Uma dimenção crítica do ensino de gêneros textuais, com base em atividades sociais
Uma dimensão crítica do ensino de gêneros textuais, com base em atividades sociais*
Alice Gonçalves Silva*
Lívia Maria da Silva Carvalho*
Resumo
O presente artigo propõe encorajar o debate sobre as possibilidades pedagógicas da concepção do ensino de gênero textual refletido em atividades sociais. Nesse sentido, busca-se aqui discutir o tratamento dado a essa noção nos PCN e, em decorrência dessa discussão, refletir sobre o ensino da linguagem. As reflexões expostas no texto estão fundamentadas em dos referenciais práticos: 1) O ensino de produção textual depende de um realinhamento conceitual da representação do aluno sobre o que é escrita, para quem se escreve, com que objetivo, de que modo e sobre o quê; e 2) as atividades de produção textual devem ampliar a visão do aluno sobre o que seja um contexto de atuação para si mesmo. Mas, explicitamente, será colocado contribuir para um bom aprendizado e para uma boa produção textual.
Palavras-chave: Gênero textual; Produção textual; Ensino
1. Introdução
A variedade de trabalhos na área de linguística aplicada, dedicadas aos estudos dos gêneros textuais, que surgiram ao longo desse século, é enorme. Tais trabalhos têm enfatizado o papel da linguagem em constituir as atividades sociais em contextos específicos. As atividades sociais podem ser definidas como ações, por meio das quais as pessoas tentam alcançar objetivos, que foram motivos por outras ações de um processo histórico dinâmico. O que as qualificam como gêneros textuais é o fato de que essas atividades podem ser recorrentemente mediadas pela linguagem. Exemplos de gênero são: a entrevista, a lista de discussão via internet e a resenha.
No Brasil, as propostas de ensino sofreram um impacto ao final da década de 90, quando foram publicados os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino médio – linguagens,códigos e suas tecnologias. Para muitos, os Parâmetros Curriculares, apesar de controvérsias sobre sua adequação ou mesmo legitimidade, se constitui como guia maior das diferentes atividades educacionais no Brasil. Por isso, esse documento, ao recorrer ao conceito de gênero para elaborar a proposta pedagógica de ensino da linguagem (Língua Portuguesa e Estrangeira), se constitui uma contribuição importante no que tange a pesquisa e a prática pedagógica da linguagem.
A perspectiva da linguagem adotadas nos PCN é orientada para a vida social e mostra um avança se comparada á visão estruturalista, adotada na escola até bem recentemente, em que se definia um programa de curso com categorias gramaticais normativas, a serem trabalhadas de modo descontextualizado, tais como a concordância verbal, por exemplo, ou mesmo em relação às propostas resultantes da perspectiva discursiva dos anos 80, que viam no discurso e no texto as unidades de estudo.
Sendo assim, o objetivo deste trabalho é motivar o debate sobre as possibilidades pedagógicas da concepção de gênero textual, uma vez que tal concepção pressupõe que os usos da linguagem sejam vistos como atividades sociais, que ocorrem num contexto imediato de situação, dentro do âmbito mais amplo do contexto de cultura.
2 As noções de gêneros para os PCN
O estudo dos gêneros certamente não é exclusivo da sociedade atual. Desde a Idade Média, por Platão os gêneros já existiam, só que definidos como gêneros literários (epopéia, tragédia). Atualmente os gêneros ganharam uma nova perspectiva, a do discurso.
Dentre essas perspectivas, é possível definir três, para o termo gênero, isso nos PCN. Assim, gêneros aparecem frequentemente no sentido de tipo de texto (ficcional ou não ficcional), mas raramente como estratégia retórica (termo argumentativo, dissertativo, etc.) e, em alguns momentos, como evento comunicativo institucionalizado em grupo social (todo gênero faz parte de uma esfera social de veiculação).
Gênero é tratado como “tipo de texto” por suas características formais como tema e estrutura composicional. Segundo Brasil (2000, p. 78- 79) “Como os textos ganham materialidade por meio dos gêneros, parece útil propor que os alunos do ensino médio dominem certos procedimentos relativos às características típicas de uma narrativa ficcional.”
Nesses termos, a referência ao conceito de gênero é feita sem alusão ao contexto social ou à atividade em que a linguagem desempenha uma função simbólica constitutiva. Em outros momentos, gênero é tratado como “estratégia retórica”:
Uma aula da disciplina de Língua Portuguesa, que integra a área de Linguagem e Códigos, ao tratar dos gêneros narrativos ou descritivos, pode fazer uso de relatos históricos, processos sociais ou descrições de experimentos científicos. Na realidade, textos dessa natureza são, hoje, encontrados em jornais diários e em publicações semanais, lado a lado com crônica pública política ou policial. (BRASIL, 2000, P. 18)
Nessa concepção, a definição de gênero se pauta por características associadas a modalidades retóricas tradicionais, tais como a narrativa (encadeamento de eventos), descrição (enumeração de características) e exortação (apresentação de argumentos persuasivos).
Há ainda um terceiro emprego do termo “gênero comunicativo institucionalizado”:
Ser falante e usuário de uma língua pressupõe a utilização da linguagem na interação com pessoas e situações envolvendo: desenvolvimento da argumentação oral por meio de gêneros como o debate regrado; domínio progressivo das situações de interlocução, por exemplo, a partir do gênero entrevista. (BRASIL, p. 61- 62).
3 Linguagem como gênero, um evento comunicativo dentro de um grupo social
Ao mencionar o gênero entrevista, por exemplo, é possível que o interlocutor acione significados históricos e socialmente compartilhados, relativos a: os temas que recorrentemente se tratam numa entrevista condizem com os papéis e relações sociais dos envolvidos.
Enfim, há inúmeros aspectos constitutivos dos quais a linguagem é parte integrante. Os estudos da linguagem fazem referência ao contexto como situação enunciativa, como o conjunto de todos os fatores que dão forma a um momento no qual uma pessoa se sente chamada a estabelecer trocas simbólicas. Os PCN fazem referência à necessidade de o aluno ser educado no sentido de fazer a relação e a adequação que se estabelece entre texto e contexto: entre as escolhas que são postas a seu dispor pelo sistema léxico- gramatical da língua e o contexto de uso da linguagem, isto é, a situação social em que se encontra.
Os PCN alertam ainda, que a escola deve incorporar em sua prática de ensino os gêneros ficcionais ou não ficcionais, que circulam socialmente para encorajar o domínio progressivo das situações de interlocução. Também chamam atenção para os locais e as situações e que os gêneros, enquanto unidades semânticas e funcionais da linguagem são encontráveis: “relatos de fatos históricos, processos sociais ou descrições de experimentos científicos, e jornais diários, em publicações semanais; na literatura, o poema, o conto; na publicidade, a propaganda, o anúncio [...]”. (BRASIL, p. 77). Portanto, tais gêneros constituem uma fonte educacional.
O foco da educação lingüística, portanto, recai sobre o ensino da interação ou interlocução. Ensinar linguagem passa a ser mais do que ensinar as estruturas da língua, pois se concentram em levar o aluno a desenvolver competências analíticas dos contextos discursivos. Nesse sentido, o contexto, como situação recorrente na sociedade, passa a ser critério para se escolher o quê e como dizer ou escrever. Por isso, o ensino de gramática deve estar a serviço da capacidade de analisar o contexto e de escolher as possibilidades a partir de uma atividade e se engajar na interação como o mundo constata-se os componentes centrais da do desenvolvimento das habilidades de leitura e redação, então gêneros passam a ser também um construto teórico útil para o ensino de produção textual.
Em termos de ensino, o aluno precisa aprender a agir em diversas situações de interação social, especialmente, aquelas em que a interação se dá por intermédio do texto escrito. Sabe-se falar português, mas muitas vezes, não se sabe o que dizer, por não saber como agir em uma dada situação, que papel é estipulado para se e para os outros, que tipos de relações estão pressupostas. No caso da língua escrita, a dificuldade fundamental talvez seja levar o aluno a lembrar ou projetar um contexto em que ele precisa escrever para realizar coisas. O ensino da produção textual deve passar por desconstrução e análise do contexto, da situação comunicativa, para que o aluno passe aperceber a configuração social de um momento e como a língua, o sistema semiótico, constitui esse momento.
Por fim, escrever só faz sentido se houver espaço para isso na vida pessoal e/ou social da pessoa e se a sociedade desenvolver instituições letradas, num processo de relações sociais, isto é, “não há razão saber ler e escrever um contrato se não há condições econômicas para se comprar/alugar uma casa se não houver instituições que garantam a validade do texto escrito como ato.” (SOARES, 2002, p. 12).
Alguns autores com Mikhail Bakthin, da Rússia; Basi Bernstein, na Inglaterra; Paulo Freire, Magda Soares, Luiz Antônio Marcuschi, Wanderley Geraldi, parecem ter em comum uma visão social da linguagem que enfatiza a importância do engajamento em atividades socialmente relevantes para o desenvolvimento da linguagem. Sob essa perspectiva, achar lugar para a escrita na vida do aluno não é suficiente. Como educadores de linguagem, devemos ampliar a perspectiva do aluno sobre situações vivenciáveis por ele. Em outras palavras, devemos o leque de possibilidades de experiências, trazendo o mundo para a sala de aula levando, assim, o aluno a vivenciar o mundo “lá fora”. A contribuição da noção de gêneros textuais para o ensino da linguagem, portanto, é chamar atenção para importância de se vivenciar na escola atividades sociais, das quais a linguagem é parte essencial; atividades essas, em que, muitas vezes, o aluno não terá acessos a não ser pela escola. O mundo letrado deve ser desmitificado, deve se tornar algo real, palpável.
Ensinar linguagem, sob a perspectiva de gênero, não é mesmo que ensinar “tipos de texto”, mas assim, trabalhar “com compreensão de seu funcionamento na sociedade e na sua relação com os indivíduos situadas naquela cultura se sua instituições”, ou ainda, “com espécies de texto que uma pessoa num determinado papel na sociedade tente produzir”. (MARCUSCHI, 2005, p. 10-12)
4. Considerações finais
O ensino de produção textual com base em gêneros demanda uma descrição detalhada de contextos específicos, a consideração de elementos linguísticos, que mantêm relação sistemática com o comportamento ou eventos sociais que desejamos explicar. Cada vez mais, evidencia-se a necessidade de novos estudos sobre diferentes gêneros textuais que desenvolvam instrumentos teóricos e práticos para demonstrar, através de textos orais e escritos, criam-se representações que refletem, constroem e/ou desafiam nossos conhecimentos, e cooperam para o estabelecimento das relações sociais identitárias.
Ao aprender os gêneros que estruturam um grupo social com uma dada cultura, o aluno aprende maneiras de participar das ações de uma comunidade. Descobrir como fazer isso consistentemente na sala de aula parece ser o nosso desafio. A sala de aula de línguas talvez seja o lugar onde devemos analisar, critica r e/ou avaliar as varias instancias de interação humana de culturas localizadas, nas quais a linguagem é usada para mediar praticas sociais. Na verdade, ensinar línguas é ensinar alguém a ser um analista do discurso, por isso as discussões em sala de aula devem focar as praticas linguareiras nas ações especificas do grupo social relevante.
Ao discutir a flutuação do uso do termo “gênero” os PCN, pôde-se demonstrar a necessidade da discussão e reflexão a cerca das categorias mais usadas para se estudar a linguagem, bem como a necessidade de avançar na pesquisa e na descrição da linguagem como sistema simbólico que media as atividades sociais. Vale ressaltar ainda que, embora os PCN apresentem flutuação em relação ao conceito de gênero, a proposta da educação lingüística que apresentam, enfatiza a importância da relação entre texto e contexto no ensino da linguagem e propõem que sejam utilizados gêneros do contexto do aluno em sala de aula.
Referências Bibliográficas
BRASIL, Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino médio- linguagem, códigos e suas respectivas tecnologias. Brasília: MEC, 2000.
GERALDI, José Wanderley. Linguagem e ensino: Exercícios de militância e divulgação. Campinas, SP: ALB/Mercado de Letras, 1997.
MARCUSCHI, L. A Gêneros textuais, tipificação e interação. São Paulo: Cortez, 2005.
MEURER, José Luiz. MOTTA- ROTH, Désirée. Gêneros textuais: subsídios para o ensino da linguagem. Bauru, SP: EDUSC, 2002.
SOARES, Magna. Português: uma proposta para o letramento. Ed. São Paulo: Moderna, 2002.