A escrita na História da Humanidade - 2
Vários começos
A escrita causou uma revolução tão significativa nas comunicações, que os historiadores estabeleceram o encerramento da Pré-História e o nascimento da História no período em que o homem começou a escrever. Mas essa passagem histórica não se deu ao mesmo tempo em todas as partes do nosso planeta.
Somente muitos milênios depois a Pré-História findou na América, na África Central e na Austrália, com a conquista dessas regiões pelos europeus, a partir do século XV. Isso demonstra que por mais de cinco mil anos, a escrita manteve-se na vanguarda como um dos marcos iniciais da História. Segundo Fábio Costa Pedro e Olga M. A. Fonseca Coulon (1989), o fim da Pré-História ocorreu primeiramente no Oriente Próximo, com o surgimento da escrita ligado à evolução das primeiras civilizações urbanas, na região entre os rios Tigres e Eufrates, na Mesopotâmia, cerca de 40 séculos antes da Era Cristã.
Com essa reputação, a escrita adquiriu autonomia e independência, tornando-se objeto de necessidade de domínio mundial. Também transcendeu em fama aos seus inventores e aos que a têm aperfeiçoado no processo contínuo da evolução das civilizações. Conforme José Juvêncio Barbosa, seus criadores são completamente desconhecidos. Ironicamente, não há informações de que seus idealizadores, criadores, nem os grupos especializados que a aprimoraram ao longo da história, deixaram registrados seus nomes em algum objeto, utilizando seu próprio invento. Apesar desse anonimato, Barbosa afirma que a invenção da escrita é um dos fatos responsáveis pelos desenvolvimentos na antiguidade:
"Na realidade esta, como muitas “invenções” do gênio humano, pode ser considerada como aprimoramento de algo que já era anteriormente conhecido. Infelizmente não conhecemos o nome de nenhum dos autores das reformas mais importantes na história da escrita. Seus nomes, como o de tantos outros grandes homens, responsáveis por melhorias essenciais da vida humana (como por exemplo o uso prático da roda, do arco e flecha, da embarcação a vela) perderam-se para sempre no anonimato da Antiguidade". (BARBOSA, 1991, p. 34).
Apenas se conhecem épocas, povos e locais de onde se deram os primeiros registros escritos, os chamados cuneiformes, desenvolvidos pelos sumérios na Mesopotâmia, por volta de 4.000 a.C., embora alguns historiadores situem seu aparecimento há mais de seis mil anos. Barbosa (p. 35) afirma que “o primeiro registro que se conhece é uma pequena lápide, encontrada nos alicerces de um templo em Al Ubaid. O construtor do templo escreveu nela o nome do seu rei. Esse rei pertenceu a uma dinastia entre 3150 e 3000 a.C.”.
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“Mil e uma utilidades” históricas
A existência da escrita distingue-se como um marco das formas de expressão, não apenas por sua capacidade de registrar a História, representar a fala ou idéias, ser apreendida e decodificada pelo entendimento humano, mas também por ultrapassar limites geográficos, sobreviver épocas, ajudar a construir ou desconstruir culturas, universalizar religiões, idéias, pensamentos, sofrer mutações pelas mais diversas causas, entre elas as transliterações e as traduções, e, ainda assim, ter a possibilidade de permanecer como originalmente foi produzida.
O desenvolvimento dos métodos de agricultura e do comércio, e as distâncias entre as cidades entre as quais se estabeleciam relações de troca, são tidos como os responsáveis pelos primeiros registros escritos, ante a necessidade de controle administrativo, de registros contábeis e de se saber com exatidão onde se situavam os distantes pontos de abastecimento e quais as rotas a seguir para os alcançar. Conseqüentemente, se tornou imprescindível o desenvolvimento de sistemas de pesos e medidas, só possíveis com recurso à matemática, – que implica também alguma forma de notação gráfica –, e de mapas e cartas.
Assim, a escrita teria sido criada primeiramente para atender a uma necessidade prática de informação agro-comercial, em vários lugares. Lévy estabelece paralelos entre o desenvolvimento da agricultura e o da escrita, ambas como reformuladoras de conceitos de tempo e espaço, e esclarece que o surgimento da escrita não foi um fato causado por uma única sociedade:
"A escrita foi inventada diversas vezes e separadamente nas grandes civilizações agrícolas da Antigüidade. Reproduz, no domínio da comunicação, a relação com o tempo e o espaço que a agricultura havia introduzido na ordem da subsistência alimentar" (LÉVY, 1993, p. 87).
A relação da escrita com a agricultura é apenas um dos aspectos(2) evidenciados por Lévy, cuja visão analógica – e até poética – relata uma semelhança entre esses dois processos do Neolítico, a agricultura e a técnica de impressão em argila, demonstrando as suas características em comum, sintetizando séculos de uma relação entre tecnologia da escrita e processo agrário:
"O escriba cava sinais na argila de sua tabuinha assim como o trabalhador cava sulcos no barro de seu campo. É a mesma terra, são instrumentos de madeira parecidos, a enxada primitiva e o cálamo distinguindo-se quase que apenas pelo tamanho. O Nilo banha com a mesma água, a cevada e o papiro. Nossa página vem do latim pagus, que significa o campo do agricultor". (LÉVY, 1993, p. 87-88).
Além de registrar graficamente os movimentos agro-comerciais daquelas civilizações, os símbolos impressos tiveram suas aplicações em outras esferas das atividades do homem, onde diversos conhecimentos começaram a ser desenvolvidos, como a Astronomia, o Direito, a Poesia etc., muitos dos quais puderam ter condição de deixar seus locais originais graças às inscrições, e posteriormente puderam ser reproduzidas com o auxílio de outras técnicas, transcorrendo tempo e espaço e permanecendo através da cronologia:
"A escrita abriu um espaço de comunicação desconhecido pelas sociedades orais, no qual tornava-se possível tomar conhecimento das mensagens produzidas por pessoas que encontravam-se a milhares de quilômetros, ou mortas há séculos, ou então que se expressavam apesar de grandes diferenças culturais ou sociais" (LÉVY, 2000, p. 114).
Para exemplificar a evolução dos registros gráficos resume-se aqui sete momentos da humanidade nos quais se formaram e evoluíram sistemas e algumas técnicas de escrita. Citam-se aqui exemplos de algumas performances das mais imprescindíveis na evolução da escrita e no seu serviço prestado às civilizações.
Das atividades sócio-econômicas da Mesopotâmia, do ritualismo Egípcio, dos alfabetos do Oriente Médio, Fenício, Grego, do Império Romano até a formação da língua portuguesa, veremos que essa evolução influenciou fortemente a formação da língua e até a própria formação de nações.
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(2) Outros aspectos são a relação da escrita com o Estado, com a tradição hermenêutica, com o saber teórico, com a organização dos conhecimentos, com a racionalidade, com a História, a memória e a verdade, entre outros. Para saber mais: As tecnologias da inteligência, capítulo “A escrita e a História”.
(continua)