Sociedade acrítica= sem cidadania

O texto literário é um material instigante para se ler por divertimento, extravasar as emoções, fazer a catarse, mas também pode ser de grande valia para se pensar a sociedade e seu modo de agir em determinados períodos de sua história. Há quem defenda que isso é papel da História, mas traçar um paralelo entre o contexto de produção e recepção da obra pode ser fundamental para se entender as relações assimétricas postas/impostas à sociedade.

Um exemplo disso é a defesa de que Machado de Assis, menino pobre, órfão e doente, tornou-se autodidata e maior escritor brasileiro por interesse próprio. Ou seja, a responsabilidade dos governantes em oferecer escolas de qualidade a todos não era um fator determinante do analfabetismo, pois quem tinha capacidade poderia ser autodidata: a responsabilidade era do analfabeto.

No entanto, no Brasil, desde o século XIX, com o surgimento de um novo público leitor e publicações de obras nacionais, houve um endeusamento de alguns escritores que se tornaram obrigatórios como leitura: José de Alencar, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Raquel de Queiroz, mas essa leitura não chegou a todos, pois o contingente de brasileiros analfabetos era extenso. Enquanto nas famílias ricas a leitura era um deleite, nas pobres ela não chegava, tão pouco chegava a escola para todos.

Além disso, algumas leituras levavam ao conformismo ou a culpa, basta lembrar o Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, descrito como um ser incapaz de produzir qualquer mudança em sua vida, preso apenas a lei do menor esforço. Eram os ecos do determinismo que levavam a crer nisso.

Nas décadas 80 e 90, com a redemocratização do país, a ampliação do ingresso da camada menos favorecida na escola, a publicação da nova LDB/96, dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e a adaptação de clássicos da literatura para o cinema, houve uma aproximação das camadas menos favorecidas com a literatura. Entretanto, ela era apresentada aos estudantes através de fábulas, poemas, contos e crônicas para tratar de leitura na perspectiva da compreensão literal, aspectos gramaticais e lição de moral. A partir do ensino médio, vinham as escolas literárias, as datas de publicação de obras e a biografia do autor.

Ainda há muito ensino assim, embora não seja essa a proposta dos PCNs, pois há uma orientação para que se leia, levando em consideração os contextos de produção e recepção de produções artísticas. Nessa perspectiva, o texto literário precisa ser tratado como um texto no qual perpassam relações de poder e é um produto não apenas da imaginação do seu autor, mas fruto de um diálogo entre imaginação e sociedade que o gesta.

Para exemplificar isso, basta assistir ao filme Capitães da areia ou ler o livro para que se tenha a dimensão dos ecos sócio-econômicos dentro dessa produção artística: Meninos abandonados nas ruas, roubando para sobreviver, tornando-se feras para não ser mortos por outros... Ainda vale lembrar o poema de Augusto dos Anjos, Versos íntimos: “(...) O homem que nessa terra miserável,/ mora entre feras, sente inevitável/Necessidade de também ser fera(...)

Diante do exposto, vale se fazer uma reflexão entre o que ensinar e o que se ensina, pois uma sociedade acrítica é uma sociedade sem cidadania.

valene
Enviado por valene em 13/11/2013
Código do texto: T4569054
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