TROTE UNIVERSITÁRIO VEXATÓRIO: CONTRADIÇÃO SOCIAL OU RESSIGNIFICAÇÃODE CONCEITOS?

Resumo

O presente artigo aborda a questão do trote universitário como prática tradicional vexatória que acontece em várias faculdades e universidades do país. Trabalha com a discussão sobre o real significado de tal prática, de modo e elucidar o discurso sobre a relevância ou não do “trote sujo” para a vida estudantil na academia. Deste modo, aponta elementos que demonstram a contradição presente em tal atividade e ao mesmo tempo a ressignificação histórica que acontece a partir do momento que o trote desumano e cruel torna-se “normal” entre os estudantes.

Palavras-chave: Trote universitário. Sociologia. Tradição. Bullying.

Abstract

This paper addresses the issue of university hazing as vexatious traditional practice that happens at various colleges and universities nationwide. Works with the discussion about the real meaning of such a practice, and in order to elucidate the discourse on the relevance or otherwise of the "dirty trot" to student life in academia. Thus, point elements that demonstrate the contradiction present in such activity while historical signification that happens from the moment that the inhumane and cruel prank becomes "normal" among students.

Keywords: Trotuniversity. Sociology. Tradition. Bullying.

INTRODUÇÃO

Chegou o momento de comemorar. Ver o nome estampado na lista de aprovados no último vestibular não tem preço para quem sempre sonhou e almejou uma vaga na Universidade. Tinta, farinha, ovos, amigos e familiares formam a cena que sempre se admira quando o assunto é a felicidade da aprovação.

A maioria dos calouros que chega à Universidade fica ansiosa pela nova etapa da vida que se inicia e concomitante a isso, uma prática tradicional que é tão antiga quanto a própria Universidade é a recepção destes alunos, conhecida como “trote”.

Trata-se de uma prática organizada geralmente por estudantes veteranos que planejam ações e atividades a serem desenvolvidas com os alunos calouros. Geralmente os rostos são pintados com tinta e os cabelos são alvo de muita farinha e ovos. Os novos alunos são quase obrigados a participar, pois historicamente o trote é tido como uma tradição e um ritual obrigatório de todo estudante ao entrar no ensino superior.

Porém, nos últimos anos, observa-se que tal prática vem ganhando proporções negativas muito grandes, sendo cada vez mais noticiados em jornais e plataformas virtuais estudantes que tenham sofrido ações cruéis durante o trote. Brincadeiras de mal gosto que expõem o aluno à situações de vexame de sofrimento diante dos demais caracteriza o que aqui denomina-se de trote universitário vexatório. Ações como obrigar calouros a ingerir bebida alcóolica, ficarem nus, fazer apologia ao estupro e até mesmo segurar a cabeça de algum animal enquanto são atingidos por líquidos provenientes das vísceras de outros animais veem se tornando comuns na atualidade e sendo assimilados como “normais” pela comunidade acadêmica.

Aquilo que era um sonho pode agora se tornar um pesadelo e deixar marcas irreversíveis na vida de um estudante. O que as Universidades podem fazer para conter tal prática? A sociedade pode intervir? De que maneira? A sociedade passa por uma contradição social na prática do trote vexatório ou a concepção de trote se alterou ao longo dos anos e o que presenciamos é apenas um novo modelo que emerge do incompreensível?

BULLYING: APENAS UM DOS FATORES

Por definição apresentada pelo sociólogo e mestre em Sociologia Orson Camargo no sítio Brasil Escola, obullying

É um termo da língua inglesa (bully = “valentão”) que se refere a todas as formas de atitudes agressivas, verbais ou físicas, intencionais e repetitivas, que ocorrem sem motivação evidente e são exercidas por um ou mais indivíduos, causando dor e angústia, com o objetivo de intimidar ou agredir outra pessoa sem ter a possibilidade ou capacidade de se defender, sendo realizadas dentro de uma relação desigual de forças ou poder.

Quando o assunto é o trote universitário, as práticas que estão sendo executadas na atualidade não passam longe da definição de bullying. Apesar de o aluno ter conhecimento de que participará do trote e muitas vezes aceitar tudo aquilo que é imposto pelos veteranos, não necessariamente descaracteriza o sofrimento psíquico ou físico que muitos deles se submetem e são submetidos. Por isso, acredita-se que o bullying se caracteriza mesmo com a conivência ou respaldo de quem participa.

O RETRÓGRADO SÉCULO XXI

A “participação voluntária” sempre se faz presente no discurso de quem comanda ou organiza os trotes sujos. Jogam a responsabilidade nos próprios calouros, uma vez que participa do trote quem quer. Mas a realidade não é bem essa. Historicamente, depoimentos de alunos que participaram de trotes onde houve excessos, afirmam que existe uma pressão psicológica por parte dos veteranos, que obrigam a participação de todos sob pena de serem discriminados e marginalizados durante o curso.

O trote nasceu das primeiras universidades que surgiram na Europa em plena Idade Média. O discurso que tem-se atualmente é envolto à tradição que a atividade representa. Observa-seuma das contradições presentes neste discurso: Se tomarmos como base a definição da palavra “tradição” expostapor SILVA & SILVA, 2006, concluí-se que não faz o menor sentido associar o trote com uma tradição a ser repassada durante os anos, pois não existe eficácia em sua prática nem tampouco relevância social para a vida na academia, que deve ser prazerosa, única e principalmente educativa:

A tradição tem, na perspectiva sociológica, a função de preservar para a sociedade costumes e práticas que já demonstraram ser eficazes no passado. Para Weber, os comportamentos tradicionais são formas puras de ação social, ou seja, são atitudes que os indivíduos tomam em sociedade e são orientadas pelo hábito, pela noção de que sempre foi assim. Nessa forma de ação, o indivíduo não pensa nas razões de seu comportamento. O comportamento tradicional seria, então, uma forma de dominação legítima, uma maneira de se influenciar o comportamento de outros homens sem o uso da força.

Assim, o trote hoje proposto por estudantes do país inteiro não deve ser justificado pela definição da palavra “tradição”. A sociedade como um todo passa por um momento onde práticas retrógradas e arcaicas ainda continuam sendo executadas sem nenhuma alteração. Isso demonstra que a sociedade talvez não tenha mudado tanto assim em desde os primórdios da Idade Média, afinal o trote continua tendo o mesmo caráter desumano, humilhante e sem sentido do século XIV.

UNIVERSIDADES IMÓVEIS FRENTE À RESPONSABILIDADE OBJETIVA

A indignação e revolta que um trote pode causar em quem apenas assiste o noticiário são inevitáveis. Observa-se que um dos primeiros questionamentos a se fazer é se determinada Universidade não fará nada para coibir tal prática ou punir culpados. O fato é que em sua maioria, Universidades do país não corroboram com a ideia do trote aos calouros. Porém, nota-se claramente que não existe uma fiscalização por parte de autoridades universitárias e nem tampouco campanhas que incentivem a alternativa à recepção vexatória.

Em vários momentos, colocar “panos quentes” nos acontecimentos referidos aos trotes é o que mais acontece nos dias de hoje. Infelizmente a Universidade ainda não se sente parte da humilhação que calouros passam todos os anos. Existe aqui outra contradição entre o real papel da academia quando o assunto é a recepção dos novos alunos e aquilo que acontece nos corredores. Acredita-se ainda que punir o trote não seja responsabilidade objetiva da Universidade, pelo fato de ser organizada e praticada pelos próprios estudantes, sem consentimento do corpo diretivo.

O fato é que as atividades que acontecem dentro do espaço da Universidade, mesmo sendo executadas pela subjetividade do ser humano são de responsabilidade da mesma. Se a ideia de que a Universidade não consegue controlar o que acontece em seu interior ganhar cada vez mais espaço, as portas para a perversa ideologia de que o trote vexatório tenha caráter de normalidade e continue sendo considerado tradicional entre os estudantes tomará proporções irreversíveis.

Desta forma, a palavra que mais se aproxima das reais necessidades que o século XXI necessita quando o assunto é a maneira como o trote deve ser enfrentado pela Universidade denomina-se punição. Compreende-se que a educação de modo geral possui um caráter humanizado e principalmente transformador de uma sociedade com problemas. Porém, humanizar ou transformar uma prática que teve como berçoa Idade Média e até hoje permeia de maneira cruel através do diálogo é válido e positivo na teoria, mas na prática não possui significado frente à inércia das Universidades do país.

A universidade tem, sim, a obrigação de prevenir e punir trotes violentos com suspensões e até expulsões. É o que dizem cinco atuais e ex-reitores, o Conselho de Reitores de Universidades Brasileiras, dois pesquisadores e a Abmes (Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior) – o tema veio de novo à tona com os casos de queimaduras na caloura grávida Priscilla Muniz, 18, e coma alcoólico e chicotadas em Bruno Ferreira, 21. (PINHO, 2009).

O TROTE SOLIDÁRIO COMO ALTERNATIVA

Quando as pessoas se deparam com alguma situação que não concordam ou se sentem na obrigação de mudar uma realidade, estas devemplanejar e executar ações que vão de encontro à alternativas mais eficazes para determinado problema. Se tratando da questão do trote universitário vexatório, existem organizações estudantis que defendem e praticam os chamados “Trotes Solidários”, uma iniciativa que vem ganhando cada vez mais seguidores e promovendo o real significado do trote universitário que a comunidade acadêmica clama: uma conscientização sobre direitos humanos e dignidade humana.

O trote solidário tem por objetivo promover a integração entre calouros e veteranos de maneira humanizada e conscientizadora. São ações voluntárias voltadas à doações de alimentos para instituições carentes, visitas à pacientes em hospitais, doações de sangue e promoção de atividades que relacionam-se com a cultura, esporte, cidadania e qualidade de vida. Mas por que não pensaram nisso antes? É o que todos nós gostaríamos de saber, devido ao avanço que a sociedade como um todo ultrapassa todos os anos.

Percebe-se que não precisa ir muito longe para se colocar em prática ações que visem a alternativa ao trote violento. Sempre existe algo de bom em cada ser humano que possa ser transmitido e assimilado por outro que esteja necessitando de amparo. O trote alternativo às práticas de repressão e barbárie contra estudantes calouros vem ganhando cada vez mais adeptos. A sensação de participar de um trote solidário e poder levar alegria e auxílio para comunidades carentes são apenas alguns dos sentimentos presentes em quem participa. Salienta-se ainda, que, em comparação ao trote tido como “tradicional e sujo”, o trote solidário não tem a representatividade que merecia. Muitos desconhecem sua prática, não participam e dissociam-se da ideia. Por isso, sozinho, o trote solidário encontra-se em um patamar distante do necessário para incorporar e fragmentar cada vez mais o trote sujo, necessitando não só do apoio dos estudantes, mas todos que envolvem a educação brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que etimologicamente, o trote universitário sempre foi pautado no discurso de manter uma tradição e um ritual de passagem obrigatório para quem entra na Universidade. Pior do que as práticas que são cometidas com alunos calouros está a dificuldade em extinguir tal ato e penalizar os envolvidos. A sociedade atual é aquela onde brincadeiras de mau gosto e situações de sofrimento psíquico são tidas como normais, devido não só à quantidade de pessoas que abraçam a causa, mas pela forma como o trote foi sendo assimilado e aceito durante décadas.

É inaceitável que situações de desconforto emocional elucidadas pelos trotes sujos ainda estejam presentes nas Universidades do país, mesmo existindo campanhas alternativas que não apoiam a ideia e repudiam tal prática que partem dos próprios estudantes. As contradições sociais ficam cada vez mais evidentes e sem explicação quando uma reportagem de um jovem que quase morreu ao participar do trote promovido pelos veteranos é transmitida.Será que a Universidade não continuará mais sendo objeto de desejo de muitos alunos, visto o perigo que atualmente passar no vestibular pode significar? É contraditório e no mínimo incompreensível que em pleno século XXI um jovem saia de casa para estudar e não volte mais por conta de um trote violento.

Desta forma, os acontecimentos históricos relacionados à tal pratica não está passando por uma ressignificação de conceitos, pois não se pode chamar o trote sujo e vexatório de um conceito. Trata-se da mais perversa forma de acolher alunos que sempre sonharam em chegar onde muitos não conseguem e que são obrigados a passar pelo “ritual da contradição”.

As alternativas existem para serem testadas. Está mais do que provado a eficácia dos trotes solidários, culturais, sociais e que promovem a cidadania. O que a comunidade acadêmica está esperando para colocar eles de uma vez por todas no lugar do contraditório trote vexatório é uma incógnita, pois para isso, deve-se acabar primeiro com a contradição mais difícil de ser entendida e superada: a contradição do ser humano.

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