A REPRESENTAÇÃO DO SUJEITO E O CÓDIGO LINGUÍSTICO
Linha de pesquisa – Estudos Lingüísticos.
Resumo
O objeto deste trabalho é a análise do código lingüístico usado pelos detentos da Cadeia Pública Estadual de Laranjeiras do Sul coletado durante nossa participação no Projeto Brasil Alfabetizado, que envolveu o Governo Federal, Serviço Social da Indústria (Sesi), Prefeitura Municipal de Laranjeiras do Sul e a Universidade estadual do Centro - Oeste – UNICENTRO. O objetivo desse projeto foi ensinar os aprisionados a ler e escrever. Chamou-nos a atenção o vocabulário utilizado, na comunicação, entre eles. Neste trabalho investigamos quais são os domínios de saber mobilizados na constituição desse código, enquanto forma de representação e de identificação dos sujeitos com o grupo. Nossa hipótese inicial foi saber que os sujeitos, por estarem reclusos, à margem da sociedade, formam grupos, aglutinando-se em torno da língua. Observamos que na constituição desse código, não há criação de palavras novas, mas a alteração do sentido de palavras existentes na língua que os constitui como sujeitos. Para significar “porta”, por exemplo, usam o termo “bocuda”, aproximando significante e significado. O mesmo ocorre com a palavra “açúcar”, que é referido como “areia”. Esses dois exemplos nos permitem dizer, que na criação desse código são utilizados elementos do real e que são dominados pelos sujeitos participantes de uma mesma formação discursiva. Sustentamos nossa análise nos aportes teóricos da Análise do Discurso de Linha Francesa.
Palavras – chaves – Código, sujeito, memória, saberes.
1. Introdução
Neste trabalho analisamos o código utilizado pelos detentos da Cadeia Pública de Laranjeiras do Sul. Nosso objetivo é identificar os domínios de saber mobilizados na constituição desse código, enquanto forma de representação e de identificação dos sujeitos como grupo. Nosso contato com os detentos realizou-se a partir do “Projeto Brasil Alfabetizado” desenvolvido pelo Governo Federal em convênio com o Serviço Social da Industria (Sesi), a Prefeitura Municipal de Laranjeiras do Sul e a Universidade Estadual do Centro- Oeste – UNICENTRO. O objetivo desse projeto foi ensinar os aprisionados a ler e a escrever. Chamou-nos a atenção o vocabulário utilizado, na comunicação, entre eles. Percebemos que criavam um código próprio.
Construímos um arquivo com palavras utilizadas por eles e, para fins de análise, recortamos esse arquivo em campos semânticos: da justiça, do cotidiano, de ordem sexual. O aporte teórico em que nos ancoramos é a Análise de Discurso, de Linha Francesa. Para tanto consideramos alguns conceitos como língua, representação, ideologia, alteridade, sujeito e identidade e, as condições de produção desse código, que são determinantes dele. É pelas condições de produção que iniciamos a fundamentação teórica.
2. Fundamentação teórica
As condições de produção referem-se em nosso corpus, em sentido restrito, ao espaço – cadeia pública de Laranjeiras do Sul – e em sentido amplo, às condições sócio-históricas desse espaço, de Laranjeiras do Sul e dos detentos que constituíram esse código.
O espaço, cadeia pública de Laranjeiras do Sul, está localizado no centro da cidade, na rua XV de novembro. Limita-se à esquerda com o hospital São Lucas e ao fundo com o supermercado Gava e, à direita com a rua Guarapuava. Foi construída na década de 1950. A finalidade inicial desse espaço era deter os elementos suspeitos ou acusados de haverem cometido algum delito durante o andamento das investigações. No caso de se comprovarem os indícios, permaneciam até o julgamento. Devido à falta de vagas nas Casas de Detenção do Estado e por problemas conjunturais do sistema penitenciário, foi aos poucos se transformando em prisão provisória, enquanto não eram construídas novas penitenciárias para abrigar os já condenados.
O prédio, inicialmente, possuía uma área construída de aproximadamente quinhentos metros quadrados que foi aos poucos sendo ampliada devido ao crescente número de sentenciados no decorrer dos anos. Hoje tem uma área construída em torno de dois mil metros quadrados. Tirando o setor administrativo, divide-se em duas alas com dez celas. Possui capacidade para abrigar quarenta detentos, mas, atualmente a população carcerária constitui-se de mais de cento e oitenta pessoas. Há, em suas dependências, um “solário” (lugar onde os presos tomam sol) de noventa metros quadrados. Os muros desse “solário” têm quatro metros de altura. Há uma cozinha, mas não possui refeitório, por isso os aprisionados comem sentados nos beliches, onde dormem, uma vez que a refeição é servida na própria cela, em pratos, designados por eles de “cambuca”.
Cada cela tem um banheiro para os detentos utilizarem. Esse banheiro não possui paredes. O lugar em que dormem é isolado do banheiro por cortinas. Cada espaço possui dois beliches que dão condições para quatro pessoas. A população, que excede esse número, acomoda-se no chão (praia, denominação dada e inserida no presente código) para dormir.
Laranjeiras do Sul é uma cidade situada no médio centro-oeste paranaense. É cortada pela BR 277, rodovia federal, que liga a fronteira do Paraguay e Argentina com Curitiba (capital do estado) e ao Porto de Paranaguá. O comércio internacional, principalmente com o Paraguay, propicia o contrabando e o comércio de drogas e armas. Isso facilita a troca de produtos roubados e proporciona uma constante movimentação de marginais pela rodovia. A ação da polícia coíbe essas infrações e, como conseqüência há, nesse presídio, marginais dos mais diferentes estados brasileiros e dos países fronteiriços. É comum a detenção de reincidentes e foragidos de diferentes cadeias do Brasil.
Pode-se dizer em relação às condições sócio-históricas da formação desse código lingüístico que ele não é exclusivo do presídio de Laranjeiras do Sul. Há detentos de vários lugares e por isso, o código é difundido, passando a constituir-se como um código de domínio dos detentos em geral. Pode-se dizer que os detentos identificam-se uns com os outros e é pela língua, como código, que essa identificação concretiza-se, estabelecendo a interlocução de sujeitos tanto internamente quanto com os que se encontram já em liberdade.
Esses sujeitos, apesar da pouca educação escolar são constituídos por uma memória social e os insere em uma instituição dominante, assujeitando-os a uma formação discursiva com a qual podem, de acordo com Pêcheux (1997) identificar-se, contra-identificar-se ou se desidentificar. Essas modalidades de identificação possibilitam o uso da ironia e do desprezo em relação à situação em que vivem. Segundo Duarte (2006, p. 18).
A consciência humana é uma consciência reflexiva porque ela pode se voltar sobre si mesma, isto é, o homem pode pensar em si próprio, tomar-se como objeto de sua reflexão. E isto só é possível graças a linguagem, sistema simbólico pelo qual se representa as coisas do mundo, pelo qual este mundo é ordenado e recebe significação.
Nesse sentido, analisar o código lingüístico pela teoria do discurso, permite definir a língua como um objeto simbólico produtor de sentido e de significância. Com isso, mostra-se os sujeitos detentos excluídos da sociedade e a formulação do código lingüístico, que constitui laços de identificação e representação entre deles, enquanto grupo, pela linguagem. Conseqüentemente podemos afirmar que o sentido das palavras não existe em si mesmo, ele é determinado pela ideologia que se estabelece no interior do processo social em que é produzido o discurso. O sentido constitui-se para o sujeito como evidência. Para dar conta disso Pêcheux (1997, p. 160-162) defende duas teses:
1) (...) o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe em “si mesmo” (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico, no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é reproduzidas). (...)
2) Toda a formação discursiva dissimula, pela transparência de sentido que nela se constitui, sua dependência com respeito ao “todo complexo com dominante” das formações discursivas, intrincado no complexo das formações ideológicas (...)
Nessas teses percebe-se a referência do sentido em relação não só com sujeitos, mas também com as condições de produção e as formações discursivas, que representam na linguagem as formações ideológicas. A linguagem e a história constituem o sujeito ideológico. O sujeito, nessa perspectiva está materialmente dividido. Assujeita-se à língua e à história para se constituir e produzir sentidos.
Em Vigiar e Punir (1987) Foucault aborda a questão das prisões e mostra como se desenvolveu nos séculos XVII e XVIII os corpos tornaram-se alvo do exercício do poder. Nas prisões, os presidiários são constantemente vigiados. Dessa forma naturaliza-se esse controle. O sujeito, de acordo com Gregolim (2003, p. 99) “a sociedade moderna construiu uma maquinaria de poder através do controle dos corpos (anatomia política), isto é, o para fazer não o que se quer, mas para operar como se quer” .
Esse controle, no entanto não atinge todas as instâncias e o sujeito, especialmente, os que estão confinados em prisões buscam formas de identificação. A criação de um código específico é um exemplo ilustrativo. Os aprisionados recriam expressões ou alteram o significado de palavras ou expressões da língua materna (português-brasileiro).
Além de representá-los como sujeitos e afirmá-los como grupo a marca mais expressiva desse código é a ironia, considerando que o sentido caracteriza-se pelas definições dos termos, como por exemplo, a expressão “passar um pano” que, numa definição convencional significaria a realização do ato de tirar o pó de um objeto, ou até passar uma peça de roupa. Para eles significa, ver algo, como uma revista, ou acobertar alguma coisa. De acordo com Orlandi (2002, p. 45)
As palavras falam com outras palavras. Toda palavra é sempre parte de um discurso e todo discurso se delineia na relação com outro: dizeres presentes e dizeres que se alojam na memória.
A citação acima dá conta da relação das condições de produções, das formações discursivas e da presença da memória discursiva no sentido das palavras e, particularmente, no código que estamos analisando. A prática discursiva constitui as relações entre línguas e falantes e divide a sociedade humana. Estabelece limites entre os significados internos e externos. E é este jogo de relações políticas que identifica e distribui os sujeitos em um processo sócio-histórico. De acordo com Orlandi (1996, p. 60)
As transferências presentes nos processos de identificação dos sujeitos constituem uma pluralidade contraditória de filiações históricas. Uma mesma palavra, na mesma língua, significa diferentemente, dependendo da posição do sujeito e da inscrição do que diz em uma outra formação discursiva. (ORLANDI, 1996)
Nas palavras não existem sentidos isolados, eles são pertinentes a uma ideologia que se expressa dentro do processo de produção, significando segundo as posições em que são empregadas, e delas tiram seu sentido, relacionando-se com as formações ideológicas em que se inscrevem.
O sujeito discursivo existe como uma posição na formação discursiva que o domina e que determina o seu dizer. No entanto, de acordo com Pêcheux (1997, p. 162)
(...) o próprio de toda formação discursiva é dissimular na transparência do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso, que determina essa formação discursiva como tal, objetividade material essa que reside no fato de que “algo fala” (ça parle) sempre “antes, em outro lugar e independentemente. (...) O funcionamento da ideologia em geral como interpelação dos indivíduos em sujeitos (e, especificamente, em sujeitos de seu discurso) se realiza através do complexo das formações ideológicas (...)
Entende-se das palavras de Pêcheux que o sujeito tem a ilusão de que é a origem e fonte de dizer pela ação das FD, que dissimulam pela transparência do sentido o funcionamento da ideologia e a presença do interdiscurso que atualiza o dizer.
2.2 – Código lingüístico, identificação e representação
A concepção de língua no discurso atende a sua ligação com a história, como historicidade, como instrumento de identificação, que se relaciona com a representação. Segundo Orlandi (2007, p. 12) “a. de representação, concebida como uma configuração imaginária, atravessada por processos de identificação”. Nesse sentido o sujeito identifica-se socialmente com grupos de sujeitos e se representa como integrante desse grupo pela língua. A formação discursiva é um noção importante em relação a isso à medida que é ela quem determina o que pode e deve ser dito. O processo de identificação do sujeito relaciona-se ao outro, pela alteridade. Ainda segundo Orlandi (2007, p. 95) “Falar é uma prática política no sentido amplo, quando se consideram as relações históricas e sociais do poder sempre inscritas na linguagem”. Inicialmente, o sujeito estava ausente da concepção de língua. Saussure a definia como um sistema de regras determinadas pela social. Da língua ele exclui a fala e consequentemente o sujeito.
Somente a partir de Benveniste é que o sujeito voltou à lingüística pelo viés da enunciação, em que o sujeito locutor ao dizer “eu” configura a enunciação e instaura um “tu”. No entanto, em relação À Análise do discurso, a fala não corresponde a discurso, que é, de acordo com Orlandi (2002) na medida em que remete a efeitos de sentidos, entre sujeitos marcados pela reversibilidade em que um é o locutor, aquele que diz “eu” e o outro o interlocutor, a quem o dizer é dirigido. Ainda segundo Orlandi (2004, p. 49)
Se, de um lado, na língua tem-se a forma empírica (“pata”), a forma abstrata (p/b) e a forma material (lingüístico-histórica, ou seja, discursiva), em relação ao sujeito tem-se, em contrapartida, o sujeito empírico (sociológico), o sujeito abstrato (ideal) e que chamamos de “posição” sujeito.
Nas palavras de Orlandi percebe-se que apesar de a língua ser uma forma material e estar ligada a sujeitos empíricos, ela é antes de tudo referência à posição sujeito, ao lugar de onde ele fala e das resistências que instaura nesse falar. De qualquer forma, não há como sujeito criar uma língua, ao identificar-se a um grupo social, o sujeito encaminha sua forma de falar de acordo com as formações imaginárias e as antecipações em relação a esse grupo, com o qual se identifica e partir do qual se representa. No entanto, os domínios discursivos mobilizados são da ordem do real , nesse sentido, a língua se liga ao imaginário, porque o sujeito, marcado pelos esquecimentos, definidos por Pêcheux como esquecimento no. 1 e no. 2, tem a ilusão de ser a fonte do sentido e também de que o dizer só pode ser um. De qualquer forma não há como falar ou significar sem considerar as FD, que são o suporte da ideologia na linguagem.
O discurso, apesar da ilusão da transparência e homogeneidade da linguagem, é sempre lacunar, marcado heterogeneidade, da possibilidade do equívoco e da falha, pelo trabalho da língua na história, realizado por um sujeito, que mesmo ligado a instituições que determinam da unidade imaginária, sofre coerções da formação discursiva em que se insere – por suas posições ideológicas - e do interdiscurso (memória histórica) - que traz para o discurso outros discursos, fazendo trabalhar o deslize, a falha e a ambigüidade dos sentidos determinados pelos processos discursivos - sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias - que funcionam entre significantes em uma formação discursiva dada (Pêcheux, 1997).
O corpus discursivo desse trabalho é a construção desse código (língua), que constitui laços identitários, um referi-se a si, como pertencente (apesar da exclusão a que estão submetidos) à sociedade. Estabelecemos as relações que configuram o referencial, de sua origem até a concretização como elemento caracterizador de uma identidade. No caso dos detentos devemos, para tanto conhecer a sua história para entendermos a ideologia que os regulamenta como um grupo, tribo ou o que quer que sejam, ajuntado (formado) aleatoriamente, de cultura diversa no que se refere aos conhecimentos que dominam.
Essa língua ou código não tem, expressamente, registro nenhum. Não utiliza nenhuma gramática que não seja a da língua mãe. Ela existe tão somente como memória, ligada à história. Como sabemos, a língua é assim como um ser vivo, movimenta-se, evolui, transforma-se. Independente do tempo considerado o espaço (prisão) e a situação (detenção), e mais tudo o que envolve a vida desses sujeitos podemos compreender a relação da formação discursiva, como disciplinadora do que pode e deve ser dito, a partir de um lugar ou conjuntura. O interdiscurso funciona como memória, “aquilo que fala antes, em outro lugar” e motiva a criação do código, relacionando os vários domínios do saber mobilizados.
Os sujeitos aglutinam-se em torno de uma língua própria em cuja constituição não criam palavras novas, mas alteram o sentido de termos da língua que os constitui como sujeitos, o português brasileiro. Essa criação não parte do novo, mas da sobreposição de vários domínios do saber. Analisando as palavras, ou melhor, o sentido que é dado aos termos usados nos dá uma idéia do que eles pensam sobre as instituições envolvidas tanto no processo de repressão a `a marginalidade, como as que se lançam na reabilitação desses “sujeitos”, para que eles tenham uma vida mais responsável e digna perante à sociedade.
A criação desse código e sua existência nos permite pensar que o sentido de uma palavra, de uma expressão, etc., não existe em si mesmo, mas é determinado pelas posições ideológicas em jogo no processo sócio-histórico onde as palavras são produzidas. Uma palavra pode receber significados diferentes conforme a formação discursiva a que se refira. Uma palavra não tem um sentido próprio, ao contrario seu sentido se constitui a formação discursiva em que esteja inscrita. Num recorte dos termos utilizados para a confecção desse código e o significado estipulado observa-se o sentido irônico que pensam sobre a justiça refletido em suas palavras.
3. Análise do corpus
3.1 Domínio discursivo da justiça
Código Sentido
Bocuda Porta
Capivara Ficha policial
Somariar Responder por outros crimes, após.
Bocuda é termo com o qual os detentos denominam a porta da prisão. Na ordem da língua é uma palavra composta pelo processo derivação sufixal, formada pelo substantivo “boca” pelo sufixo UDA, que significa boca grande. Segundo, Aurélio (ano, p266) “ boca é uma cavidade ou abertura pela qual o homem e outros animais ingerem os alimentos” , ou seja, tem a função de engolir, colocar para dentro. É o que ocorre com os detentos, excluídos da sociedade.
Ainda de acordo com Aurélio (idem, p. 267 ) “Porta”, abertura em parede ao nível do chão ou do pavimento para dar entrada ou saída”. Na cadeia, figurativamente, considerando o domínio de saber dos sujeitos, quando ela é aberta pode estar engolindo (dando entrada, recebendo) um novo detento ou no caso de estar dando saída, vomitar alguém. A relação entre “boca” e “porta” representa a condição dos detentos, enquanto sujeitos que foram afastados da formação social, “vomitados” (boca) e “engolidos” (porta da cadeia)
Essa relação entre “boca” e “porta” abrange tanto a soltura de um detento quando a sua reclusão à carceragem. Nos dois casos eles são engolidos ou vomitados pela instituição. A porta adquire sentido positivo nos dias de visitas, às quintas-feiras, na cadeia pública de Laranjeiras do Sul. Essa é a oportunidade de os detentos receberem seus parentes. Os advogados podem visitá-los sempre que for necessário. Pela porta entram também os pastores, padres, a pastoral carcerária ou o juiz quando vem vistoriar o local.
Ao designar o objeto porta, de “bocuda”, provavelmente estão dizendo que foram engolidos pela justiça (instituição) e que estão sendo deglutidos pelo sistema. Explicitam que a cadeia é assim como um depósito (estômago) onde ocorre a deglutição final, ou que ainda é comum nas prisões brasileiras o detido aperfeiçoar-se ainda mais na marginalidade do que ser resgatado.
Capivara no código dos detentos significa “ficha policial”, “registro dos crimes cometidos, histórico do detento. Na ordem da língua é, segundo Aurélio (idem, p. 344 ) “o nome de um animal da fauna brasileira, mamífero, roedor”. A relação entre os dois termos pode, de um lado, aludir à vida que os detentos levam na prisão, em condições de animalidade, devido à superlotação e outros problemas e de outro, à própria condição da ficha policial dos detentos, que se constitui como a arma que os mantêm aprisionados. Ela é um animal roedor, que os incrimina, “rói, destrói a sua liberdade”. Trata-se uma metáfora, transferência de sentido, ou, uma comparação abreviada.
Somariar – No código dos detentos significa responder por outros crimes após ser preso. No português-brasileiro somariar é uma variação da palavra “sumariar” (sintetizar, resumir). No dicionário Aurélio (idem p. 1628) a definição de sumário como “substantivo” (masculino).
(...) recapitulação, lista dos principais assuntos de uma matéria, suma, súmula; Enumeração das principais divisões (capitulo, seções, artigos) de um documento, na mesma ordem em que a matéria nele se sucede, visa a facilitar visão de conjunto da obra e a localização de suas partes e para tanto deve aparecer no início da publicação e indicar para cada parte a paginação; índice. Como “adjetivo”: resumido; breve; simples; rápido; decisivo; sem formalidades.
A relação dos dois termos a) como substantivo nos remete ao rol de culpas e condenações a que o indivíduo estará sujeito; b) como adjetivo, a qualificação do elemento. A diferença de grafia entre os termos pode ser determinada tanto pelo baixo nível educacional que a maioria dos detentos possui, como também pela soma de sentenças a que o preso estará sujeito no caso da comprovação das mesmas, o que vai aumentar o tempo de confinamento do indivíduo na prisão.
3.2 Domínio discursivo do cotidiano
No domínio discursivo do cotidiano encontram-se os vocábulos relacionados aos objetos que os sujeitos aprisionados utilizam todos os dias. Alguns desses termos fazem parte do vocabulário utilizado fora da prisão. De qualquer um o sentido dessas palavras relaciona domínios discursivos, constituindo um novo sentido, pelo investimento do simbólico e do imaginário.
Código Sentido
Cambuca Vasilha com alimentos já preparados
Campana Espelho
Serrote Ferramenta para artesanato feito com laminas de barbear (jacaré)
Cambuca, pelo código dos detentos, significa recipiente contendo os alimentos já preparados. Segundo o dicionário Aurélio (idem p. 327) “cambuca é uma árvore da família das mirtáceas, cujos frutos são bagas esféricas de 6 a 9 cm. de diâmetro, de polpa amarelo avermelhada, espessa, gelatinosa e agridoce, própria para ser comida crua sob forma de doces e compotas”. No caso do código, pode ser uma variação do termo cumbuca, vasilha feita de cabaça. Como a cadeia não tem refeitório, os detentos recebem a comida na porta (bocuda) da ala onde está localizada a cela que lhe foi destinada. O alimento vem numa vasilha de plástico, semelhante a uma cabaça, uma cumbuca que eles denominam de cambuca, variação oral do termo cumbuca.
Relacionando os sentidos, chegaremos a uma definição bem próxima de “cocho”, local onde são despejados os alimentos para tratar de animais, o que confirma o registro empregado por eles, e define a situação a que, na prisão, estão submetidos, a uma situação animalesca.
Campana – Pelo código dos detentos significa espelho. Segundo Aurélio (idem p. 328), “sino pequeno, campainha, diz-se de qualquer objeto ou parte dele, acampanado ou em forma de boca de sino, como a extremidade de certos instrumentos musicais”. A relação dos sentidos, do dicionário e do código nos leva a um dizer popular “estar no apito” isto é, estar em dificuldades,
como é o caso de todo elemento na prisão, uma situação difícil. “Estar de campana” significa refletir, observar alguém, espionar, ficar de olho.
Serrote – É nome, no código, dado a ferramenta para executar artesanato fabricado com lâminas de barbear, conhecido também como jacaré. No Aurélio (idem p. 1577), “espécie de serra de folha curta em cuja extremidade mais longa se adapta um cabo, por onde se empunha”. Pelo “vazio” do tempo e por muitos deles, apesar de estarem presos, precisam ajudar sua família economicamente e, ao mesmo tempo se ajudarem, pois mesmo na prisão o dinheiro é de importância fundamental para sobreviverem. Dedicam-se ao artesanato como um meio de ganhar a vida. Os objetos fabricados são repassados aos familiares nos dias de visitas que os vendem.
3.3 Domínio discursivo de ordem sexual
O domínio da ordem sexual constitui o código dos detentos e se liga a elementos do mundo real, sem o que não seria possível o efeito de sentido entre interlocutores. Percebe-se que nesse domínio a relação entre palavras de ordem sexual ligam-se especialmente a palavras e sentidos relacionados ao jogo, como mostram as palavras abaixo:
Código Sentido
Dama Dormir lado a lado; usado somente por homossexuais
Duque Estuprador
Valete Dormir um aos pés do outro
Dama – No código, ato de dormir lado a lado; usado somente por homossexuais. Segundo o dicionário Aurélio (idem p. 518) “Mulher nobre; Sra. educada; a mulher a quem se ama. Uma das cartas de jogo de azar; a pedra do jogo de damas quando chega a qualquer das casas da ultima fila do tabuleiro”. Para os detentos o fato de um homem se submeter sexualmente a outro homem descaracteriza-o como “macho”, desabonando-o sob diferentes aspectos (mulherzinha). Essa concepção perpassa o imaginário do sujeito também fora da cadeia.
Duque – Pelo código é a denominação dada ao estuprador. O dicionário Aurélio (idem p. 1750), define duque “como carta de jogar que tem dois pontos – dois pontos na víspora. Hierarquicamente, título de nobreza inferior ao de príncipe; comandante militar das tropas romanas”. De acordo com as regras dos “ladrões”, um crime que no meio marginal não pode ter outra condenação que não a de morte, e geralmente é o que acontece. Crime na ordem social, crime na ordem marginal, dois crimes. Na gíria, duque é uma definição especial dada ao número dois.
Valete – No código é a forma de deitar-se um aos pés do outro, na falta de lugar para dormir. De acordo com Aurélio (idem p. 1750) “figura das cartas de jogar que na maioria dos jogos vale menos que o rei e a dama. “Um corpo para cá outro corpo para lá, invertidos, porque dois malandros jamais dormem com o rosto virado um para o outro.” (Varella , D. p. 297) O sentido, marca de heterossexualidade, distinção de força física determinação e liderança são propriedades de elemento “macho”. O nome é inspirado nas cartas de baralho, o valete, carta que pela lógica vem após a carta de número dez e a posição invertida das figuras que ilustram, tanto a carta do valete, como a do rei e da dama. Essa situação ocorre no setor masculino do presídio, o mesmo não acontece na ala feminina.
2 Considerações finais
Com este artigo procuramos demonstrar pensar a questão da língua e de sua autonomia relativa. O corpus constitui-se de termos utilizados pelos detentos da Cadeia Pública de Laranjeiras do Sul. Sustentamos nossa reflexão nos pressupostos da Análise do Discurso. As colocações feitas neste texto, procuram especular sobre as relações entre a língua materna e o código criado pelos detentos se pode chegar ao conhecimento de uma relação de base e de constitutividade entre eles, não se limita a transmitir conhecimentos sobre língua, na construção de um diferente falar e o processo de significação que lhe é inerente. Constatamos que criar um código próprio significa dar vazão ao inconsciente significando e significando-se.
Observamos, neste artigo, que a língua materna, base do código e o próprio código tem funções diferentes: como a língua materna é a língua do desejo interditado e, por isso mesmo, resiste à expressão desses desejos, o código permite aos presos dar vazão a esses desejos recalcados, interditados, criando uma ilusão de liberdade, justamente por que se constitui pela não interdição. É pela língua que o sujeito se identifica com outros sujeitos de um lado e por outro é por ela que ele se representa, construindo laços identitários.
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