no sentido de contribuir para a compreensão da realidade, as atividades de lazer favorecem, a par do desenvolvimento social, pelo reconhecimento das realidades sociais, a partir do aguçamento da sensibilidade ao nível pessoal, pelo incentivo ao auto-aperfeiçoamento, pelas oportunidades de contatos primários e de desenvolvimento de sentimentos de solidariedade. (MARCELINO, 1995, s/p)

Após esse primeiro momento realiza-se a prática dialógica, sendo o tema trabalhado escolhido previamente pelos discentes, de forma a observar não apenas o que lhes desperta interesse, mas garantindo a utilização dialógica do senso comum. Contudo o assunto deve ser abordado de maneira clara e humanista, procurando identificar o lado emocional, reflexivo, não se atrelando prioritariamente a estatísticas e à biologicidade da sexualidade. Uma metodologia favorável para obter este resultado consiste no debate de fatos onde se incentive a discussão de um desfecho ou a análise dos motivos, causas e consequências da situação proposta.

Ao concluir as atividades deve se deixar espaço aberto para perguntas que podem ser realizadas oralmente ou de forma escrita, dependendo do dinamismo e evolução da turma trabalhada. Em caso escrito, utilizamos a dinâmica da “Caixa de segredos” que consiste em uma caixa decorada, pequena, disponibilizada no centro da sala, de forma a poder ser utilizada durante toda a atividade, onde o educando coloca suas perguntas e comentários sem precisar se identificar. Esta dinâmica torna-se bastante aceita inicialmente, quando a confiança e a timidez dos educandos impede uma abordagem mais direta, porém, à medida que o trabalho avança, geralmente ela passa a ser desnecessária.

a) Escola 1

Na Escola 1, foi trabalhado o tema com alunos de 3º ano que iniciaram com diversas dúvidas em torno do abordado, desde “Sexo é vício para mulher?”, até “É verdade que na primeira vez de um homem virgem não é aconselhável o uso do preservativo?”, passando por diversas áreas de curiosidade, incluindo dúvidas apoiadas pela música utilizada na aula (Amor e sexo – Rita Lee), e outras músicas que fazem parte da cultura social da turma. Todas as dúvidas foram principalmente direcionadas pelos alunos, partindo de dúvidas próprias, entendendo que os temas não podem ficar isolados, ou alheios ao cotidiano, principalmente por constar em PCN como tema transversal.

Todos os planos organizados tem a intenção de diferenciar ligando-os com assunto que chamem mais a atenção à reflexão de atos relacionados. Foram escolhidos os temas de prostituição, Doenças sexualmente transmissíveis, relações homoafetivas, aborto e relações sociais. Contudo os temas mais relevantes, em que houve maior envolvimento da turma, foram DST’s e aborto. Onde no primeiro tema as dúvidas transbordaram tendendo para a biologia, e divergindo da proposta reflexiva de sociabilidade (como o alunos relacionam o tema com sua vida social).

No tema de DST’s o interesse, e surpresa, do alunado foi mais aparente no tratar estético de cada doença. Destacou para as pesquisadores a pouca preocupação em conter uma determinada doença, dependendo da forma como ela se apresenta. Poucos alunos interagem seriamente com a pesquisa, alguns integram situações cômicas para que se quebre o clima de aula convencional, levando em conta o que foi dito no primeiro encontro, e os demais se abstêm de opniões, mas suas reações a temas, e palavras tomadas em aula, revelam a descoberta de abordagem (um mínimo de objetivo é atingido quando sem dar muita atenção ao assunto, o aluno capita uma informação e aumenta seu interesse pela aula).

Ao término das atividades de cada aula, é deixado um espaço para recapitular tudo o que foi dito, e buscar tudo o que mais interessou para a escolha da próxima proposta de aula. Assim o tema de aborto foi planejado para a apresentação alternativa desde a gravidez até as legislações que defendem o aborto. Os adolescente foram convidados a interagir de forma teatral para ilustrar um encontro entre jovens, e de que forma esse encontro pode constituir um aborto. Uma forma de leva-lo a refletir pequenos indícios que podem determinar um futuro, mas que poucos dão a devida atenção, para evitar tal fim, que foi unanimamente repugnado, o aborto.

Na continuidade da aula foi tentado dividir a sala em partes que defendam opiniões diferentes, e fomentar um debate, contudo esse objetivo não foi totalmente alcançado, já que a turma se unia em uma única opinião, contra o aborto. Assim o debate se deu entre educandos e educador.

Observando as reações em torno da citação de palavras, temas, situações e opiniões entre os próprios estudantes nos apresenta avanços que tangem o tema, na perspectiva de maturidade reflexiva, no compreender o contexto e o sentido do que foi dito.

b) Escola 2

A escola 2 teve a característica de ter sido uma prática solicitada pela direção e de ter-nos sido requerida atuação com uma série com a qual comumente não trabalhamos por não encontrar-se em ascensão a outro grau escolar, como é o caso de 5º ano, 9º ano e 3º ano Médio. As turmas que nos entregaram foram 3º e 5º ano, trabalhadas inicialmente em conjunto e sendo posteriormente separadas para tratar temas diferenciados.

O histórico transmitido pela direção da escola era de que ambas turmas haviam invadido (arrombado) a biblioteca da escola para ver um livro que possuía ilustrações de genitais e pessoas nuas. Também nos foi relatado que os alunos integrantes de ambas turmas tinham um descontrole muito grande de suas sexualidades e eram constantes assédios entre os alunos, uso de palavrões, ofensas e grande menção a questões homoafetivas. O 3º ano também apresentava dois alunos especiais.

Realizamos o primeiro encontro com os alunos no dia 17 de junho de 2013. Encontravam-se presentes aproximadamente 30 educandos com idades entre 8 e 14 anos e a professora da turma.

No 1º Momento da atividade, iniciada pontualmente às 14h, esclareceu-se aos presentes a finalidade dos encontros e apresentaram-se os objetivos do Grupo. Foi dialogado com os educandos sobre o que seria a sexualidade, a diferença entre sexualidade e sexo, sobre comportamento, linguagem, vestimetas, gírias e demais características dos adolescentes, mostrando a eles a relação destas questões com as manifestações da sexualidade masculina e feminina.

No 2º Momento foi realizada com os educandos a atividade de identificação de conceitos previamente construídos. Em uma folha de A-4, pediu-se que cada aluno colocasse a primeira coisa que lhe viesse à cabeça quando se fala em sexualidade. Dessa atividade foram obtidas respostas como:

a) Eu acho que sexualidade é alguém que fala sobre sexo e gosta muito de fazer. E é muito bom!

b) Não sei.

c) (desenho): um homem e uma mulher

d) Palavrão

e) É o que vou desenhar (desenho): eu sou menina e vou me arrumar para vir pra escola

f) É quando duas pessoas estão namorando e começam a se agarrar, começam a se beijar e começam a pegar nas partes íntimas.

g) O que se faz na cama.

h) Pra mim o que eu acho é uma diferença de menino e menina e também de masculino e feminino.

i) Porque não ensinaram isso pra nós?

j) Eu acho que é namoro

k) Mudar de sexo

l) É coisa que os adultos fazem

m) É ir pra cama e fazer bebê...é bom!

n) Eu não sei, mas uma colega me falou que fazer sexo é bom.

o) É amor.

No 3º Momento foi apresentada aos educandos a “Caixa de Segredos” e abriu-se espaço para perguntas (anônimas) e discussões sobre temas diversos. Informamos a seguir as perguntas obtidas:

a) Com que idade eu posso começar a namorar?

b) Tem toda cor de camisinha? – 3 perguntas

c) Botar camisinha dói?

d) Onde se coloca a camisinha?

e) Tem todo sabor de camisinha? – 2 perguntas

f) Fazer sexualidade dói?

g) Pode fazer sexo com os pais?

h) Quando faz sexo pode pegar doenças?

i) É obrigado a usar camisinha pra fazer sexualidade?

j) Com que idade o corpo da gente termina de crescer?

k) Como foi que o homem surgiu?

l) Fazer sexualidade dá doença?

m) Eu beijei, beijar é bom, quero beijar de novo.

n) Seu pai briga quando seu namorado vai na sua casa?

o) Como nasce o bebê?

p) É certo namorar com 11 anos?

q) Beijar dá doença?

Após as devidas explicações dadas a cada questionamento, encerrou-se o encontro e definiu-se (pelos alunos) o tema do encontro seguinte como sendo “Gravidez Adolescente”.

O segundo encontro realizado na escola deu-se com os pais. Foi apresentada a proposta, juntamente com alguns esclarecimentos breves sobre desenvolvimento sexual infantil e foi-lhes apresentado o primeiro resultado obtido do encontro com os educandos, mostrando as perguntas e noções que inicialmente foram postas por eles.

Ressaltamos que entre as educadoras da escola, uma fez oposição ao tema escolhido pelos educandos por acreditar que era um tema para “crianças maiores”, mas ao ser indagado aos pais se tal tema fazia ou não aprte da realidade dos alunos, a unanimidade assentiu à discussão e afirmou ter essa realidade presente em suas famílias ou amizades. Não houve qualquer discordância dos pais em relação à realização das atividades.

Destacaremos a partir de então, alguns pontos específicos dos encontros seguintes, quando foram discutidos: gravidez adolescente, casamento gay, trabalho (gênero). No primeiro tema foi apresentado aos educandos um balão de água com outro balão menor dentro, preso por um barbante. O balão simulava um bebê dentro da barriga e foram tratados temas como “quanto custa criar um filho?”, “o que eu perco se virar pai/mãe?”, “como isso atinge minha família?”, “como isso interfere em minha educação?”, “estudar ou trabalhar?”. As discussões foram feitas com algumas participações, mas o que se destaca aqui é o relato de situações familiares ocorridas com avós, mães e primas. O segundo tema foi trabalhado primeiramente com os alunos do 5º ano, quando foi apresentado o vídeo “Por outros olhos”. Durante o filme houveram comentários indignados, visto que o vídeo apresentava uma realidade contrária ao mundo hétero, porém a discussão se deu entorno do que ocorre com os homossexuais na vida real. Após o filme foi indagado aos alunos qual era o formato correto de família, visto terem dito anteriormente que a família devia ser “pai, mãe e filhos” porque a Bíblia dizia isso. Confirmado tal formato nas falas, foi perguntado quem na sala viviam com um formato diferente de família. Alguns alunos relataram viver com pai, avó e irmãos; outros com mãe, irmãos e avós e outros viviam com mãe, avó, irmãos, tios e primos. Desta forma, foi indagado a eles se era correto afirmar que eles tampouco tinham uma família, segundo os preceitos bíblicos, ao que eles negaram. A contradição posta, começou-se a debater o que era família e os sentimentos que a envolviam e se um casal homossexual que adotava uma criança a amaria menos por não ter a presença de uma mãe ou de um pai. Os alunos passaram a mudar de opinião em relação ao conceito de família e outros não se arriscaram a dar opiniões, mas ficaram indecisos sobre o que acreditar. Por fim, foram apresentados comerciais contra a homofobia e foi sendo discutido com eles o direito que temos de excluir ou discriminar apenas por não concordar com o posicionamento de alguém. A partir dessa aula a caixa de segredos não foi mais utilizada pelos educandos e as perguntas foram sendo feitas diretamente. Com os alunos do 3º ano foi discutida a homofobia através do texto “Joca é bicha” indagando-lhes o que torna uma pessoa gay, o que é ser “bicha”. Posteriormente foi discutido com eles o tema “liberdade x identidade” (controle dos pais e a obrigação dos filhos) através de um texto que apresentava o formato de blog, sendo discutida, também, a utilização da internet.

No último tema debatido com o 3º ano, visto que o 5º ano encontrava-se com a professora em greve, discutiu-se o critério de beleza, o papel da mulher e do homem na sociedade, brincadeiras de menino e de menina e a violência doméstica contra a mulher. O que destacamos aqui é o relato de uma aluna com dificuldade de aprendizado, que contou ser usada pelo pai para encontrar-se com a amante. Nas palavras da aluna: “meu pai me usa pra encontrar a namorada dele sem a mamãe saber. Ele me leva com ele, aí ela fica me procurando. Ele me leva para que eu fique com as filhas da namorada dele enquanto eles tão no quarto. Eu até vou e fecho a porta pra elas não verem o que eles fazem lá dentro (risos), se eu não fechar a gente vê tudinho.” O fato foi relatado à direção da escola por se trarar de um fato contado publicamente diante das outras crianças e de uma situação onde a adolescente estaria presenciando coisas inadequadas para sua segurança psicológica.

Segundo a direção da escola, desde o início do projeto, as crianças se tornaram menos curiosas a respeito das questões sexuais, mais respeitosas em relação umas às outras e passarama controlar o linguajar dos colegas durante o intervalo. Estes fatos são confirmados por nossas observações, visto que a “caixa de segredos” não é mais utilizada pelos alunos, o uso de palavrões em sala foi reduzido enormemente e as perguntas estão sendo feitas diretamente durante as atividades.

Conclusão

A prática crítico-filosófica freireana da sexualidade vem se concretizando como a forma mais viável para o desenvolvimento da Educação Sexual dialógica, sugerida pelos PCNs. Não se pode querer sanar as dúvidas de alguém sem ouvi-las inicialmente. O que a escola realiza ao longo de anos é o inverso desta prática. Nos deparamos com aulas prontas, temas previamente escolhidos pelos educadores e gestores, pelo vínculo da sexualidade a questões meramente médicas, biológicas ou psicológicas, deixando a responsabilidade pelo seu desenvolvimento a estes mesmos profissionais.

Da mesma forma como o pedagogo de 1º a 5º ano deve preparar-se para o surgimento de questões relacionais que envolvam a sexualidade, os demais professores e educadores devem ter a noção clara que a afinidade de um aluno não ocorre somente com o professor de biologia ou ciências e, portanto, suas questões não podem ser da restrita solução desses educadores. A existência, nas instituições escolares, de educadores que se perdem de seu papel de mediadores e passam a impor suas ideologias e conceitos, faz com que a sexualidade tome um caráter impositivo e castrador, afastando os educandos do ambiente escolar e questionando a escola quanto à sua relevância social.

Ao longo de dois anos de atuação nas escolas públicas de Belém-PA, tendo-se em conta as investigações realizadas durante o período de conclusão da graduação e a efetivação do grupo de pesquisas GETEFS, são diversos os resultados positivos obtidos e registrados, indo desde testemunhos de violência sexual e doméstica, até o registro das dificuldades docentes e dos responsáveis pelos educandos no trato da temática.

Verificamos a evidente mudança de comportamento, de compreensão em relação ao outro, bem como uma maior compreensão sobre a sociedade e as relações de poder que a permeiam. A possibilidade de trocar de lugar com o outro faz com que as relações interescolares sejam menos conflitantes. A compreensão sobre a abrangência da sexualidade, desmistifica a visão unilateral desta com a relação sexual direta e passa a se entender a sexualidade como identidade, linguagem, pensamento e ação do ser humano.

REFERENCIA:

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Gaby Faval, Amanda Sousa Dias e Larissa Almeida Fonseca
Enviado por Gaby Faval em 10/03/2014
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