ENTRE O LOGOS E O MYTHOS

"Logos sem mythos é esterilidade, mythos sem logos é fanatismo" (Ortiz - Osés)

Introdução

Quando procuramos enfocar aspectos culturais, faz parte de nossos pressupostos que toda cultura se compõe de conjuntos de símbolos, arte, ciência, crenças, relações econômicas, políticas, narrações históricas e míticas, esperanças possíveis e utópicas... Enfim, faz parte da cultura tudo o que os homens fizeram, fazem e desejam realizar. Numa verdadeira cultura, de fato, devemos poder identificar elementos racionais e míticos. A partir desta caracterização do conceito de cultura, pretendo fazer uma hermenêutica da identidade cultural dos 9(nove) anos de minha vida(1951-1959) que passei no Kappesberg(nome do monte, em Salvador do Sul –RS, onde ficava o Colégio Santo Inácio). Penso que, no ambiente cultural kappesbergiano da época, é fácil desvelar a presença de aspectos do logos e do mythos. E, se é verdade que o homem só consegue viver uma vida verdadeiramente humana graças a um contexto cultural, a vida no Kappesberg, certamente, foi humana e positiva.

O logos e o mythos

O primeiríssimo objetivo de todo colégio é treinar e desenvolver o logos (a razão) dos estudantes. Não há dúvida, isto aconteceu no Colégio Santo Inácio. Grande parte dos estudantes chegavam ao Kappesberg mal e mal sabendo falar e escrever o português. Pode-se dizer, semi-analfabetos. E quando saímos de lá, depois de 7 ou 9 anos, a nossa razão estava iluminada pelos ensinamentos recebidos de nossos mestres. Ocorrera uma transformação maravilhosa em nossas mentes. De ignorantes e ingênuas crianças, muitas vezes vindas de um interior agrícola, fomos transformados em jovens capazes de competir com quem havia freqüentado os melhores colégios urbanos. O Colégio Santo Inácio mediou milagrosamente o desabrochar de nossa razão. Havíamos exercitado a nossa linguagem com ditados, gramática, redações, artigos na Revista A Conquista; estávamos iniciados com noções de grego, latim, francês, alemão/italiano, inglês, espanhol. Outras disciplinas nos enriqueceram em muito: matemática, geografia, história, física, química, biologia, solfejo... além de informações sobre astronomia, exercícios de trabalhos manuais, esportes, teatro, canto, cinema, declamações poéticas, grêmios literários e exercícios cívicos das marchas com o Ir.Slany. O exercício do logos não faltou neste Monte, quase sagrado, onde vivemos parte de nossa vida. Mas, como diz a epígrafe deste texto: "logos sem mythos é esterilidade".

Nossa vida no Kappesberg, para não ser cultural e existencialmente frustrante, necessitava de um mito, de uma utopia, de uma mística, duma espiritualidade que nos sustentasse no treino, às vezes estressante, do logos, da racionalidade dos estudos em tempo integral.

De fato, no Kappesberg não se alimentava apenas a razão. O elemento mítico estava presente na mesma proporção. Queríamos ser padres, missionários, salvar almas do inferno e conduzi-las ao céu. Queríamos ser santos, cristãos melhores. Éramos platonicamente treinados para buscar "as coisas do alto" e desprezar as "coisas terrenas". Deus deveria ser o supremo referencial de nosso amor; amar as criaturas era perigoso, pois poderia transformar-se em amor desregrado. Para sustentar este elemento mítico de nossa vida cultural, íamos à missa diária, comungávamos diariamente; havia "Apostolado da Oração", Congregação Mariana, oração do terço, meditações, aulas de religião, instruções do Padre Espiritual, visitas ao Pe. Espiritual, retiros de Santo Inácio, manhãs de reforma espiritual, confissões semanais; além do controle disciplinar com perda de pontos para as falhas de bom comportamento; para os casos mais graves, inclusive, havia castigos corporais, como "ficar de parede", ou atividades físicas compensatórias. Em tudo isto o logos estava subordinado ao mythos, em analogia à compreensão medieval da "filosofia como serva da teologia".

Quem não assumisse o mito da Escola Apostólica, mesmo que estivesse em dia com o logos, sendo bom estudante, em qualquer época do ano podia ser mandado para casa. A finalidade última do Colégio Santo Inácio era alimentar o ideal da vocação sacerdotal. Era isto, inclusive, que justificava o sacrifício dos padres, "fratres" e irmãos jesuítas que deviam oferecer o melhor de suas vidas na esperança de formarem outros futuros membros da Ordem. Diante da realidade da vida, alguns destes abnegados mestres fraquejavam, e deixavam a batina. Mas, vejamos alguns aspectos mais específicos do logos e do mythos kappesbergianos.

O logos no Kappesberg

Quando cheguei ao Kappesberg esperava freqüentar o Curso de Admissão ao ginásio, mas me rebaixaram ao 4º ano primário. Neste ano, o nosso principal professor foi o Irmão Slany, e o Prefeito da 1ª Divisão o Frater Paulo Fonseca. Ainda hoje me admiro que não tenha sofrido um "choque cultural" mais violento, na passagem de uma vida rural muito livre para uma vida muito disciplinada e rígida de um internato. Com certeza, o desejo de estudar, a curiosidade do logos e, principalmente, o mito de uma vida santa, perfeita e sacerdotal alimentaram forças psicológicas especiais, capazes de reprimir a saudade, a perda de liberdade duma criança do interior no convívio com a natureza. Lembro-me que, entre os colegas novatos, havia alguns meninos mais rebeldes. E o Irmão Slany, não poucas vezes, perdia a paciência, pegando dois ou três pelo cangote, colocando-os de castigo na sala de aula. Alguns, depois de pouco tempo, voltavam ao rincão donde tinham vindo. O mito não se enraizara suficientemente em seu imaginário. Em nós outros o mito penetrou mais profundamente, alimentando-nos com suficiente prazer e alegria, permitindo os progressos do logos. E assim, de ano para ano, o ideal de vida e a razão do conhecimento se alimentavam mutuamente. É admirável como a educação no Kappesberg conseguiu transformar broncos meninos do interior em intelectuais doutores..., alguns diplomados pelas melhores universidades do mundo. Registram-se, entre os ex-alunos do Kappesberg, bispos, reitores de Universidades, escritores, professores e pesquisadores reconhecidos, juízes, etc. A competência dos mestres e a disciplina de estudo do Colégio Santo Inácio, de fato, habilitaram a muitos a honrarem a definição aristotélica do homem como "o ser que possui o logos".

O que o Kappesberg conseguiu não ocorreu por acaso. Mestres e alunos estavam animados por um ideal, não egoísta: o desejo da salvação do próximo. Mesmo que o supremo ideal do sacerdócio não fosse plenamente consciente na maioria, contudo este ideal incluía o desejo de ser bom cristão. Por isto, embora a memória jesuítica, às vezes, avalie o Colégio Santo Inácio como tendo fracassado em seu objetivo principal, i.é, aumentar ou repor significativamente os membros da Ordem, sob outro ponto de vista, certamente, não fracassou, pois produziu um bom contingente de cristãos melhores, que vivem e testemunham, como leigos, o melhor da mensagem dos evangelhos. Estes, através de suas pesquisas, de seus escritos, de seu magistério, de sua racionalidade e de suas vidas contribuem para a credibilidade de uma religião, que sempre está em perigo de alienar-se com movimentos emotivos e fundamentalistas, dando mais ênfase a um cristianismo cultual do que a um cristianismo de vida.

O mythos no Kappesberg

O exercício do logos no Kappesberg não produziu muito folclore, nem muitas situações chistosas e hilariantes. O treino da razão exigia estudo sério, leitura, exercícios escolares rigorosos. O que mais nos pode levar a comentários prazerosos de recordações é o que ocorria no âmbito do "mythos". Vejamos alguns tópicos.

1. A cultura sexual

Os "apostólicos" ( assim eram chamados os estudantes da Escola Apostólica do Colégio Santo Inácio), potenciais futuros padres celibatários, deviam ter extremo cuidado quando se tratasse de sexo. Os jesuítas são conhecidos como muito exigentes na pureza sexual. Gilberto Freyre, comentando, em "Casa Grande & Senzala", o problema sexual no Brasil colônia, caracteriza os jesuítas como "donzelões intransigentes". Enquanto o clero secular se afeiçoava, muitas vezes, a algumas negrinhas e indiazinhas os jesuítas eram fiéis. No Kappesberg, na questão sexual, o ideal era a pureza de São Luiz Gonzaga, que nunca olhara para o rosto de uma mulher, nem mesmo de sua mãe; escondia as suas mãos nuas nas mangas da batina, de tão recatado diante da nudez corporal. Lembro-me da cena quando o Padre Espiritual, na aula de religião, se aventurou a explicar como eram geradas as crianças. Primeiramente mandou fechar as venezianas da sala de aula. O seu rosto se avermelhou, e criou-se aquele clima em que até zumbido de mosca se ouve. E aí foi explicando "aquele mistério todo do surgimento de uma nova vida". Outro orientador espiritual, sempre com uma voz muito profunda, analisando as tentações sexuais, explicou que nem sempre tínhamos culpa que aquelas veiazinhas recebessem sangue demais, causando endurecimento... Um pregador de retiro, para reforçar o valor do celibato, argumentava que um bom remédio contra as tentações era lembrar-se que, bem pertinho do lugar do prazer feminino, havia outro com podridão e malcheiroso.

Em certa ocasião, numa das meditações matinais, na 3ªDivisão, o Diretor da Congregação Mariana denunciou um grande escândalo: um apostólico, congregado mariano, havia-se encontrado com uma das filhas, de um dos vizinhos do Colégio. Era caso de expulsão imediata. E o coitado do rapaz teve que arrumar as trouxas, e marchar morro abaixo.

A prevenção sexual era realmente forte no Kappesberg, a ponto de despertarem desejos de castração em alguns alunos. Pode-se entender esta severidade. neste ambiente totalmente masculino do Colégio, restrito a celibatários e adolescentes com os hormônios em ebulição. Sem este rigor, talvez, a normalidade do ambiente se deteriorasse. O cuidado com a exigência do celibato prolongava-se para o período de férias. Antes das férias de fim de ano, o Padre Espiritual alertava os apostólicos para se prevenissem com as meninas, pois, muitas delas, teriam especial atração por jovens puros, como os seminaristas. Além disto, que se tivesse cuidado com o "demônio do meio dia", que gostava de atacar com tentações na hora da sesta.

2. O céu e o inferno

O céu, o paraíso, lugar de tudo o que é bom, junto a Deus, a Jesus, a Maria, a todos os santos... onde todo sofrimento e tristeza acabariam. Este céu está lá em cima, onde habita Deus.

A instrução catequética no Kappesberg, mesmo no período ginasial, orientava-se, em geral, por uma representação espacial do céu. E o Deus era, predominantemente, o Deus terrível. Por isto, a confissão semanal, as múltiplas orações para aplacar a Deus... Isto não significa que não se falasse também no Deus amoroso, fascinante, atraente, o Pai-nosso. Mas o inferno seria terrível. Leia-se a Divina Comédia. As videntes de Fátima haviam visto o inferno aberto, onde as almas condenadas nadavam num mar de fogo. E lá se encontravam, condenadas eternamente, até crianças de quatro anos de idade. Terrível!

O inferno kappesbergiano tinha elementos do inferno do Pe. Perier, um missionário jesuíta do séc. XVIII no Nordeste do Brasil. O Pe. Perier pregava que o inferno era a síntese de todos os fedores da terra, enquanto o céu era a essência dos perfumes de todas as flores. No fim do mundo a terra seria purificada, depois das cloacas de todo o mundo escorrerem para o inferno. Para o Pe. Perier, bastaria que uma alma fugisse do inferno para que a terra inteira fosse empestada por seu mau cheiro. Este inferno teria a extensão de poucos hectares, onde milhares de condenados se amontoariam.

Hoje, o inferno do Pe. Perier assemelha-se bastante ao que são a maioria das prisões brasileiras, muito corpo num espaço muito pequeno!

Diante de imagens tão terríveis, quem não se proporia a entregar sua vida para salvar pecadores deste inferno?

Apesar de estas imagens do céu e do inferno kappesbergiano merecerem a crítica do logos, contudo contribuíram para que nos tornássemos mais sensíveis a pequenas falhas: "quem não for fiel nas coisas pequenas, também não será fiel nas coisas grandes!"

3. Cultura soteriológica

"O caminho para o céu é estreito e a estrada para o inferno, larga". Por isto, a necessidade de mais padres para salvar almas. Um instrutor no Kappesberg explicava que, mesmo um padre medíocre, chegaria a salvar cerca de 200.000 almas do inferno. Todas estas almas lhe seriam gratas eternamente no céu por tê-las salvas. Tais argumentos visavam fortificar a vocação sacerdotal e missionária. Por isto, os "apostólicos" chegavam a objetivar os seus desejos utópicos: ser missionário entre os índios; ajudar a converter os japoneses como um outro Francisco Xavier; batizar milhares de pagãos como Pedro Claver, o Apóstolo dos escravos da América... Os ecos destes ideais, despertados no meu tempo de Kappesberg, me causaram profunda emoção quando, há alguns anos, participei de um Congresso de Filosofia em Cartagena de Indias, na Colôm bia, e tive a oportunidade de visitar a Igreja de Pedro Claver , o seu quarto de recolhimento e o poço onde batizou centenas de milhares de escravos. Só não fiquei muito edificado ao ver exposto, por baixo do altar mor da igreja dos jesuítas o esqueleto completo de Pedro Claver. Por que esta exposição, um tanto macabra?

Conclusão

Com grande satisfação poderia analisar outros tópicos da "cultura kappesbergiana". Mas, para não me alongar, penso que este "aperitivo" memorial já relembra alguns aspectos dos muitos anos vividos naquele Monte. Anos sacrificados, mas extremamente marcantes para a minha vida. Mas não só de minha, e sim da vida de todos que ali foram ilustrados e formados. Ali, nossos mestres forjaram nossa personalidade, nos habilitaram para a vida. Uma vida dialética entre o logos e o mythos. Duas dimensões necessárias para uma vida plenamente humana. Aprendemos o equilíbrio entre o logos e o mythos. O Kappesberg nos treinou no uso da razão e no equilíbrio dos ideais. Os sonhos, os ideais, as utopias, os mitos e a vocação kappesbergiana continuam, certamente, animando, estimulando e condicionando a atividade de muitos que estudamos no Colégio Santo Inácio.

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Inácio Strieder é professor de Filosofia – Recife/PE