Mediação de conflito e contexto escolar
O presente artigo constitui uma produção escrita a partir da dissertação de mestrado desenvolvida na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) entre os anos de 2009 e 2011, cujo tema foi violência em contexto escolar. A pesquisa que possibilitou a realização deste projeto foi um estudo de caso etnográfico, realizado em uma escola da rede pública de Salvador. Na primeira parte do artigo teço alguns comentários teóricos sobre a mediação de conflito na Justiça brasileira e no contexto escolar, por fim, relato alguns fragmentos da minha pesquisa de campo, tendo em vista problematizar o tema.
Na justiça brasileira não existe uma cultura de conciliação, mas a cultura do litígio e do conflito, que estimula a resolução das querelas por meio de um processo nos tribunais. Machado & Noronha (2008, p.128) acreditam que a proliferação do uso de violências se relacionam “[..] com a fragilidade das concepções e práticas de negociação de conflitos, em nível dos direitos costumeiros e formalizados. Expressando uma separação entre sociedade e poder político estatal”. A fragilidade dos mecanismos de regulação de conflitos atravessa toda história do Brasil e seria causa e, ao mesmo tempo, conseqüência, de um tipo de sociabilidade fundada em soluções do tipo pessoal.
Atualmente estão sendo dados os primeiros passos para mudar esta realidade. No dia 29 novembro de 2010 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a Resolução 125 que institui a “Política Nacional de Tratamento dos Conflitos de Interesses”, onde fica determinado que os tribunais de justiça devam oferecer, além da solução dos processos com as sentenças dos juízes, mecanismos alternativos de resolução dos conflitos entre as partes por meios consensuais. De acordo com o CNJ, a política de conciliação, além de desafogar o judiciário, objetiva promover a cultura de pacificação social.
Os meios alternativos formais de resolução de conflitos, vulgarmente designados por ADR (Alternative Dispute Resolution), surgiram na década de 70 nos Estados Unidos da América e englobam, entre outros, a mediação, a negociação, a arbitragem e a conciliação. Em contexto escolar as primeiras experiências de conciliação aconteceram também nos Estados Unidos, mas precisamente em 1982, no Community Boards de San Francisco. Progressivamente, os programas de resolução de conflitos e de mediação no contexto escolar estendem-se por todo o mundo e, atualmente, existem experiências maduras na Argentina, Nova Zelândia, Austrália e Canadá; na Europa, podemos encontrar experiências desta natureza em países como a França, Grã-Bretanha, Suíça, Bélgica, Polónia, Alemanha, Espanha, entre outros (MORGADO & OLIVEIRA, 2009)
Segundo Neves (2009), no contexto brasileiro, a mediação escolar ainda está começando a se desenvolver. A experiência pioneira foi a do Projeto Escola de Mediadores desenvolvida no Rio de Janeiro em 2000, pelo Instituto NOOS, Viva Rio – Balcão de Direitos, Mediare e Secretaria Municipal de Educação, em duas escolas públicas do Município do Rio de Janeiro. A iniciativa teve o apoio do Ministério da Justiça, por meio da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, responsável pelo Programa “Escolas de Paz”. Os resultados deste projeto foram considerados muito positivos, tendo gerado a Cartilha Escola de Mediadores, que fornece informações sobre os processos de mediação bem como de implementação da mediação escolar.
Outro experiência considerada marcante foi desenvolvida em 2009 pelo Instituto de Mediação e Arbitragem do Ceará (IMAC), o “Projeto de implementação da mediação escolar”. Este projeto tem como principal objetivo capacitar membros das escolas para atuarem como mediadores de conflito e a implantação de um núcleo de mediação na escola. Essa iniciativa faz parte da pesquisa de doutoramento em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC) da professora Dra. Sinara Motta Neves de Almeida em parceria com a 13ª Promotoria de Justiça dos Juizados Cíveis e Criminais. A experiência da implantação do núcleo de mediação em uma escola municipal de Fortaleza tem sido alvo de amplo reconhecimento entre alunos e professores da sua importância no enfretamento das violências.
Neves (2009) considera que o processo de mediação visa promover o diálogo entre as partes, a escuta diferenciada dos pontos de vista e razões da outra parte, num ambiente de respeito. Tal conscientização gera responsabilidade, acrescentando o compromisso com o acordo, por admitir, aos envolvidos na disputa, saírem do círculo vicioso de vítimas e acusados. Nessa perspectiva, mais do que um método de resolução de conflitos, a mediação constitui uma prática social capaz de refazer laços afetivos, familiares e sociais. Mesmo que os mediados não cheguem a um acordo, o processo tende a diluir as hostilidades, constituindo um modelo de interação cooperativo, que pode ser utilizado em outras situações de disputa.
Embora constitua um importante mecanismo para incentivar a pacificação dos costumes, a mediação de conflito desacompanhada de um processo mais amplo, que tenha o objetivo de diminuir as desigualdades sociais, tudo leva a crer, não será suficiente para fomentar no brasileiro a crença na justiça, seja pela via legal, seja através dos mecanismos de mediação e conciliação de conflitos. A crença na justiça se fortalece em sociedades democráticas, que efetivamente respeitam os direitos de cidadania e promovem igualdade social.
MEDIANDO CONFLITOS ENTRE OS ALUNOS
O processo de observação participante realizado no cotidiano da escola que fiz minha pesquisa de campo, foi me colocando, a cada dia, mais próximo das situações em que os educadores interviam nos episódios de conflitos entre alunos. Esta aproximação foi gerando demandas por parte da direção, inicialmente, de opiniões durante suas intervenções e, posteriormente, que eu mesmo fizesse algumas mediações. Uma oferta duplamente sugestiva. Primeiro me permitiria conversar com os alunos envolvidos em situação de violência antes da intervenção institucional e, segundo, me possibilitaria colocar em prática alguns princípios da mediação e poder avaliar os resultados.
Não tive qualquer dificuldade para operacionalizar minhas ideias. Muito pelo contrário, ouvi mais de uma vez algum professor dizer: “espero que quando sua pesquisa acabar você fique aqui para ajudar agente”. Esta fala é bastante sugestiva, posto que alguns educadores mudaram seu discurso ao longo da pesquisa. Passaram a dar mais valor ao diálogo e à busca de conciliações ao invés de culpados. Contudo, a prática dominante continuou sendo a lógica punitiva, que muito mais do que uma estratégia, parecia ser uma cultura que os educadores reproduziam de maneira acrítica. Um exemplo bem didático desta situação aconteceu quando realizei a mediação de um conflito entre alunos do sexto ano.
Naquele dia eu havia chegado à escola 09h30min e encontrei uma grande concentração de alunos em frente da sala da coordenadora do fundamental 2, o que geralmente sinaliza algum problema. Ao chegar à sala havia um grupo de sete alunos, sendo duas meninas e cinco garotos. Não havia educador na sala e quando os alunos me viram, vieram contar suas histórias. Todos começaram a falar ao mesmo tempo, até que finalmente consegui um pouco de ordem.
O aluno A se queixava de ter tido seu casaco rasgado por alguns colegas e acusava dois, que estavam presentes, de terem participado da agressão. Fato que ambos negavam veementemente. Procurei saber mais detalhes do que havia acontecido e o aluno B contou que tudo começou “com uma brincadeira de passar maquiagem no rosto dos garotos, ai o casaco dele rasgou”. O aluno C afirmou que todos participavam da brincadeira, mas o aluno A insistia em dizer que foi uma vítima. A história foi contada algumas vezes até que finalmente perguntei para o dono do casaco se ele queria que pagassem seu prejuízo e, para minha surpresa, ele disse que não.
Este caso é exemplar entre os conflitos acontecidos na escola. Um grupo de alunos começa brincando de alguma coisa e, de repente, alguém não gosta de algo que aconteceu, reage e algum aluno se sente agredido. Começa uma briga e alguém da instituição leva os envolvidos para uma das salas dos gestores. Lá chegado todos querem se livrar das acusações e passam a jogar a culpa um para o outro. O caminho que desenvolvi para mediar estas situações era fazê-los entender que não estava à procura de culpados, para finalmente puni-los. Isto era fundamental para conseguir que mudassem o discurso da posição de vítimas, manipulando o educador visando se livrar de uma possível punição, para um discurso de sujeitos, responsáveis pelos seus atos.
Quando o dono do casaco disse que não queria pagamento pelo prejuízo, percebi que havia surgido abertura para uma conciliação. Então perguntei: o que você quer que eu faça? Ele não sabia. Neste momento de hesitação, confessou que não lembrava direito o que havia acontecido e admitiu que poderia, de alguma forma, ter participado da brincadeira. De repente, entrou na sala uma professora. Ela percebeu qual a direção as coisas estavam tomando, mas não se sentiu satisfeita. Em sua opinião deveria haver algum culpado pela briga. Então exigiu que o responsável pelo início da brincadeira aparecesse. Neste momento o clima se desfez e todos voltaram à postura de defesa e de ataque.
No final, a professora conseguiu o que queria, ou seja, um culpado. O aluno foi ameaçado de suspensão e, por fim, encaminhado para a sala de aula. Perguntei, então: para que serve descobrir o “culpado” se eles já haviam se entendido? A professora me disse: “para ficar como exemplo, aqui não é lugar de bagunça, eles precisam aprender a se controlar, a ter disciplina e não ficar brigando o tempo todo”. Indaguei se ela achava possível um convívio sem conflitos. Ela ficou meio indecisa e concluiu que: “isso é falta de educação”.
A fala da professora evidencia uma forma negativa de interpretar o conflito. Tudo indica que, na sua compreensão, a escola deveria ser um lugar de ordem e disciplina, sem maiores desentendimentos entre os alunos: “aqui não é lugar de bagunça”. De acordo com Ariès (1973), esta concepção de escola surge na Europa ocidental, mas precisamente na Inglaterra e na França a partir de fins do século XVII. Segundo o autor, a vida escolástica surgiu da passagem de uma educação reservada a um pequeno número de clérigos, para se tornar, no início dos tempos modernos, um meio de isolamento e adestramento das crianças. Desta forma, os professores passaram a submeter o aluno a um controle cada vez mais rígido, de forma, que no século XIX, a instituição ideal passou a ser o internato. Uma nova noção de moral se instala onde a criança bem educada torna-se sinônimo da criança obediente.
A concepção de obediência nas sociedades complexas contemporâneas, diferente dos cenários onde emergiram a educação escolar, é atravessada por uma constante tensão, onde as hierarquias e a distribuição do poder estão sempre em questionamento. Da Matta (1982) lembra que nas sociedades tradicionais, mas estáveis ou integradas, a possibilidade do consenso era maior, diferente dos cenários contemporâneos, marcados pelo dissenso em vários níveis, tornando o conflito permanente e a necessidade de negociação um imperativo. Conseguir obediência neste contexto, portanto, envolve um processo mais complexo, onde o poder deixa de ser simplesmente imposto, para ser negociado.
COMENTÁRIOS FINAIS
No interior da escola pesquisada, os conflitos são resolvidos predominantemente sem qualquer tipo de mediação, de forma direta entre os alunos. As querelas mais simples, envolvendo motivos fúteis, como o desentendimento em função de algum material escolar, pode se transformar em tema para agressões. São frágeis os espaços para negociações ou para o diálogo. Dentro desta dinâmica, as violências se tornaram uma importante referência identitária, um código cultural que organiza e determina as relações locais. Isto torna o seu enfrentamento além de um desafio que envolve mudanças na dinâmica da instituição, um trabalho complexo de mudança de valores. O que não se consegue do dia para a noite.
Por outro lado, a instituição contribui bastante para alimentar a cultura da não mediação através dos seus modelos de autoridade e de relacionamento. Resultado, as violências encontram um ambiente bastante favorável para se proliferar, assumindo diferentes significados e manifestações. Um importante passo para transformar esta realidade consiste em substituir a lógica punitiva pela conciliatória e instituir mecanismos mediadores legítimos, que se tornem opções válidas na forma dos conflitos serem resolvidos. Pacificar costumes dificilmente se consegue de forma violenta, através de imposições e castigos. O que não significa afirmar que seja desnecessário desenvolver dispositivos de controle e de coerção efetivos, mas focar nos ideais de democracia e de justiça os principais meios para enfretamento da violência. O que implica, necessariamente, na instituição desenvolver meios para possibilitar que os interesses dos alunos também sejam considerados e respeitados. As rotinas, os conteúdos das aulas e as regras de convívio precisam ser negociados e não simplesmente impostos.
Um percurso complexo e repleto de incertezas, posto que se choca com a falta de consciência social e com a descrença na efetividade das leis tão disseminada na sociedade brasileira. Contudo, um processo inevitável, posto que uma escola que não consegue desempenhar o papel de mediadora das relações estabelecidas no seu interior não educa, se transforma em um clube perverso, onde a violência e a criminalidade encontram o ambiente perfeito para se proliferar.