Sou professor, sim senhor! – Papéis da educação e docência

Não é a primeira história que se vê sobre um alguém que, na falta de um emprego, escolhe trabalhar como professor apenas para sobreviver. Este trabalho é mal remunerado e o docente é confrontado pelos alunos, não recebe apoio do governo e é desvalorizado pela sociedade. Tais fatores contribuem com a baixa procura por cursos de licenciatura pelos alunos ingressantes nas universidades. E abrem-se as portas das salas de professores das instituições de ensino a administradores, engenheiros, agrônomos e outros profissionais que não conseguiram se colocar em uma vaga da sua área no mercado de trabalho.

É possível através do enfoque cinematográfico do filme “Ao mestre, com carinho”, dirigido por James Clavell, compreender a relação entre aluno e professor, como ocorre a adaptação deste às diferentes realidades de cada sala de aula e à profissão que lhe é colocada em mãos, os problemas sociais e raciais e a insegurança da adolescência. No filme, é perceptível a descrença dos professores em relação ao possível sucesso dos alunos do último ano, sala do professor Mark Thackeray. Estes, oriundos de outras escolas, rejeitados por estas, são aparentemente desinteressados de tudo o que lhe é proposto, principalmente aprender algo e portar um bom comportamento. São jovens vistos como rebeldes e indisciplinados, são criados pelos pais em um regime rígido e acabam, talvez por necessidade de afeto, reconhecimento e respeito, demonstrando sua inquietude na escola.

Remetendo-nos à realidade educacional, podemos perceber que o mesmo ocorre em diversas instituições de ensino. A desigualdade social do Brasil se acentua nas crenças, na geografia e principalmente no fazer e receber educação neste país. Podemos destacar as diversas violências que impedem ou atrapalham a promoção de uma educação necessária e eficiente: violência moral, física, humilhação, violência psicológica, discriminação e também indiferença por parte da família, dos professores e da sociedade em geral. É notável o descaso de educadores que não assumem uma postura ética em relação ao seu trabalho, propagando a discriminação, não comparecendo às aulas sem ter um motivo justo, deixando a desejar no preparo e execução das aulas e mesmo ao desacreditar do sucesso do próprio trabalho.

No espaço escolar, se reúnem o saber da cultura experienciada, adquirido no convívio com a sociedade e a cultura formal que é o domínio do conhecimento, das habilidades de pensamento. Para isso se torna necessário que a escola articule a capacidade de receber e interpretar informação com a produção, a partir do aluno como sujeito do conhecimento próprio, induzindo este a se formar um sujeito pensante, com postura crítica frente às transformações no mundo e possuidor do domínio dos conhecimentos, da cultura, da ciência, da arte, junto com o desenvolvimento de capacidades e habilidades de pensamento. Tais competências serão desenvolvidas se a escola oferecer serviços de qualidade e um produto de qualidade, pois:

“[...] a escola tem um papel insubstituível quando se trata da preparação cultural e científica das novas gerações para enfrentamento das exigências postas pela sociedade contemporânea. A escola tem o compromisso de reduzir a distância entre a ciência cada vez mais complexa e a formação cultural básica a ser provida pela escolarização. [...]” (LIBÂNEO, 2001, p.34)

A educação tem caráter reprodutivo e está relacionada ao que a sociedade espera do indivíduo, da própria sociedade, pois se instala em um domínio de trocas, símbolos, intenções, padrões de cultura e relações de poder. Brandão discute que quando “trabalho” e “poder" se dividem, o “saber” se separa do “fazer”, passando a ser utilizado como forma de dominação de uns sobre os outros. Esta afirmação explica o surgimento da escola, dos saberes especializados, da divisão do saber e o fato de se confundir educação e ensino, excluindo socialmente os que não se educam através da escola.

Em toda sociedade capitalista existem diferenças culturais que criam um muro separatista entre a classe possuidora de muitas posses e os trabalhadores, dominados. O modo de vestir, falar, ver o mundo e manter-se no mundo se diferenciam. Para Bourdieu e Passeron a classe social que domina especificamente sobre o campo pedagógico, induz o sistema de ensino a fazer com que as classes inferiores reconheçam a cultura dessa classe dominante como única cultura legítima e, ao mesmo tempo, impedir que as classes inferiores tenham acesso a tal cultura. Dentro do sistema de ensino, os professores são convocados induzir as classes populares a legitimar a alta cultura e, simultaneamente, marginalizar culturalmente essas classes, às quais não é dada a possibilidade de conservar e realimentar sua própria cultura.

“Pelo fato que o trabalho pedagógico tem por efeito produzir indivíduos modificados de forma durável, sistemática por uma ação prolongada de transformação que tende a dotá-los de uma mesma formação durável e transferível, isto é, de esquemas comuns de pensamento, de percepção, de apreciação e de ação, pelo fato de que a produção em série de indivíduos identicamente programados exige e suscita historicamente a produção de agentes de programação eles mesmos identicamente programados e de instrumentos padronizados de conservação e transmissão.” (BOURDIEU; PASSERON, pg.231)

Partindo dos pressupostos de Émile Durkheim, Brandão chama atenção para o fato de que a educação também se constitui uma prática social, reproduzindo sujeitos sob determinadas exigências, princípios e controles sociais. Neste aspecto, são os modos de produção e os valores culturais que determinam os tipos de educação adequados aos interesses políticos e econômicos de uma sociedade. Ou seja, enquanto na sociedade capitalista os sujeitos devem ser formados para se adequar às exigências do mercado de trabalho, os habitantes de aldeias indígenas isoladas não necessitam de conhecimento tecnológico, e sim da capacidade de sobreviver no ambiente natural onde vive.

Para tanto, como o objetivo da educação é manter a cultura viva, atendendo às necessidades da sociedade, prioriza-se a aprendizagem individual que se desenvolve nas dimensões: humana, político-social e técnica. Como aprendizagem, pode-se entender o desenvolvimento da pessoa como um todo: inteligência, afetividade, padrões de comportamento moral, relacionamento com a família, com o bairro, a cidade e com o país, desenvolvimento de capacidades artísticas, comunicação, dentre outros. Assim, o aluno está em contínua evolução e fazendo parte da história do seu povo, de sua nação. O ensino-aprendizagem segue orientações e diretrizes de profissionais da educação e das políticas governamentais. Estas últimas têm uma influencia muito grande através da legislação e de normas que afetam a escola.

O processo de aprendizagem se realiza através dos relacionamentos interpessoais, ou seja, entre alunos, professores e direção. Cria-se assim, um clima afetivo que é responsável, em muitos aspectos, pelo sucesso ou fracasso da aprendizagem. Este fator pode ser destacado no filme, onde os alunos vivenciam boa relação entre si, contudo, as tentativas de aproximação por parte da direção e dos professores anteriores a Thackeray não são alcançados, impedindo o rendimento das aulas e o interesse dos discentes por estas. A aproximação estabelecida por Thackeray se fundamentou no respeito, descoberta e reconhecimento das qualidades, dons e vocações dos alunos e na adoção de uma atitude quase paternalista.

A cena em que o professor joga os livros utilizados até então na lixeira é um tanto chocante, mas destaca a importância da reorientação curricular, da adaptação do currículo à necessidade de cada turma em que se trabalha. Tal cena representa a necessidade de inserção de novas técnicas de ensino ou mesmo a criação de um novo modelo de educação. Normalmente, a representação que o professor tem de sua tarefa é de que deve desenvolver determinados conteúdos e informações consideradas relevantes para a formação das novas gerações. Mas cria-se um dilema ao ter que definir quais são estes conteúdos. Posteriormente, este dilema se aprofunda no questionamento da forma em que a tarefa está sendo cumprida, quando o professor percebe que os alunos não estão sendo cativados e os resultados das avaliações não são animadores. Exatamente nestes momentos, surge a necessidade de um replanejamento.

O planejamento de um curso deve ser elaborado levando em consideração dos interesses dos alunos e o programa da matéria ensinada, com variações de técnicas das aulas a fim de que facilitem a participação dos alunos, a aprendizagem e a interação do grupo, fazendo ligação entre a teoria e prática, entre os conhecimentos científicos e a realidade do aluno e transformando a avaliação em um incentivo ao desenvolvimento do aluno.

É neste meio de consolidação da aprendizagem que se destaca a importância do trabalho do professor e seu interesse por este. O profissional satisfeito sempre desempenha bem o seu trabalho. Segundo Souza, a maioria dos professores dizem que, se tivessem podido escolher, optaria por outra profissão. Para muitos, entrar para este ramo de trabalho apresenta-se como manifestação de conformismo inevitável. E assim:

“Se o ingresso na carreira docente ocorreu como mecanismo de conformismo, é na experiência desses professores que as relações de dominação são ambíguas e ambivalentes, marcadas por relações de conformismo e de resistência. São relações caracterizadas por aceitação, por interiorização dessas formas de dominação, e por recusa, negação.” (1996, p.79)

Segundo Julio Aquino, em um artigo publicado na revista Nova escola , à medida que os alunos se apropriam do objeto de conhecimento disposto, o professor deixa de ter serventia e terá de principiar sempre. Porém, furtar a jovialidade dos alunos, sua gana pela descoberta, sorver a seiva de vida que de lá emana seria o segredo da vitalidade do professor. Diz ainda que é a única profissão em que a aposentadoria não há de fato, pois o gesto de professor reinaugura-se sempre ou então, sempre se recorda dele com fervor, se isto não ocorre, não foi professor.

E, para tanto, professor não é necessariamente aquele que cursou uma licenciatura. O ‘título de mestre’ também se estende àquele profissional de outra área que, como Thackeray, encontrou na educação o seu lugar e, apesar da desvalorização e dificuldades ali vividas, vê-se como instrumento necessário para as mudanças positivas da sociedade.

É certo que se torna impossível para a educação escolar se responsabilizar pelo sucesso do mundo, mas é exatamente onde pode ser feita toda a diferença. “[...] Talvez uma das melhores maneiras de conceituar a educação seja dizer que ela não pode tudo, mas pode muita coisa.” (FREIRE, 2001. p.168) Para tanto, o educador deve ter consigo, “absolutamente certo de que mudar é difícil, mas é possível”, frase de Freire que palavras do grande líder humanista, Ghandi: ”Você pode ser a mudança que deseja ver no mundo”.

Referências bibliográficas

BOURDIEU, P.; PASSERON, J.C. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. São Paulo: Francisco Alves, 1975.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 2007.

CLAVELL, James. To sir, with Love (Ao mestre, com carinho). 1967.

FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

LIBÂNEO, José Carlos. Organização e gestão da escola: teoria e prática. Goiânia: Editora Alternativa, 2001.

MIZUKAMI, Maria da Graça Nicoletti. Ensino: As abordagens do processo. São Paulo: EPU, 1986.

SOUZA, Aparecida Neri. Sou professor, sim senhor!. São Paulo: Papirus, 1996.