Violências na Escola
INTRODUÇÃO
O presente artigo constitui uma adaptação do trabalho apresentado no VII Colóquio Internacional de Educação e Contemporaneidade, com o título, Violências e Identidade na Escola. Foi escrito tendo como base minha pesquisa de mestrado realizada na UNEB em 2009 sobre violências na escola. A pesquisa que deu suporte ao artigo foi um estudo de caso de inspiração etnográfica, realizado em uma escola da rede pública de Salvador.
A instituição escolar, seus modelos de organização e funcionamento, antes de qualquer proposito instrucional, deve ser visto como uma estrutura de poder e de controle social. De acordo com Ariès (1999) o aparecimento e a evolução das classes escolares se relacionam com uma crescente necessidade de controle sobre os mais jovens, que se estabelece a partir do século XV. Esse processo se relaciona com uma nova concepção de infância, marcada pela valorização das hierarquias e de uma certa moral sexual. O autor chama a atenção para a importância que os castigos físicos assumem neste contexto: “(...) todas as crianças e jovens, qualquer que fosse sua condição, eram submetidos a um regime comum e eram igualmente surradas”. Esse quadro perdurou até o século XVIII, quando o poder nas escolas assume uma dinâmica menos explícita e os castigos físicos são substituídos pelo poder disciplinar.
Segundo Foucault (2003), os processos disciplinares já existiam nos conventos, nos exércitos, nas oficinas, mas no decorrer dos séculos XVII e XVIII as disciplinas se tornam fórmulas gerais de dominação.
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento das suas habilidades, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto mais útil é. Forma-se então, uma política de coerções que consiste num trabalho sobre o corpo, numa manipulação calculada dos seus elementos, dos seus gestos, dos seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, os chamados "corpos dóceis". (2003, p.119).
As sociedades disciplinares constituem formas de organização pautadas pelos grandes meios de vigilância e confinamento dos indivíduos. Neste sentido, segundo Foucault (2003, p.157), “a vigilância torna-se um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem especifica do poder disciplinar” Nestes tipos de sociedades o espaço é o fator determinante, pois elas são antes de tudo espaços de confinamento: “O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola [...], depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência” (DELEUZE, 1992, p.219).
Foucault (2003) afirma que o corpo, até o século XVIII, era fundamentalmente uma inscrição de suplícios e de penas. A partir do século XIX terá um estatuto diferente, quando se torna alvo de um conjunto de intervenções que visam reformá-lo, corrigi-lo, adaptá-lo a receber qualidades para se tornar um corpo adestrado para o trabalho. Dentro deste contexto, as escolas deixam de se constituir como lugares de suplício, tipo castigos corporais, para se tornarem locais de produção de corpos dóceis e produtivos. O poder se desloca do campo da coerção, para o da produção. Deixa de ser basicamente punitivo para se tornar fundamentalmente normativo.
Embora as pesquisas acadêmicas sobre violência na escola sejam recentes, tendo se intensificada a partir do início deste século, as escolas, portanto, sempre foram palco de violências. Nos cenários atuais as pesquisas e discussões sobre o tema podem ser avaliadas a partir de três tendências básicas. A primeira, muito difundida no Brasil e no mundo, particularmente nos Estados Unidos, centra seu olhar no indivíduo, sua personalidade e contexto familiar. Um exemplo conhecido deste olhar é o bullying. Esse conceito define a prática repetida de agressões físicas ou humilhações, perpetradas por algum indivíduo ou grupo, sem motivos aparentes e sempre envolvendo um desequilíbrio de forças. Blaya e Derbarbieux (2002) afirmam que restringir a violência na escola ao bullying não leva em conta, por exemplo, a violência dos adultos para com os alunos ou a violência anti institucional ou na agressão (principalmente verbal) contra os professores. Além do mais, bullying é um conceito psicologizante, que não considera o contexto e tende a individualizar o problema, responsabilizando apenas o perpetrador e a vítima, ou, às vezes, a família.
A segunda tendência situa as violências que acontecem nas escolas como consequência das violências perpetradas fora desta, sejam pelo Estado, pela família, na comunidade ou por criminosos. A escola é concebida como mais uma vítima da violência estrutural. Dito de outra forma: as escolas não se implicam com a produção das violências. Esta tendência é muito difundida no interior das escolas brasileiras entre gestores e educadores e não problematiza a dimensão institucional do fenômeno.
A terceira tendência, que corresponde à abordagem deste artigo, compreende as violências nas escolas como fenômenos híbridos, relacionados, ao mesmo tempo, com o contexto social maior de onde a escola é parte, e com a dinâmica das relações locais tecidas no interior das instituições. Esta tendência enfatiza a exclusão interna provocada pelos estabelecimentos de ensino, mediante seus mecanismos de seleção e avaliação, seus modelos de relação e autoridade (ABRAMOVAY, 2002; AQUINO 2006; CHARLOT, 2002; NEVES, 2009; SPÓSITO, 1998; ZALUAR, 2001).
I - OS DISCURSOS SOBRE AS VIOLÊNCIAS
O percurso etnográfico deste trabalho possibilitou identificar três padrões básicos de narrativas sobre as violências entre os diferentes atores da escola pesquisada. O primeiro, que correspondia ao discurso dominante, situava a violência como um problema grave, mas que em nada se relacionava com a instituição, decorrendo dos contextos de referência dos alunos, principalmente do ambiente familiar, percebido como “desestruturado”.
Os alunos vivem em famílias desestruturadas e convivem com marginais. O resultado é que não sentem medo de nada nem de ninguém. Eu sou a favor de colocar a polícia aqui dentro, mas a diretora é contra. Por mais que eu tente conversar com eles não adianta, eles não respeitam nada. Eu vivo rouca, ando depressiva, não sei até quando vou aguentar (Fala da professora Gabriela do Fundamental I).
O segundo padrão, que representava o discurso oficial, muito utilizado pelos gestores nos meus primeiros contatos com a instituição, anunciava que as violências existentes eram casos sem importância, que não produziam maiores repercussões na escola.
No terceiro padrão, específico de um grupo pequeno de professores e funcionários, que adotavam uma postura crítica em relação à instituição, havia uma percepção das violências como um problema grave, relacionados a três questões: insatisfação dos alunos com a escola; às relações interpessoais corroídas, marcadas pelo autoritarismo e pela fragilidade dos vínculos; e à violência perpetrada nos ambientes de referências dos alunos.
Educar estas pessoas exige uma postura diferente da que predomina na escola. Os alunos vivem em ambientes onde a violência é normal e não temem ninguém. Os professores deveriam dialogar com eles e não impor suas regras. Resultado, eles não se intimidam e se rebelam, desobedecendo e fazendo coisas para provocar a todos (Fala de professor do Fundamental II).
Entre os professores, gestores e funcionários entrevistados as principais concepções de violência enfatizadas foram à dimensão física (socos, pontapés, homicídios), a violência verbal (xingamentos, humilhações), a intimidação (ameaças), a violência patrimonial (depredação da escola, furtos), e o consumo e tráfico de drogas. Poucos falaram sobre violência institucional ou sobre a violência estrutural (desigualdade social).
Todos os alunos entrevistados acreditavam existir violências na escola, embora a minoria se sentisse incomodado com este quadro. Em relação às concepções de violência, eles faziam uma associação imediata entre a palavra violência e qualquer tipo de agressão física ou ato criminoso, como tráfico de drogas ou assaltos. A violência verbal, patrimonial e as intimidações ocupavam um lugar secundário. A maioria dos alunos relacionava as violências perpetradas por eles a jogos de afirmação identitárias. Um segundo discurso relacionava as violências dentro da escola com a insatisfação generalizada frente à mesma, seja devido à falta de opções de lazer ou devido à forma que são tratados pelos educadores, considerados “sem paciência” e “estúpidos”. Outra narrativa de menor expressão associava violência ao uso de drogas ou envolvimento com marginais, poucos relacionavam violência com o ambiente familiar.
Um aspecto relevante da percepção dos gestores e professores se relacionava com as causas das violências. No geral as violências eram relacionadas com a criminalidade ou com o ambiente familiar dos alunos. Inexistia uma compreensão crítica das violências como um componente presente na estrutura social em função da desigualdade e injustiça gritantes. As violências eram percebidas como fenômenos pontuais, relacionados a indivíduos ou determinados grupos. Esta percepção alimentava a crença de que nada poderia ser feito pelos educadores para enfrentarem o fenômeno. O discurso dominante, ao reduzir o problema para o âmbito familiar ou criminal, postulava que apenas as famílias ou a polícia, poderiam fazer algo para mudar este quadro. A crença geral focava o problema no ambiente familiar, concebido como degradado, onde predominariam cenas de violência ou de omissão. Este ambiente favoreceria a aproximação com o mundo do crime e do consumo de substâncias psicoativas, apontados como causadores da violência.
Esta compreensão se fundamentava em uma percepção generalizante dos contextos de referência dos alunos. Embora existissem casos que se inscreviam bem neste modelo, contudo, uma parte expressiva dos alunos entrevistados trazia outras referências. Eram filhos de pais trabalhadores, sem histórico de envolvimento com marginais ou grupos de rua. Suas famílias eram pobres, porém não revelavam um ambiente de abandono, ou dominado por agressões físicas, intimidações ou humilhações.
Paralelamente, existiam narrativas de funcionários e professores que apontam para outra direção. Um funcionário me falou que muitos alunos: “Eram pacíficos ao entrarem na escola, mas, pouco tempo depois, tornavam-se violentos”. Outro informante me relatou sobre mães que se deslocavam até a escola com o objetivo de observar seus filhos. Segundo sua fala: “As mães não conseguiam acreditar nas queixas da diretora, porque os filhos, em casa, não brigavam”. Um professor do fundamental II narrou que: “Os alunos calouros, rapidamente ficavam iguais aos piores”. Ele acreditava que os alunos não faziam isto apenas para se defender dos outros, posto que também se tornavam agressores. Em sua opinião: “A grande maioria dos alunos, em algum momento, aprende a bater e passa a agredir os colegas por qualquer besteira”. Estas falas apontam para uma dimensão local do fenômeno, que se encontra impregnada de sentidos produzidos dentro dos muros da escola a partir das redes de relações estabelecidas.
II - DINÂMICA DAS VIOLÊNCIAS NA ESCOLA
“Aqui a gente bate para mostrar quem é melhor”
Fala de alunos da Escola Aquário
O uso de violências na escola pesquisada era uma pratica constate, seja na modalidade simbólica ou física. Cenas de violências se inscreviam exaustivamente nos espaços de relacionamentos da instituição, atravessando as salas dos gestores, salas de aula, cantina, pátios e corredores. Dentro desta perspectiva, foram mapeados cinco contextos básicos, interligados e interdependentes, que se destacam na produção do fenômeno. No primeiro contexto tratava-se da violência institucional, que figurava nos padrões de dominação e nos mecanismos de controle social instituídos. No cotidiano da Escola Aquário (nome fictício), inexistiam maiores preocupações com a legitimação das regras de convívio, que eram impostas de forma unilateral, sem considerar as vozes dos estudantes. Não existia uma dominação racional legal, pode-se ler em Weber (1991), baseada em um pacto social, mas relações tradicionais sem legitimidade.
Destaca-se aqui a incapacidade dos gestores em administrarem conflitos e o uso exaustivo da lógica punitiva, que constituía a principal estratégia utilizada para impor ordem. Segundo Weber (1978) o poder se torna legítimo quando se estabelece a obediência voluntária. Em tal contexto a figura de poder é percebida como dotada de autoridade e a ordem é cumprida por adesão, diferente da obediência por coerção, que funciona através do medo das possíveis consequências do ato transgressor. Os gestores da Escola Aquário não possuíam essa compreensão e acreditavam que o melhor remédio para desobediências eram as punições.
No segundo contexto, que resultava do primeiro, existia uma reação contra a instituição, que se expressava nas violências dirigidas às pessoas ou aos objetos que representavam a escola – depredações, furtos, xingamentos e ameaças. Estes conflitos refletiam a insatisfação generalizada dos estudantes com os modelos de relacionamentos estabelecidos, particularmente o modelo de autoridade. “Aqui dentro é como uma prisão, qualquer coisa eu pego todo mundo amarro e toco fogo” (Fala de aluna do 8º ano).
O resultado era a constante depredação do patrimônio escolar, que figurava em portas destruídas, paredes pinchadas, vasos sanitários danificados, equipamentos furtados, além das desobediências generalizadas nas salas de aula, gerando um ambiente problemático para a aprendizagem. A diretora declarou que a estatística de reprovação anual era da ordem dos 25%, superando a média nacional que é de 24,3%. Segundo Relatório de Desenvolvimento do Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento (2013), um a cada quatro alunos que inicia o ensino fundamental no Brasil, abandona a escola antes de completar a última série. Temos o quinto maior índice de evasão escolar entre 100 países pesquisados, ficando atrás da Bósnia Herzegovina, das ilhas São Cristovam e Névis, no Caribe. Na América Latina, só Guatemala e Nicarágua nos superam.
No terceiro contexto existia algum tipo de conflito, que havia sido resolvido diretamente pelos alunos através de ameaças, agressões físicas ou verbais, sem qualquer tipo de mediação. As regras da instituição, assim como a presença de educadores, não eram consideradas meios legítimos para mediar às relações estabelecidas. No geral os educadores eram procurados quando alguém era agredido e desejava se vingar do agressor. Estes conflitos aconteciam frequentemente por motivos fúteis, e revelavam a descrença total dos alunos no diálogo e na mediação, que não eram estimulados pela escola.
Neves (2009), seguindo os passos de Simmel, lembra que o convívio, enquanto forma social pode propiciar momentos de construções e destruições, quer sob as instituições, estruturas, arranjos, processos, relações e interações sociais. Nesta perspectiva, os conflitos sociais são destacados como socialmente importantes e não um mal a ser extirpado. Segundo a autora, a escola pública não sabe como mediá-los e esta incapacidade constitui um fator decisivo para a proliferação de violências no seu interior
No quarto contexto as violências eram experimentadas como uma grande diversão entre os alunos. Elias e Dunning (1985) no livro, “A busca da excitação”, chamam a atenção para dois tipos de violência: A violência instrumental, que é utilizada como forma de garantir a realização de um determinado objetivo material; e a violência expressiva, que visa produzir um certo tipo de satisfação emocional. Uma assume forma racional, busca um resultado objetivo e a outra visa uma certa experiência. Ambas não podem ser distintas de forma rígida, já que a dimensão expressiva talvez esteja sempre presente nos casos de violência instrumental, assim como também o oposto se verifique. Contudo essa categorização serve para ajudar a compreender nosso caso.
Apesar da Escola Aquário possuir duas quadras, uma poliesportiva e outra de ginástica olímpica, além de equipamentos de jogos de salão, um auditório e uma sala de vídeo, durante os horários livres não oferecia qualquer atividade recreativa ou lúdica para os alunos, que ficavam espalhados nos pátios e corredores. As constantes cenas de lutas que se alastravam, pareciam representar, em grande medida, a principal alternativa construída pelos alunos para se divertirem. “Agente aqui bate porque não tem o que fazer” (Fala de aluno do 8º ano).
Por fim, existia uma questão que parecia ser central: a identitária. Esta dimensão lançava luz sobre uma famosa definição amplamente utilizada entre os alunos: “aqui a gente bate para mostrar quem é melhor”. Neste contexto, o uso da força física não se relacionava a algum tipo de conflito, representando uma importante referência para a afirmação de cada um nas relações locais.
Em uma sociedade tradicional e altamente hierarquizada como foi o Brasil até meados do século XX, a identidade cultural era uma construção muito mais imposta de fora para dentro, a partir do lugar que o sujeito ocupava na trama social e possuía um caráter relativamente definitivo, com poucas chances de mudanças. Questões como nacionalidade, raça, sexo e religião eram as principais referências.
Nos cenários contemporâneos, a crescente valorização do individualismo enfraqueceu o peso do mundo tradicional, invertendo o processo de construção identitária, que se torna mais flexível e negociado, contando muito a escolha pessoal. Assim, o sujeito pode transitar mais pelo espaço social, mudando, por exemplo, de religião, de sexo, ou mesmo etnia, a partir dos seus próprios critérios subjetivos de identificação. Este processo de liquefação enfraqueceu os vínculos de pertencimento, deixando o sujeito, ao mesmo tempo, mais “livre” para ser quem ele “quiser” e mais inseguro e perdido diante de tantas possibilidades e incertezas.
Por outro lado, ninguém cria sozinho ou escolhe para si uma identidade como quem pega uma roupa no armário. A identidade é constituída nos processos de interação social, onde o olhar do outro funciona como um espelho. É o reconhecimento do olhar do outro que nos possibilita a experiência de uma identidade. “Nós nada somos e valemos nada se não contamos com o olhar alheio acolhedor, se não somos vistos, se o olhar do outro não nos recolhe e salva da invisibilidade” (SOARES, 2013).
No caso específico do Brasil, esse processo se revela particularmente problemático em função da extrema desigualdade social, onde milhões de jovens são condenados à invisibilidade. Um contexto paradoxal, marcado, de um lado, pelos ideais de democracia e liberdade e, de outro, pela exclusão e pela miséria. Assim, como afirma o antropólogo Luiz Eduardo Soares (2003), muitos jovens, condenados a uma existência sem perspectivas ou possibilidades de reconhecimento social, tomam o caminho da violência como última maneira de construírem uma identidade e se tornar visíveis.
As escolas merecem destaque especial neste processo, posto que constituem locais onde os jovens passam parte expressiva de suas vidas. Em seu cotidiano são tecidas relações e produzidos significados, que imprimem sentidos e identidades. Deveria, portanto, ser um lugar onde os jovens se sentissem acolhidos para construir seu projeto de vida. Contudo não é isso que se verifica na grande maioria das escolas públicas brasileiras, onde os elevados índices de evasão e fracasso apontam para outra direção.
No caso específico da Escola Aquário, o uso de violências constituía uma prática amplamente valorizada e aceita pela maior parte dos estudantes, independente do gênero, idade ou cor da pele. Embora esse processo se relacionasse com o contexto escolar marcado por um clima de insatisfações, não representava mera reação contra a instituição ou produto dos conflitos entre os alunos. As sociabilidades violentas, tudo indica, se transformaram na principal referência identitária para esses jovens: “agente bate aqui para mostrar quem é melhor”. Um cenário que evidenciava a fragilidade dos modelos de reconhecimento e valorização instituídos. A escola, ao invés de possibilitar aos jovens construir uma identidade e reforçarem sua autoestima, terminava fazendo o oposto: produzindo fracasso e evasão. Lembrado novamente o antropólogo Luiz Fernando Soares (2013): ao esmagar a estima dos jovens a sociedade está armando uma bomba relógio contra si mesma. O preço é a violência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A educação brasileira reúne indicadores que nos coloca lado a lado dos países mais atrasados do mundo. Um cenário que contrasta com o crescimento econômico, que nos coloca ao lado das nações mais ricas. Um paradoxo, que alimenta a falta de perspectiva de milhões de brasileiros, condenados ao subemprego ou a criminalidade. Este quadro denuncia o lugar que a educação escolar ocupa nas nossas políticas públicas, exigindo, antes de qualquer coisa, mudança nesta lógica. Um processo muito lento, que revela falta de vontade política. Dentro desta perspectiva, o objetivo deste livro não foi aprofundar estas questões estruturais, mas, sem negá-las, penetrar no cotidiano escolar e pesquisar a dimensão local que as violências assumem.
O uso de ações consideradas violentas na escola Aquário, particularmente da violência física, não se restringia a determinados grupos em especial, mas constituía uma prática amplamente valorizada e aceita pela grande maioria dos alunos, independente do gênero, idade ou cor da pele. Esta dinâmica se relacionava com diferentes aspectos intra e extramuros da escola, não sendo possível qualquer explicação fechada para tentar interpretá-la. Contudo, no que tange ao interior da escola, um primeiro aspecto a ser considerado para compreender esta dinâmica, se relacionava com os mecanismos de controle sociais instituídos. As regras de convívio não eram negociadas, mas impostas unilateralmente, sem qualquer participação dos alunos nas instâncias decisórias. Embora a escola fosse intolerante, na prática não conseguia fiscalizar o cumprimento de suas regras. O sistema de controle local era baseado nas punições. Inexistiam maiores esforços no sentido conciliatório nas situações de conflito. Por outro lado, as punições não conseguiam funcionar como mecanismo de coerção, seja porque os alunos não as temiam, seja porque a escola não possuía total autonomia para aplicá-las. O conteúdo das aulas, no geral, eram impostos e os interesses dos alunos muito pouco considerados. Inexistiam opções de lazer nos horários livres, embora a escola possuísse quadras de esporte, auditória, sala de vídeo, além de equipamento de jogos de salão. A qualidade das relações com os professores era marcada pela intolerância, havendo pouco espaço para interações fora da sala de aula.
Este cenário gerava um clima bastante favorável para produzir violências em diferentes modulações e significados. A educação neste contexto tem contribuindo para fortalecer um modelo de individualismo perverso, onde o outro é reduzido à condição de objeto a ser manipulado ou destruído. Uma questão considerada central para mudar esse quadro consiste em abrir mão de modelos de autoridade centralizadores, em nome de modelos mais democráticos, que se estabeleçam a partir de um pacto social, onde as vozes dos estudantes sejam contempladas. As violências proliferam em contextos sem cultura de negociação ou onde as regras de convívio caíram no descrédito. No Brasil, enfrentá-la envolve políticas publicas que possibilitem diminuir a desigualdade social estrepitosa, além de mudanças em valores fortemente enraizados na sociedade, como a lei da “vantagem” ou do “jeitinho”. Contudo, existem importantes passos que podem ser dados no interior da escola, independente de macro mudanças sociais.
Um primeiro passo consiste em substituir a lógica punitiva pela conciliatória e instituir mecanismos mediadores legítimos, que se tornem opções válidas na forma dos conflitos serem resolvidos. Não apenas dos conflitos entre os alunos, mas também aqueles que envolvem a instituição. A escola enquanto espaço de convívio reúne diferentes culturas, interesses e perspectivas. O seu grande desafio no século XXI será aprender como mediar essas relações. Um processo que dificilmente se conseguirá de forma violenta, através de imposições e castigos. Isso não significa afirmar que seja desnecessário desenvolver mecanismos de coerção, mas focar nos ideais de democracia de justiça e, principalmente, igualdade, os principais meios para enfretamento das violências.
Por fim, importante assinalar que o espaço escolar, enquanto ambiente de convívio humano, sempre será problemático e conflituoso. Os profissionais que pensam em atuar no seu interior, independente se em contexto público ou privado, devem perder a ilusão de que podem ser apenas bons instrutores. O educador, antes de qualquer coisa, precisa ser um especialista em relações humanas. Deve aprender a navegar nas águas tensas dos conflitos e tecer as negociações possíveis e os arranjos quase sempre provisórios para conseguir realizar seu trabalho. Seja qual for seu projeto, conteúdo ou método de ensino, não conseguirá realiza-lo em plena harmonia com seus estudantes. Logo, precisam aprender a negociar e não simplesmente impor. Um percurso longo e complexo, onde a única certeza é que não existem fórmulas e que os erros serão inevitáveis.
Contudo não há muitas opções, posto que uma escola ou uma sociedade onde inexistem instâncias mediadoras das relações estabelecidas no seu interior, se transforma em um lugar perverso, onde o individualismo assume sua feição mais radical de negação do outro, ambiente perfeito para as violências e a criminalidade proliferarem.
REFERENCIAS
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