GÊNERO & EDUCAÇÃO FÍSICA:tornando visíveis fronteiras e outras formas de reconhecimentos

Agripino Alves Luz Junior1

RESUMO: O texto fala sobre os “estudos de gênero”, enfatizando conceitos e significados

considerados, aqui, como desnaturalizadores das diferenças inscritas e tatuadas nos corpos, via

definições sociais, estabelecidas em função do sexo. Pergunta, mais particularmente, se a

Educação Física, através de suas práticas cotidianas, está ajudando meninos e meninas,

homens e mulheres a construírem suas identidades de gênero? Que valores, padrões e funções

são atribuídos como próprios de cada sexo? Será que a condição de homossexual, definida

pela orientação do desejo sexual para parceiros e parceiras do mesmo sexo, é objeto de

reflexão no âmbito da Educação Física? Diz, também, sobre algumas idéias do que é gênero e

para onde, para que novos sentidos ele caminha, em face do fenômeno contemporâneo que

tem dado visibilidade cultural às múltiplas identidades, materializadas nas ações corporais, nos

gestos e nas falas.

Palavras-Chave: Gênero; Educação Física; Identidades de gênero.

1 Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas Pedagógicas em Educação Física – GEPPEF. Professor da

Universidade Federal do Maranhão – UFMA, com mestrado em Educação Física: Teoria e prática pedagógica

pela UFSC, e doutorando do Programa de Pós-graduação da UFSC na área de Mídia e Conhecimento.

ABSTRACT: The text talks about “gender studies” and emphasizes concepts and

meaning wich undo the differences that are impriented on our bodies by social definitons that

were established as functions on sexual differences. It asks, in particular, if Physical

Education, though it’s daily, men and women, to build ups their gender identity. Which

values, patterns and functions are attributed the each gender as typical. Has the condition of

being homosexual as defined by the sexual attraction to partners of the same Sex, been the

sexual Physical Education to partners of the some ideas of what gender is, and in which new

directions it moves taking in to account the com temporary phenomenon which has given

cultural visibility to manifold identities, materializeds though corporal actions, gestures and

ways of speaking.

Key-Word: Gender; Physical Education; Gender of identities.

“As mulheres passaram a fronteira do mundo dos homens escamoteando o

lado feminino da vida. Enfrentaram a concorrência no espaço público

carregando consigo, escondidas, as raízes do espaço privado [...].

Procuraram assim corresponder ao novo perfil de mulher que emergia de um

paradigma. Obedeciam a uma mensagem dupla e contraditória: para ser

amada continue sendo mulher. Seja homem e seja mulher”2. (OLIVEIRA,

1992, p. 48).

2 Meu grifo!

Este ponto de vista remete-nos a uma reflexão que trata das “questões de gênero”. Os

discursos sobre essa problemática, oriundos de diversas áreas, tais como a antropologia, a

sociologia a história e, também, a Educação Física, possibilita-nos entender que os conceitos

já construídos, e que circulam em revistas, livros, e outros meios, produzem certos

significados, oferecendo oportunidades para a realização de análises sobre como podem ser

reconstruídas as relações de gênero em nossa sociedade, além de renovar as possibilidades de

mudanças nos limites entre a manutenção das imagens de homem e de mulher veiculadas na

sociedade e a ação pedagógica de diversas áreas do conhecimento, entre essas a Educação

Física, cujo condicionamento aos valores e normas sociais, além de produzir certos

conhecimentos e vivências que terminam, em consonância com as características biológicas,

por perpetuar o sexismo, o desrespeito e a violência.

Nesse sentido, os estudos de gênero, através dos conceitos e dos significados

produzidos, “fornecem um meio de decodificar o significado e de compreender as complexas

conexões entre várias formas de interação humana” (Scott, 1995, p. 89). Isto se dá, pois, o

gênero assume o sentido de representar a construção social e histórica dos sexos, enfatizando

ao mesmo tempo o caráter social e relacional dessa construção.

O cerne da definição de gênero pode ser resumido a partir de Scott (1988, p. 14) como

sendo “a relação fundamental entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo

das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos e o gênero é o

primeiro modo de dar significado às relações de poder”.

Na compreensão dessa autora, o gênero, entendido como elemento que constitui as

relações sociais fundadas nas diferenças percebidas (primeira proposição), pressupõe quatro

elementos que se relacionam entre si:

1) Os símbolos disponíveis culturalmente, evocando sempre as representações

simbólicas,

2) Os conceitos normativos que tornam evidentes a linguagem desses símbolos;

3) As instituições e organizações sociais;

4) As identidades subjetivas, cujas interpretações não devem ser reduzidas apenas

às concepções bio-psicológicas, pois assim sendo, nega-se o aspecto histórico

dessa categoria.

Do ponto de vista da proposição que se refere às relações de poder, Scott comenta que

estas devem ser pensadas a partir da noção Foucaultiana, que diz:

O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia.

Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como riqueza ou

um bem. O poder funciona e se exerce em rede, [...] não se aplica aos indivíduos, passa por eles”.

(Foucault, 1995a, p..183).

Outro autor que tem discutido e sistematizado conceitos referente aos estudos de

gênero é Robert Connel. Para ele “O gênero é [...] a forma pela qual as capacidades

reprodutivas e as diferenças sexuais dos corpos são trazidas para a prática social e tornada

parte do processo histórico.

No gênero, a prática social se dirige aos corpos. Através dessa lógica, as

masculinidades são corporificadas, sem deixar de ser sociais” (1995, p. 189). Assim, as

relações sociais engendram as formas de como o feminino e o masculino são construídos,

nunca em esferas separadas, mas um em relação ao outro, concordando com o que diz

Machado (1992), não em oposição, mas em complementaridade e articulação com outras

categorias, tais como, classe, etnia, religião, entre outras.

Sendo assim, a desconstrução da polaridade rígida entre os integrantes do gênero

humano – homens e mulheres, torna-se premente. Isto significaria, de acordo com Louro

(1997, p.31-32),

... problematizar tanto a oposição entre [...] [os indivíduos] quanto a unidade interna de cada um.

Implicaria observar que o pólo masculino contém o feminino (de modo desviado, postergado,

reprimido) e vice-versa; implicaria também perceber que cada um desses pólos é internamente

fragmentado e dividido (afinal não existe a mulher, mais diferentes mulheres que não são idênticas

entre si, que podem ou não ser solidárias, cúmplices ou opositoras)3

3 Meu grifo – Essa análise também pode ser dirigida ao homem , de forma similar.

Para Bourdieu (1995), o corpo é construído pelo mundo social por meio de um

trabalho de formação permanente. O gênero precisa de corpos, tanto masculino quanto

feminino, sendo o aspecto sociocultural o produtor desses corpos. Nesse sentido deve se

questionar se existe alguma possibilidade de construção de identidade a não ser pelos corpos?

O corpo constitui-se na referência que ancora a identidade e é significado pela cultura,

conforme determinados momentos históricos.

Bordo (1997, p.20), utilizando as idéias de Foucault, explicita que “por meio da

organização e da regulamentação do tempo, do espaço e dos movimentos de nossas vidas,

nossos corpos são treinados, moldados e marcado pelo cunho das formas históricas

predominantes de individualidade, desejo, masculinidade e feminilidade”.

No campo da Educação Física, os chamados estudos de gênero têm concentrado os

esforços na análise das condições empíricas da formação de conceitos oriundos, de forma mais

corrente, dos estudos dos estereótipos relacionados às diferenças entre os sexos evidenciados

nas aulas de Educação Física escolar e nas práticas esportivas e de lazer em geral.

As conseqüências oriundas das práticas sexistas na área da Educação Física, segundo

Saraiva (1999, p.27-28), podem ser remetidas a três campos:

a) biofisiológico – (relacionado com a performance). Neste, o aspecto motor feminino fica

consideravelmente prejudicado em função da pouca oportunidade de participação em

atividades corporais, tendo como parâmetro as oportunidades de jogos esportivos

oferecidas aos meninos.

b) psicológico – a aceitação da superioridade física do menino, por parte das meninas,

muitas vezes leva as mesmas a uma espécie de acomodação e dependência, diferentemente

dos meninos que são, desde muito cedo, estimulados para a independência.

c) social – em decorrência de uma série de fatores, por exemplo, os dois campos

anteriormente identificados, facilmente se deduzem as conseqüências para o papel social

de ambos os sexos.

Isso implica afirmar que, muitas vezes, diferenças de gênero são tidas como diferenças

de sexo. Essas diferenças vistas dessa forma, naturalizam perspectivas para o masculino e

também para o feminino, como por exemplo: homens são corajosos e mulheres são frágeis;

homens gostam da rua e mulheres gostam de ficar em casa, homens gostam de futebol,

mulheres gostam de dança.

Michelle Perrot (1988), em seu livro “Os excluídos da história: operários, mulheres e

prisioneiros”, faz um comentário interessante a respeito das idéias da maioria dos pensadores

do século XIX, oriundas das descobertas da biologia, e fundamentados nas concepções deste

campo atribuíram funções diferenciadas a um e outro sexo, a partir da idéia da existência de

duas espécies cujas aptidões e qualidades se fazia necessário demarcar diferentes limites e

atuações distintas. Nesse sentido, certas características, tais como: capacidade de decisão,

inteligência, o lugar do espaço público são dotes naturais aos homens, enquanto a delicadeza,

os sentimentos o cuidado destinam-se às mulheres.

Assim, o conceito de gênero, que se pressupõe fundado nas diferenças biológicas dos

sexos, enfatiza as divisões sociais culturalmente construídas, evidenciando um processo de

educação (escolar ou não) cujas condutas são, através de certos sentidos/significados,

ensinadas/aprendidas via movimentos corporais que, também, são considerados

“naturalmente” masculinos ou femininos.

Tem-se, assim, uma construção social e corporal de mulheres e homens inscrita a partir

de certos movimentos corporais que se manifestam distintamente para os dois sexos “... o

andar balançando os quadris é assumido como feminino, enquanto dos homens espera-se um

caminhar mais firme (palavra que no dicionário vem associada a seguro, ereto, resoluto –

expressões muito masculinas e positivas)”. (Louro, 1992, pp. 58-59).’

As relações de gênero na cultura escolar vêm, desde muito, contribuindo para a

fundamentação de uma ação pedagógica nas quais as posturas e movimentos corporais são

marcados, programados, para um e para outro sexo.

Alguns dos elementos/conteúdos da cultura corporal presentes nas aulas Educação

Física admitem, através de suas praticas, que há mesmo toda uma organização e

regulamentação onde os corpos são treinados e moldados em função da divisão sexual e

social, condicionadas por uma cultura que impõe “normas, símbolos, mitos e imagens que

penetram o indivíduo em sua intimidade, estruturam os instintos, orientam as emoções”

(Morin, 1997, p. 15).

Portanto, há no processo de escolarização de crianças e jovens uma definição de sexo

aceita, via regra geral, que mantêm nítidas as fronteiras entre os sexos. Trilhar por outros

caminhos, para além dessas fronteiras, acirra as tensões que levam meninos e meninas,

homens e mulheres a serem expulsos/as desse “paraíso” colocando-os/as frente a um outro

campo - do desejo desviante.

Mesmo na escola mista, a manutenção das representações de homem e mulher

continuam a existir nas aulas de Educação Física. A construção social do masculino e do

feminino esteve sempre aliada a uma visão dicotômica – corpo/intelecto – exigindo, assim, nas

aulas a separação de meninos e meninas tanto em termos de padrões esportivos quanto em

normas e gestos a serem executados.

O esporte e a dança, enquanto conteúdos da Educação Física, durante muito tempo

adotaram/adotam instrumentos de diferenciação e hierarquização dos sexos a partir das suas

práticas. Nas competições pode ser visto claramente essas diferenças desde o ponto de vista

da superioridade e inferioridade.

Teorias justificam esses atributos de “superioridade” e “inferioridade” pelo viés biofisiológico,

que terminam por gerar e perpetuar certos preconceitos que diminuem, em muito,

a participação das mulheres em muitos esportes, e dos homens em certas danças.

Nesse sentido é que foram produzidos alguns mitos quanto à participação da mulher no

esporte: “a) exercícios e esportes causam danos para o sistema reprodutor da mulher; b) as

mulheres não têm a mesma capacidade de resistência que os homens, podendo causar danos à

saúde; c) as mulheres têm estrutura fraca, sendo facilmente sujeitas a lesões e; d) o esporte

masculiniza a mulher” (COMITÊ OLÍMPICO INTERNACIONAL, 1986, P.64-5). Supõe-se

que a causa, durante muito tempo, da pouca participação das mulheres no esporte tenha sido

em função desses mitos que foram difundidos internacionalmente.

Na tentativa de justificar o sexismo presente nas aulas de Educação Física, os

professores e as professoras têm se fundamentado em concepções biologicistas que, como

lembra Michelle Perrot, naturalizam a construção do corpo feminino mais fraco e o corpo

masculino forte, reforçando assim as diferenças.

Nesse sentido é fundamental que se pergunte se no cotidiano do ensino da Educação

Física as dificuldades que têm professores e professoras em lidar com o sexismo implícito,

interfere no processo de constituição do sujeito e construção da identidade hegemônica: a

heterossexual?

• Como, então, o campo da Educação Física, utilizando o conceito de gênero para falar de

outros processos de constituição de identidades dos sujeitos (que também são identidades

de gênero), pode pensar outras formas de reconhecimento de identidades sexual e social?

• Que experiência o (a) homossexual vivencia nas atividades do campo da Educação Física?

Muito já foi escrito sobre o papel nefasto da colonização ocidental e as violências que dela

emerge. A violência contra a mulher é uma das mais comentadas, defendidas e teorizadas, a

partir dos estudos de gênero, que são relacionais. Portanto, há de se pensar que as situações de

violência, também, configuram o universo masculino, e todos(as) aqueles(as) que estão para

além da fronteira hegemônica dos reconhecimentos de identidades sexuais e sociais. Nos dias

atuais as identidades homossexuais também são frequentemente violentadas em diferentes

formas, e as maneiras como elas são tratadas nos obrigam a pensar sobre a questão da

impunidade. Essa luta contra a impunidade parece ser, no meu entender, uma das mais

importantes e das mais difíceis hoje, embora, contra a impunidade, seja uma palavra de ordem

de lutas específicas dos movimentos das mulheres e dos homossexuais desde o final dos anos

70.

REFERÊNCIAS

BORDO, Susan R. O corpo e a reprodução da feminilidade: uma apropriação feminista de

Foucault. In: JACCAR, Alisson e BORDO, Susan R. Gênero, corpo e conhecimento. Rio de

Janeiro: Record Rosa dos Tempos, 1997, (Coleção Gênero, v.1).

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n.

2, p. 133-184, jul./dez., 1995.

COMITÊ OLÍMPICO INTERNACIONAL. Curso de dirigentes del deporte. Canadá: Fhoenix

Press, 1986.

CONNEL, Robert. Políticas da masculinidade. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20,

n.2, p. 185-206. Jul./dez., 1995.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1995a.

MACHADO, Lia Zanotta. Feminismo, academia e interdisciplinaridade. In: Albertina de

Oliveira Costa & Cristina Bruschini, (Orgs.). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa

dos Tempos, 1992.

OLIVEIRA, Rosiska D. de. Elogio da diferença: o feminino emergente. 2. ed. São Paulo:

Brasiliense, 1992.

PERROT, Michele. Os excluídos da história: operários, mulheres, prisioneiros. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1988.

SARAIVA, Maria do Carmo. Co-educação física e esportes: quando a diferença é mito. Ijuí:

ed. UNIJUÍ, 1999.

SCOTT, Joan. Desconstructing equality-versus-difference: Or the uses of poststructuralist

theory for feminism. Feminist Studies, v. 14, n.1, p.33-50, 1988.

________. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto

Alegre, v. 20, n. 2, 71—99. Jul./dez., 1995.

Contatos com o autor: agripaluz@hotmail.com

Agrippa de Florippa
Enviado por Agrippa de Florippa em 03/12/2011
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