MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE UM DEFUNTO PROTAGONISTA
Walter Ap. Gonçalves
wgoncalves67@hotmail.com
Resumo
Neste trabalho buscaremos compreender como funciona o tempo no Romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (1994), conforme discussão em sala de aula. A nossa abordagem pretende esclarecer alguns dos procedimentos do protagonista enquanto narrador, ao manipular o elemento tempo no nível cronológico e psicológico. A leitura crítica que aqui empreendemo-nos leva a pensar que o romance de Machado de Assis é construído desde um jogo explícito dessas duas temporalidades.
Palavra Chave: Tempo – Flashback - Romance – Psicológico - Cronológico
Introdução
O Romance de Machado de Assis foi publicado no ano 1881, o qual traz as experiências de um filho endinheirado da elite da sociedade brasileira do século XIX. O protagonista começa a narrativa pela morte, descrevendo a cena do enterro e dos seus delírios antes de falecer, até regressar à infância, quando então a narração segue de forma mais ou menos linear a qual é interrompida apenas por comentários digressivos do protagonista. O autor conduz os leitores a terem uma visão do mundo em que vivem a uma reflexão do que pensam da vida, das suas paixões, etc... Desse modo, as lembranças do ser fictício nos permitirão ter acesso aos bastidores da elite da sociedade carioca do século XIX.
Objetivo
Nossa intenção nesta pesquisa é mostrar como o tempo cronológico e psicológico se situam no presente, respectivamente o da narrativa e o do narrador. Decorrente dessa dupla temporalidade, o autor joga com outro presente: o do leitor. Procuraremos entender também, a posição específica do narrador, pois é ele que impõe uma ordem na apresentação dos fatos. O tempo ficcional das Memórias Póstumas, isto é, a duração durante a qual os eventos são dados como tendo acontecido, cobre justamente toda a vida do protagonista, a qual tem seus limites claramente datados. No capítulo IX o suposto memorialista nos revela a data do seu nascimento em 20 de outubro de 1805; já no I capítulo, a data da morte se passa em agosto de 1869. O tempo ficcional abrange, portanto, sessenta e quatro anos da vida do protagonista.
E vejam agora com que destreza; com que arte faço eu a maior transição deste livro. Vejam: o meu delírio começou em presença de Virgília; Virgília foi o meu grão pecado da juventude; não há juventude sem meninice; meninice supõe nascimento; e eis aqui como chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci. Viram? [...] verdade, era tempo. Que isto de método, [...] Vamos ao dia 20 de outubro. (ASSIS, 1880, p. 34)
Todos os episódios narrados nessa linha do tempo nos remetem a um assunto passado da memória de Brás Cubas, que fixa, em seu presente de narrador, as situações já passadas. Embora do fim para o começo, ou seja, a narração da morte no primeiro capítulo, o ser de papel mantém um seguimento psicológico na apresentação das passagens que configuram sua vida. E no tempo cronológico, em que os acontecimentos seguem uma ordem lógica partindo da infância, adolescência, a viagem para Coimbra, e de sua volta para o Brasil até a sua morte.
A surpresa da obra começa desde o título, que indica as memórias narradas por um defunto, o que nos dá uma ideia de tempo, o que é fundamental para o conjunto do romance. O próprio narrador, no início do livro, ressalta esta condição: trata-se de um defunto-autor, e não de um autor defunto:
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; [...]. (ASSIS, 1994 p. 02).
Isso consiste em afirmar que seus valores não como os de um grande escritor que morreu, mas de um morto que tem capacidade de escrever, e de poder situar-se do jeito, que bem quiser perante os fatos narrados, uma vez que se auto intitula um defunto autor, privilegiado pelo fato de não fazer mais parte desta vida, isentando-se assim de quaisquer responsabilidades sobre o que escreve, não temendo sofrer correções ou repreensões, pois já não existe nenhum compromisso ou vínculo a esta vida.
Quanto à temporalidade especificada anteriormente, podemos entender segundo (Nunes, 2003, p.20), que está associada há outros tempos como: o histórico, físico, tempo linguístico, verbal nos quais Machado de Assis fez uso para escrever o Romance Memórias Póstumas de Brás Cubas. Vejamos especificamente as palavras do crítico:
Num trabalho de leitura indispensável, A linguagem e a experiência humana, Émile Benveniste distingue, do tempo físico e do psíquico, o cronológico (temps chronique), que é o tempo dos acontecimentos, englobando a nossa própria vida. [...], cronometria acrescenta a ordem das datas a partir de [...], eixo referencial (nascimento de Cristo, Égira etc.), anterior ou posteriormente [...] é o tempo cronológico e não o físico, a despeito dos estalões cada vez mais precisos do último, que regula nossa existência cotidiana. Formando uma sequência sem lacuna, contínua e infinita [...], e permanente abriga expressões temporais específicas e autônomas da cultura, que lhe interrompem, periodicamente, a vigência geral. (NUNES, 2003, p.20).
Nunes afirma ainda que assim, as divisões cronológicas do tempo histórico se remanejam em unidades qualitativas, que dependem da duração dos fatos, de tal maneira quanto essa duração é inseparável da conexão causal entre eles.
Entendemos que o tempo psicológico no capitulo VII do romance Memória Póstumas de Brás Cubas, o personagem narrador relata seu delírio, pré-morte, na qual se utiliza de uma das técnicas mais conhecidas e empregadas nas narrativas a serviço do tempo psicológico, é o flashback, que consiste em retroceder no tempo. Na obra, por exemplo, o presente para o protagonista é sua condição de morto, que da qual ele volta ao passado próximo (como ocorreu) e ao passado mais remoto, sua infância e juventude. Utilizando-se de metáforas ao longo dos capítulos, o ser fictício concentra a sua visão do mundo em que a sociedade em geral esta inserida ao contemplar as visões a ele proporcionadas por Natureza ou Pandora respectivamente. No entremeio de seus delírios, o defunto faz referência ao momento em que Cristo ao ser tentado pelo Diabo é levado para um monte muito alto e lá lhe é mostrado o passado e o futuro das gerações. Isto esta presente na narrativa nos seguintes termos: “ Ele conversava com a Natureza, Pandora, que lhe permite ver o que é a vida do homem: [...] Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha (ASSIS, 1994, p. 10) ”.
Percebemos que a ironia é um dos traços marcantes da obra, como podemos perceber na referência acima. Podemos entender como mais uma saída que a voz narrativa usou para combater as verdades em que desacreditava. A irônica antecipa sempre outros sentidos para o que é dito. Machado de Assis utiliza-se da ironia como um recurso para fazer com possamos sempre desconfiar das afirmações, dos pensamentos e conclusões do ser fictício.
Ela, a Natureza ou Pandora conduz Brás ao alto de uma montanha e lhe permite contemplar a passagem dos séculos e entender o absurdo da existência, sempre igual, centrada apenas no egoísmo e na luta pela sobrevivência humana. O protagonista assiste a história como uma eterna repetição; o egoísmo, conservação e satisfação do próprio eu: lei de Brás Cubas e dos homens que aparecem no delírio, fantoches sacudidos pelas paixões, diferenças de um mal que vai consumindo o homem, a buscar a fantasia da felicidade que se some na ilusão do ser fictício.
Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, [...] Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, — flagelos e delícias, — [...] Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim chegar o século presente, e atrás dele os futuros. [...] Redobrei de atenção; fitei a vista; ia enfim ver o último — o último! Mas então já a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a compreensão; é ao pé dela o relâmpago seria um século. [...] menos o hipopótamo que ali [...] era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel... (ASSIS, 1994, p. 11-12).
O protagonista se comporta de forma alternada na obra, o que nos leva a reflexão sobre como nos situamos no mundo atual diante da sociedade, dos nossos sentimentos e paixões. Ou seja, ele é o personagem e o narrador ao mesmo tempo. Nesse caso, a narração em primeira pessoa permite ao autor entrar e desvendar com maior propriedade o mundo psicológico do personagem.
O que caracteriza o romance como um texto de ficção segundo o que afirma Antonio Candido é porque o texto é uma narrativa longa, que envolve um número considerável de personagens em relação à novela e ao conto, maior número de conflitos, tempo e espaços mais dilatados.
Na ficção narrativa desaparece o enunciador real. Constitui-se um narrador fictício que passa a fazer parte do mundo narrado, identificando-se por vezes (ou sempre) com uma ou outra das personagens, ou tornando-se onisciente etc. [...] coisas há muito acontecidas [...]. O narrador fictício não é sujeito real de orações, como o historiador ou o químico; [...] E isso é verdade mesmo no caso de um romance histórico. As pessoas (históricas), ao se tornarem ponto [...], passam a ser personagens; deixam de ser objetos e transformam-se em sujeitos, seres que sabem dizer “eu”.(CANDIDO, 1968, p.18).
O crítico Benedito Nunes,(2003,p.28), afirma que a literatura é uma arte predominantemente temporal. Ou seja, dois tempos, pelo menos, estarão conexos na obra literária de caráter épico ou narrativo. Segundo palavras do crítico, uma vez que a narrativa possui três planos, como o da história, do ponto de vista do conteúdo, o do discurso. Mas aqui abordaremos apenas o ponto de vista da historia. E é, portanto, no plano da história que o tempo na obra literária é outro que não o real, e Machado de Assis explorou de forma apropriada como podemos percebemos em todo o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, a forma como esses atrelamentos nos são apresentados, aparecem bem constituídos na sequência da história, são logicamente expostas e abertas ao nosso entendimento, que podemos reconhecer nela esse aspecto da nossa vida e da realidade em que vivemos. E isso é o que nos leva a acreditar na possibilidade de que a história realmente tenha ocorrido.
Nunes ainda afirma que, o tempo da história, a que designamos imaginário, psicológico, depende ainda do tempo real ou cronológico, que subsiste na consecutividade do discurso em que aquele se funda. À custa do qual aparece ou se desloca. Para o crítico, o discurso nos dá a forma da narrativa como um todo significativo; a história, o aspecto episódio dos fatos e suas relações, junto com os motivos que os unem, ambos fixando a narração um limite de compreensão cronológica e coerente, e portanto, entendemos que ele resulta da semelhança entre o tempo de narrar e o tempo narrado, o tempo apesar de ser a condição da narrativa, não pode ser narrado, sendo apenas preenchido com os lances que seguem uma sequência. Não havendo, portanto esse preenchimento, o que resta do tempo é apenas o vazio. O tempo possui diversos aspectos. No tempo físico temos o movimento exterior das coisas e no tempo psicológico a sucessão dos nossos estados internos. O tempo físico e psicológico estão em permanente descoincidência. O tempo que firma o calendário é o cronológico (NUNES, 2003, p.18).
E sobre a pluralidade do tempo, o que o protagonista utilizou ao escrever o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, o leitor mesmo poderá concluir, na perspectiva daquele crítico:
Quando falamos do tempo, as coisas se embaralham porque não podemos enfeixá-lo num conceito único. A ideia de tempo é conceitualmente multíplice; o tempo é plural em vez de singular. Entretanto, suas várias modalidades não são díspares; embora com alcance diferente, a todas se aplicam as noções de ordem (sucessão, simultaneidade), duração e direção, que recobrem, em vez de uma identidade, relações variáveis entre acontecimentos, ora com apoio nos estados do mundo físico, ora nos estados vividos, ora na enunciação linguística, nas condições objetivas da cultura, nas visões de mundo e no desenvolvimento social e histórico. O que interliga essas noções comuns, permitindo falar de relações variáveis, é o conceito mais geral de mudança (NUNES, 2003, p.23).
Os eventos do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas não precisam ser verdadeiros, no sentido de obedecerem exatamente a narrativas ocorridas no mundo exterior ao texto, mas devem ser verossímeis mesmo quer sendo fictícios, o leitor precisa crer no que esta lendo, e esta credibilidade ocorre da organização coerente dos fatos dentro do enredo proposto pelo protagonista.
Conclusão
Finalizamos este trabalho com esta referência em que Brás Cubas usando - se de sabias palavras diz:
Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz a consciência;...(ASSIS,1994 p.35).
Machado alia nesse romance profundidade e sutileza, expondo muitos problemas de nossa sociedade que existem até hoje. Daí o prazer da leitura, a viagem pelo imaginário do ser ficcional e a importância da compreensão de seu texto, pois atualizam, de forma irônica, os processos em que nosso país foi constituído, suas incoerências e os desmandos que ainda estão presentes em nossos dias.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Rio De Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1994.
CANDIDO, Antonio, Rosenfeld, Anatol, A Personagem de Ficção, São Paulo
CHIAPPINI, Ligia, O Foco Narrativo, São Paulo: Ed. Ática, 2002.
HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2009.
NUNES, Benedito, O Tempo Na Narrativa, São Paulo: Ed. Ática, 2003.