COMO O ABANDONO DE CRIANÇAS MUDOU NO DECORRER DO TEMPO

Neste ano (2009) comemoramos 19 anos desde a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, foram anos de luta em prol da conscientização da nossa população, muitos avanços se deram quanto à concepção de criança e de adolescente, mas temos crianças sendo abandonadas? Desde quando? O que mudou nesta pratica repugnante?

Para responder a estas e a outras questões relativas a criança e ao adolescente brasileiro nos propomos a iniciar uma longa jornada pela nossa história, percorremos também os becos e vielas de nossas cidades em busca de encontrar quem são e por que estas crianças foram levadas a enfrentar tamanha crueldade.

Se pegarmos como exemplo a cidade de Maceió, veremos que o maior problema atual pode ser entendido a partir da desigualdade social, temos milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha que separa pobres e miseráveis (19% da nossa população, isso equivale a mais de 35 milhões de brasileiros) , não por opção, mas, por falta de políticas públicas. Certa vez uma senhora indagou o chefe do policiamento de sua cidade se ele não poderia tomar “providências” no sentido a retirar um pedinte que estava próximo a sua casa, ele então explicou: “para resolver este problema, precisamos investir em projetos sociais e programas que além de educar (profissionalizar), possam também garantir emprego e renda para nossa população mais carente”, ela então o indagou: “enquanto o senhor busca a elaboração deste projeto, não seria possível mandar uma viatura para tirá-lo de minha porta”?

Vivemos esta triste realidade diariamente, as pessoas estão apenas preocupadas em jogar os problemas para debaixo do tapete, desde que saiam do campo de visão. E foi isso que aconteceu com o Carlos André Silva Santos, um garoto de apenas 12 anos, que teve os dois piores tipos de azar para uma pessoa qualquer, o primeiro foi ter nascido em uma família humilde e segundo foi ser brasileiro, pois ser pobre no Brasil é pagar todos os pecados por antecipação.

Aos 12 anos Carlos como era conhecido pelos vizinhos e amigos, foi para o lixão (aterro sanitário), como era de costume há algum tempo, devido a fiscalização do Município as crianças passam os dias longe do lixão, porém no anoitecer elas reviram os dejetos de seus semelhantes (lixo) em busca de algo valioso para que possam saciar o mais básico dos instintos humanos, a fome. Aquela parecia ser mais uma das muitas noites que o pequeno Carlos, juntamente com seu grupo de trabalho formado pelo irmão mais novo – “Neném”, de 11 anos, e o amigo Givaldo, também com 12, iria revirar e escavar montanhas de lixo e entulho, porém a noite estava fria, a madrugada não tardou a chegar e junto com ela o cansaço abateu o animo do pobre Carlos.

Ele lutou bravamente contra seu inimigo invisível, mas pouco resistiu, então se encostou sobre uma pilha de entulho, para uma rápida soneca, para aquecê-lo nada mais tinha a mão senão um pedaço de papelão, talvez o antigo proprietário acreditasse que aquele papelão não tinha mais serventia, porém para Carlos ele representava o único conforto disponível. Ele logo adormeceu para não mais acordar, seu raquítico corpo fora brutalmente esmagado por uma máquina que ali se encontrava para compactar o lixo, o tratorista não viu o garoto que dormia embaixo de um papelão, Carlos saiu da vida, não para entrar na história como os grandes vultos, mas simplesmente para virar estatística.

Este fato foi noticiado pelos principais meios de comunicação, e segundo o jornal gazeta de Alagoas, três dias depois desta tragédia, nada mudou, parece que a indignação pela morte de um órfão é visto com desdém não apenas pelo poder público, mas também pela própria sociedade brasileira. Morador de uma favela próxima ao lixão, Carlos não era enjeitado por sua genitora, no sentido mais amplo da palavra. Entretanto ele e tantas outras crianças eram e são abandonados pelo poder público e desprovidos dos mais básicos dos direitos.

Para compreendermos este fato temos que remontar a história social da criança abandonada, antigamente as crianças eram enjeitadas por uma concepção moral que desvirtuava e abalava a credibilidade de uma mulher ao conceber uma criança fora do casamento, qual a evolução dos costumes e da nossa legislação diante deste tema que ora atormenta aqueles que buscam uma sociedade mais justa e igualitária?

Até algum tempo atrás na cidade de Salvador ou São Salvador como a mesma era conhecida, assim como no restante do Brasil a tradição determinava que a mulher deveria casar virgem, dessa forma as mulheres que não conseguiam sufocar os desejos da carne e sucumbiam aos prazeres proibidos, necessitavam ocultar ao máximo suas aventuras fortuitas, evitando assim de ficarem “mal faladas”. Infelizmente, em alguns casos aquele momento de amor proibido gerava um fruto que denunciaria o cometimento deste que era tão abominável delito (para a mulher). Diante do medo e buscando uma solução menos dolorosa, este mãe abandonava seu fruto proibido nas ruas da cidade, exposta ao frio e aos perigos da madrugada como nos relata Fernando Dannemann:

Em 1726, a cidade de Salvador, na Bahia, tinha em torno de 30.000 habitantes, e o abandono de crianças já constituía um sério problema. Diariamente, pela manhã, podiam ser encontrados nas ruas da cidade os corpos de recém-nascidos deixados à própria sorte por seus pais, e que acabavam mutilados por cães e porcos. Essa situação chegou a um ponto crítico, o que acabou provocando a reação do vice-rei Vasco Fernandes de Meneses, Conde de Sabugosa, que entregou à Santa Casa a tarefa de criar uma Roda para acolher os bebês enjeitados. Em 1734, depois de autorizada pelo rei, a Roda do Asilo do Santo Nome de Jesus passou a receber os pobres pequenos.

Maria Luiza Marcílio nos descreve esta roda que receberá o nome, de roda dos enjeitados ou roda dos expostos.

...de forma cilíndrica e com uma divisória no meio, esse dispositivo era fixado no muro ou na janela da instituição. No tabuleiro inferior da parte externa, o expositor colocava a criança que enjeitava, girava a Roda e puxava um cordão com uma sineta para avisar à vigilante - ou Rodeira - que um bebê acabara de ser abandonado, retirando-se furtivamente do local, sem ser reconhecido

“Sem ser reconhecido”, a dignidade não estava nos preceitos humanos, e sim no fato de permanecer virgem, pura; mesmo que esta pureza fosse apenas aparente, vemos que os valores humanos são subjugados diante de uma falsa moral. Mas, uma vez enjeitados pela mãe (no sentido biológico da expressão mãe), que acontecia com essa criança? Maria Luiza Marcílio nos esclarece que futuro aguarda esta pobre criatura: “Uma vez recolhida, a criança era entregue a uma ama-de-leite e depois a uma ama-seca que cuidava do menino ou menina até completarem sete anos de idade, quando então deveriam ser encaminhados para atividades produtivas”. Ou seja, isto pode ser visto como a oficialização do trabalho infantil no Brasil, diversos autores relatam casos de trabalho infantil (fora do sistema escravocrata), porém Maria Luiza Marcílio fora muito feliz ao abordar este ponto de forma tão clara e precisa.

Vemos então que a roda dos expostos, solicitada pelo vice-rei Vasco Fernandes de Meneses, Conde de Sabugosa, e autorizada por sua Majestade o rei, iniciando seu funcionamento em 1734, seria uma atitude louvável se, por trás da idealização deste instrumento que muitas vidas salvou, não houvessem interesses comerciais envolvidos, a criança como nos relata Maria Luiza Marcílio “...até completarem sete anos de idade, quando então deveriam ser encaminhados para atividades produtivas”; era força de trabalho, mão de obra barata ou quem sabe até gratuita, uma vez que não dispomos de elementos suficientes para entender mais profundamente as relações de trabalho existentes a época.

Segundo Fernando Dannemann, posteriormente houve a preocupação em atender a população carente com os serviços prestados pela roda dos expostos:

A partir de 1862 a Roda foi transferida para a instituição erguida no Campo da Pólvora, na mesma cidade, com a finalidade de abrigar menores carentes. Foi assim que surgiu o Internato Nossa Senhora da Misericórdia, conhecido atualmente como Pupileira. Nesse lugar, ela permaneceu até 1935.

Como já dissemos anteriormente a roda dos expostos não teve a intenção inicial em atender pessoas desprovidas de condições financeiras para educar uma criança, e sim para encobrir aventuras fortuitas de uma noite de amor. A prova mais contundente neste sentido é um bilhete deixado junto a uma criança que fora entregue a roda dos expostos, como nos relata Dannemann:

"Entra hoje, 26 de maio de 1902, o inocente que se chamará José Maria, branco, nascido a 24 de maio de 1902, natural deste Estado. Será retirado por quem apresentar um documento idêntico a este no dia que completar três anos de nascimento. Não é levado aí por abandono de sua extremosa mãe; pois ela compreende o verdadeiro amor e deveres maternais e tem recursos intelectuais e pecuniários para ministrar-lhe o indispensável. É unicamente por dignidade pessoal e de família, que é indispensável coonestar por algum tempo, isto é, não tendo a criança em casa alguma particular, para não aparecerem maus juízos ou conclusões que comprometam, pois é fruto de um amor infeliz!!!"

Fica evidente que o problema que causou este abandono é puramente cultural, mas resta-nos apenas indagar a quantidade de crianças que foram brutalmente lançadas para esta triste realidade, e para esta pergunta encontramos ainda em Dannemann a resposta:

O Arquivo Histórico da Santa Casa de Misericórdia mantém guardados cerca de trinta e cinco volumes manuscritos com os registros das crianças deixadas na Roda. Além de informações sobre o dia e horário em que a criança foi recolhida, e suas condições de saúde, estes valiosos livros reproduzem também cartas e bilhetes das mães, que normalmente acompanhavam os recém-nascidos abandonados. Entre instruções e informações relativas ao batismo da criança, a descrição dos seus objetos pessoais e promessas de volta para buscá-la, encontram-se comoventes depoimentos de mulheres oprimidas numa época em que uma mãe solteira era motivo de desonra para a família.

Se tomarmos como ponto de partida o ano de 1734 (inicio de atividade da primeira roda dos expostos no Brasil), poderíamos dizer que a primeira grande evolução ocorrida foi a lei 4.242 de 1921 que determinava a maioridade penal aos 14 anos, pois no entender desta lei o critério para o discernimento passou a ser cronológico, graças ao debate público que tais mudanças oportunizaram pôde-se unificar as leis existentes para que em 1927 fosse elaborado o código de menores, esta foi a primeira legislação brasileira voltada a atender a criança e o adolescente, elencamos como principais avanços os seguintes direitos:

Entre os princípios mais significativos do Código de Mello Mattos (como ficou conhecido o código de menores) destacam-se:

a) Instituição de um juízo privativo de menores;

b) Elevação da idade da irresponsabilidade penal do menor para 14 anos; (com a mudança do Código Penal em 1940, que fixou a irresponsabilidade penal aos 18 anos, determinando que sejam submetidos a legislação especial, o Código de Menores, em 1942, teve que se adaptar a nova idade estabelecida).

c) Instituição de processo especial para os menores em questões que envolvessem menores abandonados ou que estivessem vivendo fora dos padrões da normalidade, bem como sua intervenção para suspender, inibir ou restringir o pátrio-poder, com imposição de normas e condições aos pais e tutores;

d) Regulamentação do trabalho de menores, limitando a idade de 12 anos como a mínima para iniciação ao trabalho, como também proibiu o trabalho noturno para os menores de 18 anos;

e) Criação de um esboço de Polícia Especial de Menores dentro da comissários de vigilância;

f) Proposta de criação de um corpo de assistentes sociais que seriam designados delegados de assistência e proteção, com possibilidades de participação popular como comissários voluntários ou como membros do Conselho de Assistência e Proteção aos Menores;

g) Estruturou racionalmente os internatos dos juizados de menores.

Vemos que este código foi altamente adiantado para a época, talvez influenciado pela idéias de Jean-Jacques Rousseau, que foi o primeiro pensador a reconhecer a infância, até então as crianças eram vistas como adultos em miniatura.

Após as discussões que se seguiram, tivemos aos poucos a criação de inúmeros e significativos diplomas legais vinculados à proteção da infância e adolescência. Entre os mais importantes estão o novo Código Penal em 1940, que fixou a irresponsabilidade penal para o “menor de 18 anos”, exigiu a alteração do Código de Menores de 1927 pelo decreto-lei n.º 6.026/43. A criação do “SAM – Serviço de Assistência a Menores” pelo Decreto n.º 3.779/41, com o objetivo de proteção aos “desvalidos e infratores” em todo o território nacional.

Mesmo com a reforma trazida pelo Código Penal, restava ainda uma diferença gritante, enquanto a maioridade Penal oscilou de 14 anos (Código de Menores de 1927, já citado anteriormente) e o Código Penal de 1940, a maioridade Civil instituída pelo Código Civil de 1916 era fixada em 21 anos, ou seja, para gozar de Direitos como votar e ser votada, adquirir Carteira de Motorista, administrar o patrimônio familiar, a pessoa só poderia a partir dos 21 anos de idade, porém para ser responsabilizado Penalmente já seria possível aos 14 e posteriormente aos 18 anos de idade.

Em 1979 tivemos a aprovação da Lei nº 6.697/1979 – Código de Menores, que buscava afastar as crianças de qualquer forma de perigo social, neste ponto tivemos uma mudança de hábitos, provavelmente motivada por mudanças sociais, a exemplo o art. 50 ao qual amparava de forma peculiar:

Art 50. É proibida a menor de dez anos, quando desacompanhado dos pais ou responsável, a entrada em salas de espetáculos teatrais, cinematográficos, circenses, de rádio, televisão e congêneres.

§ 1º Nenhum menor de dez anos poderá permanecer em local referido neste artigo depois das vinte e duas horas.

§ 2º Tratando-se de espetáculo instrutivo ou recreativo, a autoridade judiciária poderá alterar os limites e as condições fixadas neste artigo.

Posteriormente tivemos o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, Lei 8.069/1990, que inspirado na Lei 6.697/1979, e acompanhando as transformações sociais vigentes, buscava proteger a criança e o adolescente da sociedade e dos próprios pais, graças a sua implementação podemos ver crianças e adolescentes sendo resgatados de situações de risco, seja moral, social ou até sexual.

BIBLIOGRAFIA

Matéria retirada do site:

www.fernandodannemann.recantodasletras.com.br/visualizar.php?idt=326112 em 02 de novembro de 2009;

Matéria retirada do site:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01881999000100014 em 02 de novembro de 2009;

Fundação Getúlio Vargas, através do site: http://www.fgv.br/

Jornal Gazeta de Alagoas, em matéria publicada no dia 31 de julho de 2009, site:

http://gazetaweb.globo.com/v2/gazetadealagoas/texto_completo.php?cod=150528&ass=11&data=2009-07-31

Algumas diferenças entre os Códigos de Menores e o Estatuto da Criança e do Adolescente

Fonte: Rosemary Ferreira de Souza Pereira - tese de mestrado em Serviço Social da PUC-SP